Internacional

O que a América Latina e o Caribe podem esperar do senador de Illinois, caso vença?

A partir do momento em que o candidato do Partido Democrata às eleições presidenciais dos Estados Unidos ganhou credibilidade, passou a abraçar uma política limitada aos contornos ditados pelas elites econômicas e governantes norte-americanos. O que a América Latina e o Caribe podem esperar do senador de Illinois, caso vença?

A nomeação do senador Barack Obama como candidato à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata gerou entusiasmo global por este advogado e político de 47 anos. Sua vitória inesperada sobre a senadora Hillary Clinton, ex-primeira-dama, surge após uma difícil e esplêndida campanha, que pareceu ser uma demonstração cabal de seu slogan: “Change we can believe in” (Uma mudança na qual podemos acreditar). Como autor do best-seller The Audacity of Hope (A Ousadia da Esperança), de 2006, Obama capturou a imaginação do público e gerou expectativas em todo o mundo. Um survey da Pew Global Attitudes, efetuado em junho de 2008, procurou traçar seu impacto global ouvindo 24.717 pessoas em 24 países, incluindo o Brasil.

Dos brasileiros que acompanharam a campanha dos Estados Unidos com alguma ou muita proximidade, 58% declararam ter mais confiança em Obama do que em seu rival republicano, o senador John McCain, enquanto 47% afirmaram que um novo presidente americano traria mudanças para melhor, 39% nenhuma mudança e somente 9% mudanças para pior. Também no mês de junho, o presidente Lula disse que a ascensão de Obama caracteriza uma verdadeira revolução no eleitorado dos Estados Unidos, enquanto Fidel Castro declarou que o candidato democrata é, “sem dúvida, do ponto de vista social e humano, o candidato mais progressista à Presidência americana”, um homem trabalhador de grande inteligência, debatedor hábil e orador de talento. Mas, qual a história por trás desse fenômeno e o que podem esperar a América Latina e o Caribe caso Obama triunfe nas eleições de novembro? Isso traria as mudanças significativas esperadas por tantos?

Uma resposta começou a emergir com maior clareza no dia 23 de maio de 2008, quando o senador Obama fez um discurso intitulado “Renewing U.S. Leadership in the Americas” (Renovando a Liderança Estado-unidense nas Américas). A escolha da cidade, dos promotores e do evento estava coberta de simbolismo: ele discursou como convidado da Cuban American National Foundation (Fundação Nacional Cubana Americana) no auditório do condado Miami Dade, onde Ronald Reagan fez um discurso anticomunista histórico em 1983, no qual ele declarou “Cuba Yes! Castro No!”. Em seu discurso, Obama apresentou posições que surpreenderiam os que podem ter chegado a acreditar que ele fosse um esquerdista. De forma mais dramática, o senador do estado de Illinois denunciou “o terrível e trágico status quo” em Cuba, cuja população nunca conheceu liberdade e democracia. “Minha política em relação a Cuba será guiada por uma só palavra: Libertad... [e] Eu nunca farei concessões na causa da liberdade.” Essas declarações foram acompanhadas pelo seu apoio, com pequenas mudanças, ao embargo dos Estados Unidos simbolizado pelo Ato de Helms-Burton, de 1996, que intensificou o bloqueio norte-americano a Cuba, violando lei internacional.

O apoio de Obama à hostilidade corrente dos Estados Unidos em relação a Cuba não é necessariamente surpreendente, é claro, já que os cubanoamericanos são eleitores-chave em um estado em disputa entre democratas e republicanos, como a Flórida, que pode ser decisivo no outono de 2008, como o foi em 2000. Além disso, a decisão de Obama em reafirmar a liderança norte-americana em “nosso hemisfério” também inclui uma forte condenação ao “autoritarismo petroleiro” do presidente Hugo Chávez, rotulado por ele como um demagogo cuja retórica é típica de um “valentão autoritário”. Em sua interpretação, os venezuelanos ofereceram uma “previsível e, ao mesmo tempo, perigosa mistura de retórica antiamericana, governo autoritário e diplomacia do talão de cheques” ligada às “ideologias falidas do passado”. O governo Bush, ele disse, falhou em “se integrar a essa batalha por corações e mentes” e assim “a visão ultrapassada de Chávez não foi contestada, além de obter avanços, da Bolívia à Nicarágua.” Enquanto declarava que “liberdade em nosso hemisfério deve transcender as eleições”, Obama classificou Chávez como “um líder eleito democraticamente”, mas que “não governa democraticamente. Ele fala do povo, mas suas ações servem somente a seu próprio poder”. Já em relação ao governo Bush, “suas condenações destemperadas e tentativas atrapalhadas de solapar Chávez somente o fortaleceram”.

