Cultura

No dia 16 de agosto deste ano, a MPB perdeu um de seus mais geniais representantes: o baiano Dorival Caymmi, aos 94 anos, sendo 60 deles dedicados à música, poesia e pintura

No dia 16 de agosto deste ano, a música popular brasileira perdeu um de seus mais geniais representantes: o baiano Dorival Caymmi, aos 94 anos, sendo 60 deles dedicados à música, poesia e pintura

Dorival Caymmi tinha muitas facetas e no entanto era sempre o mesmo. Artista completo, brejeira figura renascentista de uma Bahia utópica, era o que era, autêntico como pintor, como cantor, como pai, como amigo e até como ator – foi “galã” no filme Estrela da Manhã, de 1950. Bom sujeito, bom de papo, apreciava as coisas simples e belas da vida, aquelas que podia tocar, que podia sentir: as mulheres, o mar – “amplidão aberta” –, a terra natal, as palavras.

Estas, ele saboreava como ninguém. Maracangalha, por exemplo. Nunca foi para lá, mas quando ouviu a palavra da boca do amigo Zezinho tomou-a nas mãos, sentiu-lhe os contornos e compôs um de seus sambas mais famosos, hino feliz à liberdade: “Se a Anália não quiser ir eu vou só”. Sim, só, pois Maracangalha é sua Pasárgada, onde é amigo do rei e se deita com a mulher que escolher.

Balangandã era outra de suas palavras saborosas. Aprendeu-a com o tio Nonô, o “cigano”, que era ourives e lhe mostrou a jóia. Foi daí que surgiu O que é que a baiana tem?, seu primeiro grande sucesso, em dueto com Carmem Miranda. Aliás, diga-se, foi Caymmi quem “inventou” a pequena notável, tal como ela ficou conhecida no mundo inteiro. Na excelente biografia escrita pela neta Stella há uma declaração do radialista Alziro Zarur: “Se não houvesse balangandãs, torço de seda, e se não houvesse Dorival Caymmi, não haveria Carmem Miranda, nem seu sucesso nos Estados Unidos”.

Exagero à parte, a história diz que os produtores do filme Banana da Terra (1939), depois de recusarem o preço exorbitante de uma canção de Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro), adotaram a solução mais barata de um moço “desconhecido mas muito talentoso”. Ouviram O Que É Que a Baiana Tem? e se encantaram de imediato. A música era perfeita para sua estrela e para o cenário que já estava montado. Então Carmem Miranda foi com seu carro glamoroso à pequena pensão em que morava o jovem Caymmi e o levou ao ateliê de seu figurinista, para que ele lhe explicasse como eram as roupas e adereços da baiana. Durante as filmagens, Caymmi também ensinou à nova amiga os trejeitos da baiana ao cantar. Pronto! Estava construído um dos maiores mitos da cultura mundial. Carmem retomaria a canção, o torço de seda e os balangandãs no filme hollywoodiano Serenata de Amor, em 1944, no qual contracenou com Don Ameche. A fita caiu no gosto popular e tornou o samba brasileiro conhecido no planeta.

Sempre modesto, pronto a dividir parcerias com os amigos em forma de homenagem, Caymmi também modernizou a música brasileira. Tinha um modo peculiar de compor. Certa vez, declarou: “Eu, por conta própria, sempre tive tendência para alterar os acordes perfeitos. Tirava o dedo de uma corda e punha em outra, procurando a harmonia diferente”. Essa harmonia diferente ele buscava ao somar o impressionismo europeu de Debussy e Ravel, compositores que ouvia atentamente, ao samba baiano. Incorporando languidamente a modernidade, a dissonância, ao arcaísmo do mundo pré-industrial, Caymmi inovou com suavidade, sem alarde, sem explosão.

