Internacional

Obama venceu Hillary Clinton nas prévias do Partido Democrata, ganhou corações e mentes mundo afora e deixou para trás o republicano John McCain

m 2003, o jovem senador negro por Illinois desafiou os 75% da população dos Estados Unidos favoráveis à invasão ilegal e criminosa do Iraque. Barack Obama condenou a guerra. Cinco anos mais tarde, a conjuntura norte-americana mostrava que o eleitorado queria, desesperadamente, uma mensagem de mudança, algo novo que pudesse superar os oito anos da pior Presidência da história do país, levada a cabo pelo belicista George Bush. Obama venceu Hillary Clinton nas prévias do Partido Democrata, ganhou corações e mentes mundo afora e, em 4 de novembro, deixou para trás o republicano John McCain

Num artigo para a New Yorker, Ryan Lizza relata que em 2007, no início da campanha das primárias democratas nos Estados Unidos, a CNN e o YouTube promoveram um debate no qual se perguntou a Barack Obama: “Você aceitaria se encontrar sem precondições, no seu primeiro ano de governo, em Washington ou qualquer outro lugar, com os líderes de Irã, Síria, Venezuela, Cuba e Coréia do Norte, para tentar superar a divisão entre os nossos países?” Obama respondeu: “Sim, aceitaria”. Massacrada por Hillary Clinton e outros presidenciáveis por essa resposta, a campanha discutia as formas de minimizar a afirmação. A equipe se preparava para a guerra do spinning. Obama entrou na conversa de forma peremptória: ninguém massagearia a declaração para desdizê-la. “A idéia de que não podemos nos reunir com Ahmadinejad é ridícula. Trata se de um monte de sabedoria convencional de Washington que não faz o menor sentido. Não vamos fugir desse debate. Vamos estimulá-lo” decretou Obama. Em vez de redigir um memorando à imprensa driblando a questão, a equipe escreveu uma nota afirmativa, que passava ao ataque. Foi a primeira troca de fogo aberta com Hillary Clinton. Foi também o momento em que seus assessores entenderam que se tratava de um candidato diferente.

Numa conversa em 2008, uma ativista da campanha de Obama me contava dos planos de derrotar os republicanos na Carolina do Norte, estado que não votava democrata desde 1976. Era mais ou menos como encontrar um comitê tucano convicto que se prepara para derrotar Lula numa eleição direta em Pernambuco. Mesmo Bill Clinton, um democrata sulista eleito duas vezes carregando vários estados do Sul, não vencera a Carolina do Norte. O nativo John Edwards, um democrata conhecido no país, posto que ex-candidato a vice-presidente, abandonou o Senado, já que sentiu que não conseguiria enfrentar o voto conservador na Carolina do Norte. Na era moderna, o único assento cativo do estado no Senado Federal havia pertencido a Jesse Helms, um ultra-reacionário da extrema-direita do já direitista espectro político americano. Ao ouvir os planos da campanha para a Carolina do Norte, eu dei uma gargalhada: “Você está me dizendo que um negão democrata de nome Hussein, formado em Harvard, vai bater o São McCain no estado de Jesse Helms, no coração do Sul segregacionista?” Ela tirou um mapa da gaveta e passou à demonstração: “Você conhece a Carolina do Norte. Veja como cresceu a área universitária desde que você morou lá. Agora veja a mudança na demografia do norte do estado de 2004 para cá. Agora veja os números das primárias. Agora observe quantos eleitores nós registramos” Atônito, eu acompanhava a matemática e reconhecia que fazia sentido. Uma semana depois, saía uma pesquisa que já mostrava Obama virtualmente empatado com McCain na Carolina do Norte. No dia 4 de novembro, Obama colocou o estado na coluna democrata pela primeira vez desde Jimmy Carter.