Nos Estados Unidos, as denúncias a Chávez são rotina tanto entre democratas quanto entre republicanos. Mais atormentador foi a evocação direta do proverbial “Big Stick”.

Ignorando a defesa da soberania do Equador pela Organização dos Estados Americanos (OEA), Obama declarou que seu governo “apoiaria o direito colombiano de atacar terroristas que procuram santuários além de suas fronteiras. E nós denunciaremos qualquer apoio às Farcs por governos vizinhos” que sofrerão “condenações internacionais, isolamento regional, e – se necessário – fortes sanções financeiras”. Enquanto criticava tanto “a arrogância de Washington quanto o antiamericanismo que atravessa a região”, em suas entrevistas à imprensa reiterava suas ameaças de “aplicar sanções à Venezuela, para fazê-la saber que esse tipo de comportamento não é aceitável”, assim que tinha acabado de relacionar as atuais “tiranias do petróleo” às “tiranias do fascismo e do comunismo” do passado. De fato, a ousadia mostrada por Obama em Miami foi defender sanções financeiras à Venezuela, algo não defendido nem pelo governo Bush devido ao papel venezuelano no fornecimento de petróleo aos Estados Unidos, um país sedento por gasolina.

O sistema norte-americano

O discurso de Obama em Miami foi claramente direcionado ao eleitorado cubano-americano; de fato, seu único rompimento com a ortodoxia pró-embargo foi o apoio às viagens familiares e ao envio de dinheiro à ilha, na esperança de atrair cubanos de Miami ansiosos para ajudar financeiramente suas famílias. Mas a sua utilização de um discurso hegemônico tradicional dos Estados Unidos também teve como alvo audiências bem distantes de Miami, cuja influência é bem maior. Logo após um debate ocorrido em julho de 2007, a campanha da senadora Hillary Clinton fustigou Obama pela sua defesa do predomínio da diplomacia sobre a ação militar unilateral. Obama havia ainda declarado sua disposição de se encontrar com os inimigos dos Estados Unidos, se necessário; descrito como ingênuo e frouxo com os ditadores, posteriormente se distanciou das críticas à política de Bush em relação à América Latina, que ele caracterizava como excessivamente “baseada na antipatia a Chávez”. Somente os que pensaram que Obama era um esquerdista se surpreenderiam com o fato de que, a partir do momento em que sua candidatura ganhou credibilidade, o senador de Illinois passou a abraçar uma política limitada aos contornos ditados pelas elites econômicas, dos meios de comunicação e governantes nos Estados Unidos.

Mas há mais a dizer sobre Barack Obama do que a impureza sugerida pelos cálculos eleitorais e políticos. Seu livro de 2006, A Ousadia da Esperança, revela um homem de maior sabedoria e convicção, derivadas de sua trajetória de vida incomum. Após a partida de seu pai queniano, sua mãe, de uma pequena cidade no estado de Kansas, se casou com um estudante indonésio no Havaí e se mudou com Obama para Jacarta em 1967, dois anos depois do golpe militar contra Sukarno e o Partido Comunista, ocorrido um ano após o comparativamente pacífico golpe de 1964 no Brasil. Barack observa francamente que o resultado foi “entre 500.000 e 1 milhão de pessoas brutalmente assassinadas” e critica o governo dos Estados Unidos por saber “e possivelmente aprovar” os “aspectos mais obscuros da vida Indonésia – suas práticas em relação a direitos políticos e humanos... A prisão e a tortura de dissidentes eram comuns, a imprensa livre não existia, as eleições eram meras formalidades”. Ele sugere que o caso da Indonésia tipifica muitos aspectos de 50 anos da política externa norte-americana, incluindo a “tendência a ver nações e conflitos através do prisma da Guerra Fria; nossa incansável promoção do estilo americano de capitalismo e corporações multinacionais; [e] a tolerância e o esporádico apoio da tirania, da corrupção e da degradação ambiental quando convinha a nossos interesses”.

