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Reflexões e pesquisas apontam a necessidade de superar mitos sobre a corrupção no Brasil

Reflexões e pesquisas universitárias indicam a necessidade de superar simplificações, erros e mitos no debate sobre a corrupção no Brasil

Começaram a ser editados os resultados do mais amplo projeto acadêmico já realizado no país de investigação do fenômeno da corrupção. Coordenado pelos professores Newton Bignotto (Filosofia /UFMG), Heloísa Starling (História /UFMG), Leonardo Avritzer e Juarez Guimarães (Ciência Política/UFMG) e financiado pela Fundação Ford e pela Fundação Konrad Adenauer, o projeto envolveu, em uma projeção pluralista e interdisciplinar, intelectuais de referência das várias regiões do país, além de alguns pesquisadores latino-americanos.

O trabalho compõe-se de quatro peças: um volume de reflexão crítica, com 62 ensaios e verbetes; uma pesquisa nacional executada pelo Instituto Vox Populi; uma coleção de livros em pequeno formato sobre interesse público e um CD-ROM para servir à pedagogia escolar. A peça central de reflexão é o livro Corrupção: Ensaios e Críticas (Editora da UFMG), que contém quatro seções: a reflexão sobre a corrupção, na tradição da filosofia política, desde a Antiguidade; a relação entre as várias tradições políticas (liberalismo, socialismo, republicanismo, totalitarismo) e a corrupção; o exame do tema na história e na cultura brasileiras; um exame das instituições e técnicas de combate à corrupção. Um longo e rico ensaio da jornalista Cristina Fernandes, em dossiê publicado no jornal Valor Econômico, de 1º, 2 e 3 de agosto de 2008, marcou a recepção do projeto.

A primeira conquista do projeto é superar de vez a simplificação e a unilateralidade no tratamento do tema. Em geral e de modo amplamente dominante, em um viés liberal, a corrupção é tratada como questão referida exclusivamente ao Estado e diz respeito aos funcionários públicos. Nesse estreitamento do foco, perde-se o principal e impõe-se um amplo repertório de agendas ligadas à ideologia de quanto menos Estado, melhor. Ora, a corrupção é um fenômeno da relação entre o interesse privado e o interesse público, entre agentes privados e agentes estatais, não podendo ser corretamente diagnosticada e combatida como parte de uma agenda em prol do Estado mínimo. Os Estados de bem-estar social do norte da Europa, por exemplo, são reconhecidos internacionalmente pela presença estatal e por apresentar os menores índices de corrupção.

A segunda conquista do projeto é questionar, de modo irrefutável, o método de medição da corrupção da Transparência Internacional, usado acriticamente pela mídia brasileira. Essa organização não-governamental, nascida nos anos 1990 por iniciativa de um ex-diretor do Banco Mundial, publica relatórios anuais com um ranking de países mais afetados pela corrupção. No relatório do ano passado, o Brasil aparece em 72º lugar, como mais corrupto até que países como os Emirados Árabes, Botswana e Namíbia. No livro Corrupção: Ensaios e Críticas, os professores Leonardo Avritzer e Aaron Schneider (Ciência Política/Tulane, EUA) fazem a crítica dos fundamentos equivocados dos métodos e ações do Banco Mundial.

A crítica de Leonardo Avritzer concentra-se no fato de que o índice de medição da corrupção usado pela Transparência Internacional toma como universo de pesquisa dirigentes de grandes corporações internacionais, centra-se apenas no comportamento dos funcionários públicos e, principalmente, utiliza como critério central a visibilidade midiática da corrupção, sem levar em conta, por exemplo, se essa visibilidade midiática resulta de um combate maior à corrupção ou do grau de liberdade de comunicação existente no país em questão. Assim, em uma ditadura que cala os meios de comunicação, a visibilidade da corrupção pode ser nula e o país estar bem colocado no ranking. O ensaio de Aaron Schneider demonstra com informações e mudanças recentes no próprio Banco Mundial como a política desta instituição centrou-se no combate à chamada “pequena corrupção”, isentando-se de uma maior ação na “grande corrupção”, que afeta as relações entre megacorporações e a alta hierarquia dos três poderes.

A terceira conquista importante do projeto é demonstrar como a consciência da população brasileira está longe de assumir a corrupção como um traço legitimado e incorporado ao modo de ser do brasileiro. Na pesquisa de opinião pública realizada, 77% da população brasileira considera o fenômeno da corrupção muito grave; 20%, grave; e apenas 2%, pouco grave. Ao contrário do que continua afirmando um senso comum, os brasileiros não parecem dispostos a corroborar a tese do político que “rouba mas faz”.

Importante ainda, e ao contrário da opinião que domina a cena nos maiores veículos da mídia brasileira, 75% dos brasileiros afirmam que durante o governo Lula “o que aumentou não foi a corrupção, mas a apuração dos casos escondidos”. Apenas 17% dos pesquisados na amostra nacional afirmam “que durante o governo Lula houve um grande aumento da corrupção no país”.

Interesse público

Mais do que desconfirmar simplificações, erros e mitos, em seu pluralismo de opiniões, as reflexões procuram balizar um paradigma de tratamento do tema. O argumento central da construção desse paradigma, com raiz na filosofia política, é de que a corrupção é um fenômeno negativo que necessita de um referente positivo para ser definida, analisada e combatida. Este referente conceitual positivo é o interesse público.