As anedotas revelam duas belas novidades representadas pela campanha de Obama: o fim da política da triangulação e o fim do focalismo eleitoral, dois elementos do que poderíamos chamar a política do medo entre os progressistas americanos. Tratava se, simplesmente, dos dois maiores dogmas do Partido Democrata nas últimas décadas, as crenças de que 1) mover-se para a centro-direita, “triangulando” e manipulando as próprias convicções pela conveniência, era a única estratégia política capaz de derrotar os republicanos; 2) a focalização em três ou quatro estados decisivos (e, dentro deles, em demografias específicas) era a única tática eleitoral viável, posto que os outros estados eram descartados como terrenos democratas ou republicanos já sólidos. Como esses dois dogmas tinham a força de lei natural e a pré-candidata que os representava tinha o reconhecimento do nome e a máquina do partido, as primárias democratas pareciam uma cerimônia pro forma para coroar Hillary Clinton.

Apesar da novidade histórica que poderia representar a eleição da primeira mulher para presidente da superpotência, a perspectiva de uma Presidência Hillary não era animadora para o setor mais progressista do Partido Democrata: a combinação entre a disposição de triangular e a estratégia polarizadora de buscar sempre os 50% + 1 faziam de sua candidatura uma espécie de mal menor com o qual os progressistas devíamos nos conformar. Esse caráter conservador reforçou-se quando Al Gore decidiu não ser candidato. Hillary se apresentava agora como “candidata inevitável” a única em condições de derrotar John McCain no voto popular. O argumento em favor da inevitabilidade de algo termina sendo sempre conservador, claro. Hillary abraçou-o num ano em que o eleitorado dos EUA queria, desesperadamente, uma mensagem de mudança, algo novo, uma realidade possível mas ainda não imaginada. Neste ano os EUA queriam, digamos, justamente o oposto do inevitável. Foi seu primeiro erro.

O focalismo do setor dominante do partido – o chamado Conselho de Liderança Democrata (DLC), ao qual se vinculam os Clinton – havia sido defendido com êxito por marqueteiros como Mark Penn, cuja condição de “guru” se baseava numa única vitória eleitoral nos anos 90. Esse focalismo foi responsável pelo segundo erro da campanha de Hillary Clinton, de caráter bem mais básico que o primeiro. Não leram as regras das primárias, não imaginaram que a disputa pudesse passar da Super-Terça (a quarta data das primárias, depois de Iowa, New Hampshire e Carolina do Sul, na qual vinte estados escolhem seus delegados), não se prepararam para os estados que escolhiam delegados através de assembléias. Enquanto isso, a equipe de Obama descobria que uma vitória num estado minúsculo como Idaho (com assembléias) poderia render mais delegados que uma vitória eleitoral num estado populoso como Nova Jersey. Obama lançou-se a um trabalho de organização que foi também uma revisão no que se entendia por democracia. O voto universal e secreto, nas primárias democratas, coexistia com a democracia organizada e popular das assembléias. Nestas, sua vantagem foi enorme. Na medida em que avançava, a liderança de Obama na contagem de delegados foi carregando também o voto popular, rumo a uma vitória incontestável nas primárias.

Tudo isso conspirou para que Obama conquistasse uma improvável indicação no Partido Democrata. Mas o fundamento mesmo do fenômeno, o ato que possibilitou a vitória e conferiu à “onda Obama” a sua âncora básica, foi o posicionamento do jovem senador de Illinois em 2003, quando se colocou a questão política e moral definitiva do seu tempo: a invasão ilegal e criminosa do Iraque, baseada em mentiras fabricadas pela administração Bush. Num momento em que 75% do país se posicionava do lado belicista e patrioteiro, Obama teve a coerência e a coragem de ser inequívoco na condenação à guerra. Num ambiente político como o norte-americano do começo da década, não era pouco. Essa foi a condição de possibilidade da candidatura. Logo depois, o discurso memorável na convenção democrata de 2004 o tornaria conhecido de todo o país.

É certo que, ao longo da viabilização de Obama como candidato, sua negritude foi passando a ocupar um papel de destaque, mesmo que às vezes oblíquo, não mencionado. A princípio, entre o próprio eleitorado negro Obama não figurava com índices altos, posto que eles duvidavam de sua viabilidade. Na terceira data da primária democrata, na Carolina do Sul (Obama havia vencido em Iowa e Hillary em New Hampshire), Bill Clinton fez o famoso comentário com desdém sobre a candidatura de Obama: “Ah, Jesse Jackson também venceu na Carolina do Sul em 1984 e 1988...” Não se tratava, nem de longe, de uma frase racista, que fique claro. Era uma suposição demográfica que Bill tentava usar como tática eleitoral divisionista, como parte da estratégia de inevitabilidade da campanha Hillary. Havia boas razões para supor que um candidato como Barack Obama – “inexperiente” negro, liberal – não seria páreo para um suposto “herói de guerra” e republicano moderado como John McCain. Mas 2008 não era um ano normal. Saía-se de oito anos da pior – da mais mentirosa, fiscalmente irresponsável e belicamente criminosa – Presidência da história dos EstadosUnidos. Perceber essa singularidade epocal foi outro mérito de Obama.