O saldo da política externa norte-americana, escreveu Obama, é “misto – não somente na Indonésia, mas no mundo inteiro”. É marcado, ele afirma, por “uma combinação de impulsos conflituosos”, incluindo noções do “Destino Manifesto” (Manifest Destiny) do país, que “significou conquistas sangrentas e violentas – de tribos nativo-americanas removidas forçadamente de suas terras, e do Exército mexicano que defendia seu território. Foi uma conquista que, como a escravidão, foi contrária aos princípios fundamentais dos Estados Unidos e tendeu a ser justificada em termos explicitamente racistas, uma conquista que a mitologia norte-americana sempre teve dificuldade em absorver completamente, mas que outros países reconheceram pelo que era – um exercício de poder em toda sua crueza”.

Como estudante no início dos anos 1980, ele lembra de seu ódio às políticas de Reagan em relação ao Terceiro Mundo, inclusive o “apoio ao regime do apartheid na África do Sul, o financiamento de esquadrões da morte em El Salvador, a invasão da minúscula e infeliz Granada”, e “à brutalidade no Chile”. Mesmo assim, ele afirma que não podia aceitar as pessoas de esquerda que viam tudo que era feito pelos Estados Unidos como “manifestações da arrogância americana, de chauvinismo, racismo, capitalismo e imperialismo”. Ele também discorda dos que hoje denunciam toda a concepção norte-americana sobre “o que o sistema internacional deveria ser” como imperialismo, enquanto conclamam outros países a seguir “a liderança de populistas de inclinação esquerdista como Hugo Chávez, da Venezuela... Eu não ignoro completamente esses críticos, ele diz, mas reafirma sua crença que estão errados em “rejeitar os ideais do livre mercado e da democracia liberal”.

Oportunidade de virar a página

Como candidato presidencial, Barack Obama não se distinguiu radicalmente em suas políticas para a América Latina e o Caribe, uma área por ele pouco conhecida, quando muito. Mesmo assim, o significado de sua candidatura e suas implicações para a região não se restringem ao fato de sua política ser esta colcha de retalhos costurada a partir de misturas do velho e do novo. Não importa quão talentoso, um homem e suas palavras não podem nem transformar uma nação de 300 milhões, nem sequer estabelecer uma nova relação de soberania e colaboração com seus vizinhos hemisféricos. Neste contexto, no entanto, o “fenômeno Obama” representa sem dúvida uma oportunidade para virar a página nas relações Estados Unidos–América Latina como parte de um emergente mundo pós-neoliberal do século 21.

Nada marca mais claramente esta mudança que a morte recente do senador republicano de cinco mandatos seguidos Jesse Helms, da Carolina do Norte, o autor do ato ilegal Helms-Burton de 1996, que Obama se comprometeu a cumprir em Miami. De fato, agora vemos o fim de três décadas de política norte-americana nas quais a influência de Jesse Helms foi tão decisiva que é até difícil dimensioná-la. Um gigante da militância do conservadorismo linha-dura, Helms era filho do xerife de uma pequena cidade em uma Carolina do Norte segregada, desesperadoramente pobre e violentamente anti-sindical. Sua carreira política se iniciou em 1950, e o esperto político foi o centro de três transformações decisivas na política norte-americana, que trouxeram reverberações trágicas através das Américas.

Inicialmente, Helms foi central para a tomada do Partido Republicano pela ala conservadora dos “brancos sulistas” que repudiavam o sistema unipartidário anterior da região, depois de serem traídos pelo presidente democrata Lyndon Baynes Johnson, acusado por eles de instituir as leis de direitos civis de 1964-1965, que deram o voto aos negros e acabaram com a segregação legalizada. Mas, foi o próprio Wall Street Journal, um jornal conservador, que chamou a atenção para o fato de que “seu papel mais importante se deu em 1976, quando ele ajudou a renascer a já moribunda campanha de Ronald Reagan para presidente” ao convencê-lo a construir uma campanha contra a entrega do “nosso” Canal do Panamá a um ditador latino-americano, promovida pelo presidente democrata Jimmy Carter. A seqüência inicial de derrotas de Reagan nas primárias republicanas terminou com uma vitória na Carolina do Norte, que salvou sua improvável candidatura e pavimentou o caminho para sua eleição em 1980.

