Cultura

O mestre, o intelectual, o político

Alfredo Bosi, professor de Literatura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Se olharmos em retrospecto a história da crítica no Brasil, teremos, de um lado, grandes historiadores capazes de construir panoramas completos de nossas letras desde os tempos coloniais (Sílvio Romero, José Veríssimo) e, de outro lado, críticos – ensaístas que se debruçaram sobre autores e obras particulares: entre outros, Mário de Andrade, Augusto Meyer e Álvaro Lins.

Nenhum, porém, atingiu com força e brilho as duas metas, com a exceção de Antonio Candido. Ele escreveu a mais sólida de nossas histórias literárias, a Formação da Literatura Brasileira, matriz do nosso melhor pensamento crítico, insuperada até hoje. E legou-nos estudos exemplares sobre nossos principais romancistas, poetas e críticos.

Essa capacidade invulgar de dominar o conjunto de uma cultura e ao mesmo tempo iluminar as suas obras fundamentais confere a Antonio Candido o lugar de nosso maior e melhor crítico literário. A homenagem que lhe prestamos todos, seus alunos, leitores, admiradores e amigos, transcende sua carreira intelectual, pois também contempla o longo percurso do mestre de várias gerações e o cidadão que sempre militou pela democracia e pela justiça social.

Antonio Fernando De Franceschi,  professor e jornalista

No texto de orelha do volume de ensaios em homenagem a Antonio Candido, Dentro do Texto, Dentro da Vida (1992), Alfredo Bosi ressalta ser o homenageado o “mestre comum” de pelo menos duas gerações dos mais renomados docentes e ensaístas responsáveis pela crítica e o ensino da literatura no Brasil. Treze anos antes, em 1979, havia sido publicado, com a contribuição de admiradores e discípulos comuns de Antonio Candido, Esboço de Figura, coletânea de textos em comemoração a seu sexagésimo aniversário. Já o título sugeria a natureza aproximativa da antologia, mero bosquejo do que poderia ser o retrato do emérito professor e de sua densa, variada e imaginativa obra. Obra em progresso, lembre-se, à qual se acrescentariam depois livros de importância axial na produção do mestre, como Teresina Etc. (1980) e A Educação pela Noite (1987).

Mas, se o evolver da obra tornava difícil uma visão acabada da amplitude de seu significado e implicações, já então se havia consolidada a figura do intelectual exemplar que é Antonio Candido. Não se limitando à crítica literária, campo de sua predileção, seu interesse estende-se da teoria à militância, espelho do compromisso jamais relaxado com o mundo em que lhe coube viver. Agora, no marco de seus 90 anos, saudemos duplamente o grande mestre: pelo legado de sua profícua vida e o privilégio de tê-lo, tão longamente, como nosso contemporâneo.

Benjamin Abdala Junior, professor titular de Estudos Comparados da Universidade de São Paulo

Antonio Candido é um grande exemplo de coerência entre prática acadêmica e ação política. Desde os Anos de Chumbo, aprendi a ver – a partir da sabedoria de suas lições – como a literatura poderia ser uma forma de resistência e de promoção de valores humanos.

Lembro-me da lucidez de suas aulas e da elegância respeitosa de suas exposições. Recordo-me também das entrevistas em seu gabinete e de conversas, mais distensas em sua residência, na rua Bryaxis, onde com grande habilidade conseguia colocar em minhas palavras a resposta sobre os mais variados assuntos: literários, políticos e, mesmo, cotidianos. Uma arte verbal que às vezes se fazia espetáculo, como quando, com dicção portuguesa, reproduzia, de cor, trechos de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós.

Ao lado dessas afetividades, não posso me esquecer de sua solidariedade, quando minha nomeação ficou retida na triagem ideológica da USP por quase dois anos. Começava a organização da sociedade civil para a abertura política e Antonio Candido generosamente se colocou como vice-presidente da Associação dos Docentes da USP. Aceitei, então, seus conselhos e a ação da professora Maria Aparecida Santilli junto a uma CPI da Assembléia Legislativa. Consegui a nomeação ainda em tempos difíceis.

