Como a abundância de recursos, juros baixos e falta de regulamentação estimulou o capital a procurar alternativas arriscadíssimas para melhorar a sua remuneração
Como a abundância de recursos, juros baixos e falta de regulamentação estimulou o capital a procurar alternativas arriscadíssimas para melhorar a sua remuneração
Para simplificar as coisas, vamos admitir com humildade que não dá para prever com clareza o tamanho das conseqüências desta crise financeira – ao que parece, a maior da história contemporânea. Mesmo porque, como fica claro nos acontecimentos que se seguem, uma parte importante das ações econômicas e financeiras – julgada absurda antes, durante e depois de sua ocorrência – vai transcorrendo quase inevitavelmente, por impulsos, remendos, oportunismo, ingenuidade e até por cegueira dos agentes econômicos e seus intelectuais.
Para entender a crise e tentar olhar para seus desdobramentos é preciso, antes de mais nada, atentar para dois fatores:
• O comportamento dos consumidores norte-americanos, cuja demanda mobiliza direta e indiretamente fábricas, fazendas, mineradoras, usinas e toda ordem de bens e serviços do mundo todo. E tenha em mente que mesmo menor, nos últimos anos, a dependência brasileira do mercado americano, outros clientes do país, na China, Índia ou onde quer que seja, bebem nas águas do dólar para aqui se abastecer de minérios, alimentos, aviões e outras coisas nossas.
• O enorme aumento da quantidade de recursos em moedas fortes – gerados em boa medida pela venda de produtos do mundo inteiro para os Estados Unidos – provoca a procura de alternativas rentáveis, uma vez que as taxas de remuneração pagas nos títulos mais seguros são declinantes. É importante dizer que há uns bons vinte e tantos anos vinha prevalecendo a idéia de auto-regulação dos mercados (o que quer dizer, na verdade, desregulamentação), destituindo moralmente as possibilidades de controle e intervenção do Estado nas operações com parte substancial dessa dinheirama.
De todas as riquezas apuradas pelos Estados Unidos, o que dá alguma coisa próxima a US$ 15 trilhões, nada menos que 70% (US$ 10,5 trilhões)dizem respeito ao consumo das famílias. E a população, como lembra Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia deste ano, vem gastando mais do que ganha. Na década de 1980, ainda se poupavam 10% dos ganhos. Recentemente, não se guarda praticamente nada. Para que poupar, pondera, se qualquer sonho de consumo pode ser realizado por meio de empréstimos fartos e baratos, com prazos a perder de vista? Krugman observa que a dívida total dos consumidores, não raro, chega a ser maior do que o PIB.
Note que o governo de Washington segue os mesmos padrões dos seus cidadãos. As despesas têm sido largamente superiores à arrecadação, resultando em déficits anuais crescentes, superiores a US$ 400 bilhões – o que não inclui os recentes aportes de recursos para salvar instituições bancárias. A soma de toda a dívida emitida nos EUA é da ordem de US$ 45 trilhões – três vezes o PIB.
A máquina financeira para manter esses americanos abastecidos é pródiga. No que se refere ao Estado, que pode emitir dólares e títulos do Tesouro (Treasuries), isso é resolvido com a venda desses singelos produtos a quem, ao contrário, poupa muito, às vezes excessivamente (como a China e o Japão), na forma de reservas. Ironicamente, os norte-americanos, os grandes consumidores do mundo, investem produtivamente na Ásia – onde o preço e os direitos da mão-de-obra são muito inferiores –, importam os bens lá fabricados e depois têm seu consumo interno financiado por esses mesmos estrangeiros. Juntam-se a essa lista de credores dos EUA quase todos os exportadores do mundo, os países produtores de petróleo e até o Brasil, que coloca lá uma parcela ponderável de sua reserva de US$ 200 bilhões.
No caso dos consumidores, há uma base de empréstimos bancários multiplicadores, que tem origem na casa própria. Com um bem imóvel financiado que dá como garantia (hipoteca), o americano tem acesso a um mundo de outros créditos para comprar carros, eletroeletrônicos, pacotes de viagem e tudo o que as vitrines e os catálogos do universo do consumo colocam à sua disposição.
O que tornou essa equação crítica foi o fato de que esse incrível afluxo de recursos ao mercado norte-americano foi pressionando negativamente as taxas de juros. Quanto mais aplicadores disputavam os títulos do Tesouro, mais o preço desses papéis subia, o que significa menor taxa final de remuneração. Um exemplo simplista, meramente ilustrativo: um papel do Tesouro por dez anos, que o governo vendia a US$ 60 para recomprá-lo a US$ 100, no final do período (4% ao ano), podia, em momentos de forte procura, ser revendido no mercado a US$ 70 (3% ao ano). Para quem está acostumado a conviver com as altas taxas brasileiras de CDB e DI, por exemplo (acima de 10% ao ano), é bem fácil imaginar o que representa uma remuneração de 2% a 4% ao ano nos Estados Unidos. Além do que, em algumas praças, como o Japão, o juro não passa de 0,5% anual. Essa é a base do movimento especulativo que o mundo iria conhecer e resultou na quebradeira iniciada em setembro de 2008.
Se de um lado parte dessa liquidez toda era canalizada para ativos com lastro efetivo, como as bolsas de valores – incluindo a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) –, ou fundos de investimento em participação em empresas (o chamado private equity), ou ainda para papéis brasileiros, graças às sensacionais taxas de juros alimentadas pelo Banco Central do Brasil; de outro serviu para sustentar negócios insustentáveis no mercado imobiliário dos Estados Unidos.