O Mar é, talvez, o melhor exemplo dessa mistura em que coexistem tradição e invenção. Começa com uma orquestração sombria, que reproduz, como música, o movimento das ondas. A semelhança com La Mer de Debussy não é à toa. Em seguida vem a descrição simples, mas de grande poder de evocação: “O mar, quando quebra na praia....” E então o ritmo se sobrepõe à melodia. O ouvinte é imediatamente carregado pela maré da canção, até chegar em Itapuã.

Por essas características e também por uma aproximação precoce com o jazz, que ouvia avidamente, pode-se dizer que Caymmi foi claramente um precursor da bossa nova, como os próprios Tom Jobim e João Gilberto admitiam. O crítico Luís Antonio Giron sublinhou a arquitetura pré-bossa de Caymmi: “Talvez por se esquivar ao quadrado, tenha sido adotado pelos grupos vocais dos anos 40, como Os Anjos do Inferno, que tentavam a fusão do samba brasileiro com o swing norte-americano. O contorno afro aproximou de viés o estilo de Caymmi ao jazz. Daí ele soar tão cosmopolita desde a estréia”.

Sua poética também é inovadora, pura poesia modernista. Basta ver como usava as reiterações. “O bem do mar é o mar é o mar...” remete a “uma rosa é uma rosa é uma rosa” da vanguardista Gertrude Stein. Temporal, com seus simples vocativos pontuando o ritmo, é puro Drummond:
Pedro!
Chico!
Lino!
Zeca!
Cadê vocês?
Oh Mãe de Deus...
Eu bem que disse a José: Não vá, José. Não vá, José.

E não se pode esquecer da voz, grave, sensual, um instrumento à altura de seu talento como compositor. Aliás, ele inovou também ao cantar as próprias canções, o que não era muito comum quando começou, nos anos 30.

Preguiça e despojamento

Um dos mitos em torno de Caymmi que precisam ser derrubados é o da preguiça. Não que ele não a ostentasse e admitisse, com seu largo sorriso brejeiro (“eu sou preguiçoso assumido, eu tenho uma preguiça extraordinária. Todos os adereços em torno da palavra preguiça eu uso e abuso”), mas não era a preguiça quem ditava seu ritmo na hora de compor, e sim a auto-exigência. Pois Caymmi, que “só” compôs pouco mais de 100 canções ao longo de 60 anos de carreira, era um perfeccionista, um artesão que depurava as canções até chegarem ao ponto de ser a tradução precisa do que queria dizer, do que queria mostrar, do que queria fazer sentir. Chegava a demorar-se anos na composição de uma canção. Limava tudo o que soasse pomposo, sentimental, inexato. Era mesmo um poeta da palavra musicada, de certa forma, à altura de muitos daqueles que lia com avidez, como Neruda, Bandeira e García Lorca.

Sua aparente espontaneidade não refletia sua forma de compor; era uma espontaneidade construída, sílaba a sílaba, nota a nota. Curiosamente, Caymmi compunha de cabeça, letra e melodia, sem o uso do violão. Tinha a habilidade natural de visualizar a música sem suporte.

Marina, canção que no dizer de Antonio Risério (em Caymmi: Uma Utopia de Lugar) traz a “limpidez verbal imune ao hiperbólico”, é talvez o melhor exemplo dessa proposta de espontaneidade construída, de despojamento. Ao pedir que a amada tire a pintura do rosto, Caymmi está fazendo uma profissão de fé. Está dizendo que a música, ela também, é mais bonita sem maquiagem. Por isso ele não gostou nem um pouco da versão espalhafatosa que Gil fez da canção. Aliás, não gostava de nenhum intérprete de suas canções. A exceção era João Gilberto, que soube como ninguém fazer suas versões “com o que Caymmi lhe deu”.

Balaio grande
Ainda que fosse assíduo admirador das mulheres, de seu corpo e gingado, Caymmi pouco falava de amor, e muito menos do amor sofrido, não-correspondido, ou do amor traído, de “corno”, como nas canções noturnas de Lupicínio Rodrigues. Para ele, o importante era “uma nega que saiba mexê” e tenha um “balaio grande”. O mundo assim se completava, principalmente se ela estivesse na praia de Itapuã ou na lagoa do Abaeté. É o jeitinho requebrado da nega, o “dengo que essa nega tem”, o “magnífico espetáculo das ancas em vai-e-vem”. O amor, para ele, é puramente carnal, solar, nada tem do sentimento romântico idealizado. O ideal em Caymmi é a praia, o mar, a mulher, coisas concretas.