Esse apoio veio também quando dirigi duas séries de livros na Editora Ática. Entregou-me generosamente os originais de Na Sala de Aula e A Educação pela Noite, no qual estava o ensaio “Literatura e subdesenvolvimento” – uma das fontes para meus estudos de literatura comparada. Da América Latina estudada por Antonio Candido, estendi a idéia de bloco político-cultural para a comunidade dos países de língua portuguesa.

Estava aí também uma abertura para meus estudos posteriores, tendo em vista um “comparatismo da solidariedade”, para além daquele que veio das imposições históricas. O sentido político e a ação política assim associados em exercícios de ação intelectual que não se limitava às ritualizações e ensimesmamentos que por vezes enredam a vida acadêmica.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, presidente da Fapesp, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências

Antonio Candido tem sido, ao mesmo tempo, ao longo do seu belo e fecundo percurso de vida, um grande intelectual e um ser humano de virtudes excepcionais.

A sua obra tem como notas identificadoras a qualidade e a extensão do saber; a argúcia no trato dos múltiplos temas e assuntos a que se dedicou; a sabedoria no bom uso do pluralismo dos enfoques. É uma obra da maior importância para o entendimento do Brasil, da cultura e da literatura brasileira e da criação intelectual em suas múltiplas vertentes.

Antonio Candido é uma figura humana exemplar. Caracteriza o seu modo de ser uma admirável soma de virtudes. Entre elas destaco: a generosidade, a simplicidade, o humor, a coragem e o empenho em ser justo no trato das pessoas, das obras e das situações.

A percepção que, no correr dos anos, foi se generalizando, do significado dessas duas vertentes de Antonio Candido – a do intelectual e a sua obra e a do ser humano e a sua conduta – levaram, no cenário nacional, com desdobramentos internacionais, ao reconhecimento da auctoritas de um grande Mestre, cuja palavra tem peso e deve ser ponderada independentemente das convergências e divergências que suscita. Um Mestre que se exprime por meio de “uma tolerância sem concessões” e “uma firmeza sem rusticidade”, como observou Afonso Arinos em Esboço de Figura, o livro em homenagem aos 60 anos de Antonio Candido que organizei. Tornou-se, em nosso país, uma presença no sentido forte do termo à maneira de Gabriel Marcel, como apontou Luiz Dulci em estudo sobre os intelectuais e a criação do PT, inserido no volume publicado pela Fundação Perseu Abramo, voltado para celebrar os 80 anos de Antonio Candido.

Esta presença, cabe dizer, comemorando os seus 90, tem alcance geral. Ultrapassa o número dos muitos que tiveram e têm acesso ao encanto da convivência pessoal com Antonio Candido. Vai além das sucessivas gerações de seus alunos que tiveram, como eu, o privilégio de assistir a suas aulas e beneficiarse do paciencioso empenho com o qual se dedicou à formação de tanta gente. Transcende a especificidade dos campos do conhecimento, dos partidarismos políticos e arcos ideológicos, pois se trata de uma pessoa “que é melhor que as palavras possíveis da gente”, como de Antonio Can-dido disse Guimarães Rosa, que não era propriamente alguém que tinha dificuldades com a palavra.

Flavio Aguiar, editor da Agência Carta Maior, professor do programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira da USP

Conhecer Antonio Candido foi um privilégio de vida. Pelo afeto da amizade, pela inspiração intelectual, pela inteireza ética, pela alegria de viver. Antonio Candido é uma pessoa alegre, que ri e faz rir. É certo que compartilha com milhares e milhares de brasileiros uma perda fundamental. Diz ele que depois do golpe de 1964 nunca mais riu do mesmo jeito. Puxa, como devia rir bem antes! Mas como eu também nunca mais ri do mesmo jeito, apesar de muito mais jovem, eu entendo a palavra do Professor, assim com maiúscula.