Obama sabia que a questão racial apareceria e ela se instalou quando se desenterraram as declarações incendiárias do seu pastor, Jeremiah Wright, contra a injustiça “na América” Sendo uma igreja negra, os sermões inevitavelmente continham trechos que testemunhavam a divisão racial profunda do país. Junto com a crítica à opressão, incluíam algumas teorias conspiratórias sobre a disseminação da Aids ou pontos de vista pseudocientíficos sobre diferenças mentais entre euro e afro americanos. A reação de Obama à controvérsia, no discurso de 18 de março de 2008 que ficou conhecido como “Uma união mais perfeita” foi um salto qualitativo gigantesco na maturidade das discussões sobre raça nos Estados Unidos. Grosso modo, se poderia dizer que foi a primeira vez que um candidato a presidente discursou aos compatriotas como adultos acerca do tema racial.

Falando na Filadélfia e evocando o documento fundador do país e sua grande chaga, a escravidão, Obama fez o contrário do que seria de se esperar numa situação embaraçosa de “culpa por associação” Em vez de minimizar a polêmica ou descartá-la, discursou sobre as raízes do ressentimento que se via nos discursos de Wright, localizando-as na totalidade da experiência negra nos EUA. Em vez de “triangular” em volta da associação, encarou-a como parte integrante, no bom e no ruim, da sua experiência de vida. Condenou as declarações que julgava equivocadas, mas chegou a dizer que renegar seu pastor seria como renegar a sua avó branca. Ao falar do ressentimento, não deixou de mencionar os brancos pobres, que, com freqüência, sentem que sua raça não lhes serviu de nada e que a culpa é dos negros beneficiados por ações afirmativas ou dos hispanos imigrantes que forçam para baixo os salários do mercado. Durante os quase 40 minutos de reflexão, o tom foi de compreensão das feridas raciais do país, mas também de convicção de que a unidade para transcendê-las era a forma de legar um futuro às novas gerações. Depois do discurso, já estava esvaziado de antemão qualquer intento de usar a questão racial como arma divisionista contra Obama.

O uso inteligente da internet e o mapa eleitoral montado pela jovem campanha de Obama fizeram o resto. Na Virgínia e na Carolina do Norte, estados “vermelhos” (republicanos) sulistas com mudanças demográficas vinculadas à expansão universitária, Obama compreendeu que suas chances de vitória residiam nas matrículas de eleitores de 18-30 anos e no comparecimento afro-americano maciço. No Oeste, Obama abriu outra frente de vitória em estados vermelhos, ao entender a mudança demográfica do Colorado (o crescimento dos latinos) e manter a infra-estrutura herdada das assembléias das primárias em estados como Nevada. No cinturão industrial do Meio-Oeste, onde profetas do apocalipse decretavam que Obama não teria chances, pelo racismo dos eleitores operários brancos, seu discurso econômico transmitiu a mensagem que precisava. Ganhou o perene campo de batalha de Ohio e, a partir de sua força em Illinois, carregou um estado que não votava democrata desde 1964, Indiana. Com uma proposta de política externa sem histerias bélicas, conseguiu conquistar até o voto cubano da Flórida, velho reduto republicano.

Uma série de perguntas permanece quanto ao grau de ruptura com o governo Bush de que Obama será capaz. Em todo caso, o que é mais animador em sua figura não é a posição que ele ocupa no espectro político, nem sua raça ou sua “mulatez” mas a compreensão de que a política é uma prática que não se reduz a uma escolha entre a intransigência ressentida e a triangulação sem escrúpulos.

Idelber Avelar é professor na Tulane University e mantém o blog O Biscoito Fino e a Massa