Depois, nos chamados sambas urbanos, ou sambas-canção, que compôs no Rio, para onde foi em 1938 a bordo de “um Ita no norte” (na verdade o navio chamava-se Itapé), viria a falar desse amor mais, digamos, sublime. Como em Nem Eu (“Quem inventou o amor não fui eu, não fui eu,/Não fui eu, não fui eu, nem ninguém”) ou Só Louco, em que o “insensato coração” faz sofrer. Na verdade, essas canções são muito diferentes dos chamados sambas praieiros, os quais continuou a compor.

Enquanto aqueles se construíam à luz do sol, ao sabor do vento do mar, no espaço aberto, os sambas urbanos se fecharam na intimidade do apartamento, ficaram mais discretos, contidos, mais próximos do bolero, da balada. É outro Caymmi. Mas é o mesmo Caymmi.

Política
Na política, uma sua faceta desconhecida, não poderia ser diferente: era autenticamente apolítico, mas um apolítico de esquerda, ligado às esferas populares. Cantava as dificuldades do pescador humilde de Itapuã, mas sua preocupação social tinha mais de estética que de política. Seus personagens pescadores pouco tinham de revolucionário; eram, ao contrário, felizes, perfeitamente adequados à harmonia atemporal de seu entorno idílico, onde o único sofrimento era a morte no mar (e mesmo essa morte é doce: o pescador, “bravo e belo, conhece, ao se afogar, as graças sexuais de sua mãe mítica”, como escreveu Risério).

Jorge Amado, seu melhor amigo e parceiro em É Doce Morrer no Mar, disse: “Não creio na arte pela arte e eis que esse compositor tampouco o crê. Não que seja interessadamente social ou político. Mas o social – e mesmo o político – se impõe sobrando da dor em torno, da miséria em derredor. A vida difícil dos pescadores lhe fornece suas melhores composições...”

Ainda assim, chegou a participar de reuniões do Partido Comunista, episódio pouco comentado de sua biografia, e foi figura ativa na campanha eleitoral de Luís Carlos Prestes ao Senado, e também na campanha de Jorge Amado a uma cadeira de deputado estadual, em 1945. É dele e de Jorge Amado o hino da campanha do líder comunista, cujo refrão assim dizia: “Ordem e tranqüilidade/Progresso e Democracia/Para o povo igualdade/O Partido é nosso guia”. Segundo a biografia de Stella Caymmi, foi cooptado em São Paulo, pelo pintor Clóvis Graciano, na casa de quem costumava se hospedar. Chegou a discursar para operários em São Miguel Paulista, o que deve ter produzido algum impacto, pois já era bastante famoso.

Ele mesmo lembra dessa época: “Eu me integrei sempre com o que havia de mais intelectual aqui no Rio, e forçosamente tinha de cair no Partido Comunista (...). Era um negócio idealista, com idéias muito bonitas para o desenvolvimento da cultura do povo. Minha ‘envolvência’ não era política, era apenas uma ‘envolvência’ de amigo, de admirador (...)”.

Mesmo assim, passou a ser perseguido pela polícia. Foi interrogado por conta de sua participação no I Congresso dos Escritores, quando, ao final, depois de uma manifestação contra a ditadura estado-novista, Jorge Amado e Caio Prado Júnior foram presos (e logo libertados). Teve de explicar também o que fazia em reuniões com vários comunistas famosos, ao lado de sua mulher, Stella Maris, também cantora (a favorita de João Gilberto). Mas safou-se, para o bem da música brasileira e – por que não? – mundial.

Daniel Benevides é jornalista.