Porque Antonio Candido é, sobretudo, um Professor. É um intelectual que atua no campo público. A imagem mais bela que tenho de Antonio Candido, entre as muitas belas que tenho, é a dele sobre uma precária mesinha no pátio da Faculdade de Medicina, na greve do funcionalismo público do estado de São Paulo, a primeira no gênero no Brasil, em 1979, conclamando a categoria à união. Ali se viu, diante da realidade das divisões por vezes futriquentas que assolam a esquerda brasileira, o traço profundo do militante de muitas décadas, desde o Estado Novo, contra todas as repressões, a favor de toda a forma de justiça social.

Antonio Candido é um homem de estilo. Desconheço pessoa mais elegante, em tudo. No amor. O amor que testemunhei de Antonio Candido por Dona Gilda, por suas filhas, pela liberdade, pela vida, pelo socialismo, pela universidade, pela inteligência, por seus alunos, pelo Brasil, pela América Latina. Antonio Candido é um exemplo de estilo elegante, de ser e de existência. Antonio Candido: palavra nobre e plebéia, soberana, ele, um exemplo de pessoa.

 

José Mindlin, bibliófilo

Antonio Candido já há muito tempo faz parte da cultura brasileira, independentemente de comemorações de aniversário, embora todos nós, seus amigos, fiquemos felizes por ele ter chegado aos 90 anos em plena forma e esperemos que complete o centenário.

Sua fama, mais que merecida, independe, no entanto, da cronologia. Ele é uma das minhas admirações na vida, e digo sempre que tenho pena de não ser mais moço que ele porque isso teria talvez permitido que eu fosse seu aluno. É um de nossos maiores e múltiplos talentos. Grande conversador, essa qualidade é menos mencionada que a do escritor e crítico literário, embora esteja bem à altura desses predicados. Tenho o privilégio de ser seu amigo praticamente de vida inteira, mesmo que isso, cronologicamente, possa não ser exato, pois os laços que nos unem não têm data.

Quando procuro um exemplo de afinidades eletivas, a primeira que me vem à lembrança é a desse sempre jovem amigo e intelectual. Admiro Antonio Candido, possivelmente até com uma pontinha de inveja, pois teria gostado de pensar e escrever com a clareza que o caracteriza. É bom que existam no mundo pessoas como Antonio Candido!

Hamilton Pereira (Pedro Tierra), ex-presidente da Fundação Perseu Abramo

Fazer da vida um permanente exercício de lucidez, num país em geral tão propenso a equívocos e mal-entendidos, não é tarefa simples. Manter-se coerente com princípios democráticos e socialistas, agindo numa cultura política entranhadamente oligárquica, é excepcional, mesmo no âmbito da esquerda, que, no Brasil como em outros lugares, reproduz, amiúde, valores da sociedade que combate.

A trajetória de Antonio Candido ao longo do século 20 descreve o perfil do intelectual que se afirma pela acuidade com que se debruça sobre a literatura, sem perder o horizonte das grandes contradições da sociedade brasileira. Tal percepção trouxe consigo, como um imperativo ético, um engajamento cuja marca tem sido a inteligência comprometida com a transformação social. O ofício de compreender e explicar a literatura e a sociedade brasileiras, desde um olhar de quem participa, sem conceder à tentação sectária, tem sido o seu desafio na crítica literária ou na militância social.

A percepção aguda do significado dos movimentos sociais dos anos 70; o reconhecimento da legitimidade da sua busca de representação política e a solidariedade ao seu impulso transformador seduziram personalidades da geração de Antonio Candido, como Mário Pedrosa, Lélia Abramo e Sérgio Buarque. Com sua presença no Colégio Sion, no 10 de fevereiro de 1980, sinalizaram que, durante a longa noite da ditadura, o Brasil gestara uma nova classe operária capaz de convocar intelectuais daquela estatura para a construção de um projeto socialista para o país.