Segundo, o senador Helms foi pioneiro na fusão de valores e apelos – fortalecida por sua poderosa e bem direcionada máquina de arrecadação de dinheiro e propaganda midiática – que se tornou conhecida como “conservadorismo social”, na qual família, Deus e país são casados em uma nova direita republicana e cristã unida pelo anticomunismo, pelo racismo, pelo tradicionalismo e pelo desdém nativista por tudo que seja estrangeiro. Por último, Helms foi central para o ascenso do neoliberalismo em seu berço original na década de 1970, quando o general Augusto Pinochet subiu ao poder no sangrento golpe de 1973 contra a esquerda chilena.

Ao longo de sua carreira, Helms manteve-se pública e repetidamente ao lado de seus aliados próximos da direita na América Latina, fossem eles ditadores como Pinochet ou fundadores de esquadrões da morte, como Roberto D’Abuisson, de El Salvador. Fazendo favores para eles em Washington, Helms esteve no centro de uma aliança da extrema-direita interamericana que providenciou uma retaguarda aos opressores latino-americanos: as violações de direitos humanos no Chile eram um mito comunista, México era um covil de traficantes e D’Abussion “um homem profundamente religioso e defensor da livre empresa”. Como notaram seus auxiliares, ele sentia um profundo e pessoal ódio por Fidel Castro, e sua ascensão ao comando do Comitê de Relações Exteriores do Senado norte-americano, em 1995, possibilitou a construção do Ato Helms-Burton como parte de uma política externa que menospreza as Nações Unidas e enfatiza o uso unilateral de forças militares dos Estados Unidos, uma concepção que viria a se consolidar na era Bush.

Conhecido como “Mr. No” pela firmeza em sua convicção ideológica, Jesse Helms teria ficado feliz por morrer em 4 de julho de 2008, o dia da independência dos Estados Unidos. Mas veria com desdém, na melhor das hipóteses, os eleitores democratas de seu país, e mesmo da Carolina do Norte, que se dispuseram a votar em um negro “estrangeiro” com um nome esquisito. E aqui tocamos na essência do “Fenômeno Obama”, que marca mudanças profundas na sociedade e na política norte-americanas, independente do resultado das eleições de novembro. Após a morte de Helms, um repórter “sulista” proeminente e ex-porta-voz presidencial, Hodding Carter III, comentou que “nós sulistas passamos séculos tentando nos distanciar de instintos que Jesse Helms representava autenticamente. A cada avanço em nosso caminho havia pessoas como Helms dizendo, ‘não, não, não. Ouça a voz da opressão, do ódio racial, da intolerância, do medo. Eu digo, este é seu melhor instinto’... Muitas pessoas ficaram profundamente insatisfeitas com o fato de que a ordem tradicional havia finalmente desaparecido [depois do fim da segregação], e Jesse Helms dialogava diretamente com eles. E, como sempre nos Estados Unidos, existiu uma forte raiz nativista, esse medo do estrangeiro, essa sensação de que os outros sempre querem nos prejudicar... e ele trabalhou isso muito bem... Era um homem sem escrúpulos quando o assunto era atacar os outros, e um homem que sabia exatamente como evocar nossos piores instintos. Eu só tenho a lamentar que ele tenha tido 40 anos de vida política, o que é uma eternidade”.

O que seria mais adequado – ou mais esperançoso para o povo da América Latina e do Caribe – do que a ascensão de um mestiço como Barack Obama, alguém que se descreve como “um homem negro de herança mista, sempre consciente de como, por muitas gerações, pessoas parecidas comigo foram subjugadas e estigmatizadas, e das formas sutis e não tão sutis pelas quais raça e classe continuam a moldar nossas vidas”. O mundo inteiro está mudando com o avanço do século 21, e as Américas e seus povos são parte desse processo. Lutemos juntos para garantir o maior aproveitamento possível das novas oportunidades.

John D. French é historiador, professor na Duke Universit, Carolina do Norte.