Lígia Chiappini,  professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Livre de Berlim

Coerência sem rigidez, compreensão sem condescendência, autoridade sem autoritarismo, erudição sem ostentação, simplicidade com rigor, compromisso social sem sectarismo, defesa de princípios éticos fundamentais, com simpatia pela fragilidade humana. Eis algumas das lições que aprendi com a obra e a pessoa de Antonio Candido. Tive o privilégio de ser sua aluna na graduação e sua orientanda de mestrado e doutorado, tendo-o como examinador nos concursos de Livre-Docência, Adjunto e Titular. De 1973 até sua aposentadoria, em 1978, ainda pude trabalhar sob sua coordenação na Área de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Até hoje é um prazer visitá-lo para conversar sobre literatura, política ou outros temas da vida. Sempre quis ser Antonio Candido quando crescesse, mas isso é impossível, porque ele é único e a melhor homenagem que lhe podemos render é, sem deixar de reconhecer o muito que lhe devemos, tratar de desenvolver e trilhar os próprios caminhos. No meu caso, procurando incorporar na teoria e na prática as lições aprendidas, mas buscando manter em mim o que de melhor havia na estudante rebelde da Maria Antonia, com as impertinências da qual ele teve sempre uma paciência rara.

Luiz Dulci, ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República

Noventa anos tão dignos e fecundos como os de Antonio Candido nos incitam à celebração retrospectiva. E é justo que seja assim. Somos tentados a recordar momentos e episódios exemplares de sua incomparável trajetória humana, intelectual e civil. O homem moral coincide sempre com as suas ações, dizia Croce. Aqueles que tivemos – e que o tenhamos ainda por muitos anos – o privilégio de conviver com Antonio Candido somos tentados, sobretudo, a testemunhar o quanto a sua personalidade incidiu em nossas vidas, marcando-as para sempre, de modo indelével. Mas convém não esquecer a dimensão prospectiva desses esplêndidos 90 anos. Refiro-me à extraordinária atualidade do pensamento cultural e político de Antonio Candido. Basta mencionar, nesses tempos de estética do vazio e gratuito maneirismo espiritual, a sua defesa da literatura e das artes como poderosos instrumentos de figuração e transfiguração da realidade, como instâncias de autoconsciência e autotranscendência do humano. Basta mencionar, nesses tempos de “fim da história”, de deserção da inteligência, a sua crítica contundente à mercantilização da vida, a sua corajosa defesa da igualdade social, fruto de um compromisso inalienável com o destino das classes populares. A sua pioneira reivindicação – desde a década de 1940! – de uma síntese necessária entre socialismo e liberdade, e a nunca desmentida afirmação do socialismo democrático como horizonte civilizatório superior.

Maria Victoria de Mesquita Benevides, cientista política, professora na Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo

Com imensa alegria pude partilhar de momentos inesquecíveis com Antonio Candido, a quem sou eternamente grata, com reverência e afeto.

São momentos de militância política – de entusiasmo ou de aflição – sempre marcados pela lucidez e a serenidade do companheiro “mais velho”, que jamais elevou a voz em argumentos de autoridade ou, menos ainda, de intolerância. São momentos cruciais na luta em defesa dos direitos humanos, quando participamos da Comissão Justiça e Paz, sob a liderança de dom Paulo Arns. São momentos de puro encantamento, dentre os quais destaco sua palestra, no salão dos estudantes da São Francisco, sobre “A Literatura como um direito fundamental”. São momentos de muita graça, com suas imitações fantásticas de “personalidades”, conseguindo até ficar parecido com os indigitados. São momentos especiais de uma abençoada afinidade, quando ele lembra nossos antepassados mineiros, amigos e compadres.

Nesses quase 40 anos de convivência venho aprendendo muito com o querido mestre, desde a premissa essencial: “socialismo sem democracia não é socialismo, democracia sem socialismo não é democracia”. Que sorte.

Olgária Matos, filósofa, professora na FFLCH da USP

O professor Antonio Candido representa, na cultura brasileira, não apenas o scholar das Letras, mas, sobretudo, o intelectual que mantém uma relação singular com a literatura que é, para ele, a “arma” com a qual defende a dignidade do homem. Por isso, o professor Antonio Candido anotou que o direito à literatura é um dos direitos inalienáveis do homem e do cidadão. Entendendo a literatura como laço social, experiência intelectual e dos afetos, compreende os estudos literários como a quintessência de todos os ramos do conhecimento. A prática da literatura do professor Antonio Candido requer não apenas amor pelo conhecimento, mas um universo cultural que cada vez mais se desfaz na Universidade contemporânea. Esta tem acolhido populações que têm apenas um contato episódico e secundário com o mundo da cultura, sem o repertório intelectual que permite ao especialista que de fato o é atingir aquele ponto em que a fronteira entre as disciplinas se desfaz. Por isso, o professor Antonio Candido é uma referência não somente dos estudos literários, mas de todas as Humanidades.

Pablo Rocca, Universidade da República, Montevidéu, Uruguai

Um dos grandes empenhos do professor Antonio Candido tem sido a abertura para com seus vizinhos, a tarefa de correlacionar a literatura brasileira com a hispanoamericana. Gostaria de vê-lo sob esta perspectiva, a que me toca diretamente. Muitos de seus trabalhos, particularmente Literatura e Subdesenvolvimento (1972) não só conseguiram cumprir este anseio, como também abriram uma via de diálogo intelectual fecundo que se pode verificar em textos posteriores de seu grande amigo Ángel Rama. Esta história começou em Montevidéu, em 1960, quando Candido foi convidado a dar um curso de verão na Universidade da República, que é uma instituição pública leiga e gratuita deste pequeno país meridional.

Seus alunos no curso ouviram falar pela primeira vez de Guimarães Rosa fora do Brasil, cinco anos antes de Grande Sertão, Veredas ser traduzido em espanhol e quando não havia sequer um conto do escritor mineiro divulgado nesta língua. Além disso, Rama divulgou pioneiramente os conceitos fundamentais do então recente Formação da Literatura Brasileira no semanário de Montevidéu Marcha. Os anos e as vicissitudes consolidaram esta amizade e este intercâmbio intelectual, que veio a se expandir recentemente até outros pontos do subcontinente.

Nós que chegamos bem depois pudemos reconstruir este trajeto comum e, ao mesmo tempo, inteirar-nos de que Candido não só é um refinado intelectual, como também de uma ética irretocável. Onde quer que se vá, pode-se aproveitar suas lições para continuar refletindo sem dubiedades nem ortodoxias. Este é talvez seu melhor legado, o que o coloca na primeira linha dos mestres latinoamericanos.

Paul Singer, economista, secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego

Além da grande contribuição aos estudos literários, Antonio Candido também tem sido destacado pensador e militante do socialismo democrático no Brasil, desde a luta contra a ditadura do Estado Novo (1937–1945). Foi um dos fundadores da Esquerda Democrática, quando da redemocratização do país, que pouco depois se tornou o Partido Socialista Brasileiro. Conheci-o nesta condição, como dirigente partidário e integrante duma plêiade de intelectuais, que exerceram influência decisiva sobre a nova geração, que despertava para a política no pós-guerra, época marcada pela vitória sobre o nazifascismo das democracias ocidentais e da União Soviética.

Antonio Candido se engajou na luta contra a repressão do regime militar, sendo um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Recordo com emoção a série de debates sobre o socialismo que organizou, a pedido de Lula, no fim do século passado. Ele aceitou a tarefa e convocou, para ajudá-lo, Chico de Oliveira e a mim. Os debates se estenderam por meses, em três séries, e contaram com a participação de lideranças teóricas e da alta direção do partido. Eles certamente contribuíram para definir os rumos da esquerda brasileira na nova etapa histórica que se abriu com o desaparecimento da União Soviética, o fim da Guerra Fria e o ressurgimento vigoroso dos movimentos sociais do povo trabalhador. Com sua fina inteligência e senso de humor, Antonio Candido mostra com seu exemplo que criação cultural e revolução social e política são atividades que não precisam se excluir, mas se complementam com proveito.

Paulo Vannuchi, secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

No sofá que ele me indicava, de costas para uma prateleira inteira de Proust, eu podia sorver cada palavra de uma narrativa serena e forte descortinando história, vida, tempo, amigos, literatura, socialismo, PT. Era Brasil o tempo todo. Clareza, claridade, clarividência, luz. Sempre com arremate modesto: “Não entendo de política, meu negócio é literatura”.

Foi a missão mais honrosa que recebi de Lula nos anos em que fui seu assessor. Visitando-o no apartamento da Joaquim Eugênio de Lima, o futuro presidente da República pediu ao professor para coordenar seminários que trouxessem de volta o debate livre de idéias no partido. Aceitou prontamente a tarefa e começaram a nascer assim os seminários “Socialismo e Democracia”. Ele, eu, Paul Singer, Chico Oliveira, em seguida Ricardo Azevedo e Joaquim Soriano. Éramos seis.

Delicioso e infalível, o pão-de-minuto era servido, às vezes, pelas mãos da própria professora Gilda, sua mulher e também amiga de vida inteira, intelectual de porte, responsável por resistir e manter aberto o Departamento de Filosofia da USP nos anos mais terríveis da ditadura.

O fruto daquele pedido de Lula ainda pode ser lido hoje nos pequenos livros que a Fundação Perseu Abramo produziu e espalhou pelo país. Faz tão pouco tempo, parece tanto tempo. O que rolou de lá para cá? Lula virou presidente. Abriram-se trajetórias novas de inclusão, soberania e participação. Também desacordos quanto ao rumo e ao ritmo. O velho sábio acompanha tudo de perto, apostando sempre na esperança. Sofreu como ninguém os dias tenebrosos e intermináveis de 2005, prenhe de revelações chocantes, de cinismo, de mentiras e de recursos não contabilizados.

“Não é possível, Paulo, não podemos trair assim a confiança que toda a América Latina depositou em nós!” Ouvi dele essa exclamação machucada, profunda, cortante. Mas Antonio Candido não foi embora. Ficou. E ficou porque segue confiante na possibilidade de mudar e corrigir caminhos. Aos 90 anos, ele já incorpora em cada fibra a força do tempo. Antonio Candido é o tempo.

Zilah Abramo, presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

Eu costumo dizer que o meu título acadêmico mais importante é o de ter tido Antonio Candido como paraninfo da minha turma de bacharelandos da Faculdade de Filosofia da USP, em 1947. Essa não foi uma escolha banal. Nós, os alunos, através de uma campanha aguerrida, o elegemos como desagravo a sua preterição, através de manobras escusas, no concurso para a cátedra de Literatura Brasileira. Considero essa campanha como um dos atos políticos mais importantes da minha vida universitária.

Depois disso, era natural que minha associação com Antonio Candido se desse mais no plano político do que no acadêmico. Fomos companheiros no Partido Socialista Brasileiro dos anos 50, continuamos a lutar com as mesmas bandeiras, na resistência contra a ditadura, especialmente na grande greve do funcionalismo de 1979, quando ele atuava como vice-presidente da ADUSP e eu integrava as hostes da Saúde. Finalmente nos encontramos no Colégio Sion, no dia da fundação do PT. Quando vi Antonio Candido, entre os demais companheiros do PSB antigo, tive a certeza de que estava no lugar certo.