A noção de interesse público não está estabilizada na tradição liberal e nem mesmo na tradição socialista. Por motivos simétricos: a primeira por se centrar nos interesses individuais, concebidos em uma lógica mercantil, tem dificuldade de transitar para um campo de interesse público; a segunda, por partir de uma noção comum de totalidade, tem dificuldade de pensar a relação desse campo de interesse comum com os interesses particulares. O conceito de interesse público demanda, assim, um esforço de construção.

O primeiro fundamento do conceito de interesse público é o da legitimidade pública. Isto é, se relaciona com o princípio de legitimação das instituições do Estado estudado. Um regime de tradição monárquica, por exemplo, legitimará a distribuição das políticas de Estado a partir de alguma combinação entre tradição e arbítrio do monarca, não fazendo sentido dizer que o privilégio de um preferido do rei seja propriamente um fenômeno de corrupção. Da mesma forma, um regime liberal oligárquico, que se assenta na legitimidade dos privilégios de uma minoria burguesa, não pode ser chamado de corrupto por encaminhar uma distribuição de seu erário focalizada nos interesses dessa classe dominante legitimada.

O segundo fundamento do conceito de interesse público é o da definição democrática, com base no critério da soberania popular, do que vem a ser o interesse público. Um povo pode definir, por exemplo, com base em uma nova consciência ecológica, que faz parte do interesse público passar a proibir a devastação da floresta amazônica. Legitimada por essa nova consciência, novas leis de regulação do convívio com a floresta amazônica, pensada como de interesse público dos brasileiros, devem ser editadas. Uma transgressão dessas leis com fins particularistas, assim ilegítima, fere o interesse público. O interesse público depende, portanto, da deliberação democrática.

O terceiro fundamento da noção de interesse público é o da universalização, isto é, o interesse público deve ser substantivamente universalizável, mesmo que não consensual. A deliberação do interesse público não deveria ferir direitos de minorias, que não constituam privilégios, nem versar sobre campos de interesses particulares que não causem danos aos interesses gerais do corpo político.

Assim definido, o interesse público relaciona-se a um ethos permanente de formação republicana de um povo, isto é, ele não nasce pronto, depende da consciência, da cultura política e da construção de instituições e leis de regulação e controle. A corrupção penetra e domina um corpo político quando os interesses particulares prevalecem sobre o interesse público, levando a uma lógica de desagregação.

Ditadura e cultura

Integrada a esse campo conceitual, a seção de história do Brasil e de cultura brasileira do livro Corrupção: Ensaios e Críticas busca no passado vivido, na música popular, na literatura, no cinema e no teatro os vestígios da formação de uma consciência crítica à corrupção. É assim que se faz uma rica leitura de peças tão aparentemente distanciadas como o conto de Machado de Assis “Sereníssima República” e a música caipira.

Momento decisivo dessa reflexão é o ensaio de Heloísa Starling sobre a relação entre a ditadura militar e a corrupção. Trabalhando com uma linha de corte radical contra o senso comum de que “na ditadura havia menos corrupção”, a professora de História e atualmente vice-reitora da UFMG, mostra que na ditadura o fenômeno da corrupção é, por natureza, incontrolável e disseminado, já que não se conta com a regulação democrática do interesse público.

Valendo-se do discurso psicanalítico, Maria Rita Kehl afirma que “se a corrupção passa a ser tolerada, em nome de certo ‘realismo’ político que inclua política de alianças generalizadas, troca de favores, oportunismo, fisiologismos de toda ordem – a ação política se desmoraliza”.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais


Livro: Corrupção – Ensaios e Críticas
Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Juarez Guimarães e Heloísa Maria Murgel Starling (Org.)/Editora UFMG, 2008, 598 páginas

Com pluralidade de perspectivas a partir das idéias e conceitos de uma série de estudiosos e professores, a publicação é dividida em três seções: Teoria política e corrupção; Corrupção, história e cultura; e Questões atuais da corrupção. O livro oferece um conjunto de reflexões e estudos que ampliam a compreensão do fenômeno da corrupção para além das fronteiras dos procedimentos analíticos, unindo as ferramentas necessárias para uma abordagem que junta ao estudo do presente o de suas raízes históricas e culturais. Para os autores, do ponto de vista do tratamento institucional da corrupção, o país passou por avanços significativos. Mas o Brasil enfrenta um dilema, do ponto de vista da percepção do cidadão: quanto mais a corrupção é combatida, mais ela é noticiada, e quanto mais ela é noticiada, maior é a sua percepção.


Citações:

Definir corrupção pelo viés da chave interpretativa oferecida pelo conceito ‘crime organizado’ significa um avanço ainda mais expressivo, na medida em que a questão perde sua aura individual, simbolicamente mais suscetível a associações morais unidimensionais e despolitizantes. Além disso, esse conceito acentua a natureza eminentemente pública e universalista do Estado (o que implica o compromisso essencialmente republicano de seus servidores), refratária a apropriações privatizantes, e reafirma a centralidade de seu papel no enfrentamento do problema.
Luiz Eduardo Soares, cientista social, em Corrupção – Ensaios e Crítica.

No caso do Brasil, é bem clara a vigência de uma cultura que vê com olhos lenientes a trapaça em favor do interesse próprio e a inobservância das regras em qualquer plano, e que provavelmente se articula com nossa herança de escravismo, elitismo e desigualdade.

Fábio Wanderley Reis, cientista político, em Corrupção – Ensaios e Crítica.

Podemos, então, compreender onde se localiza a corrupção. De fato, na abertura do Tratado Político, opondo-se à tradição moralizante e utópica da filosofia política, Espinoza se recusa a situar a corrupção em vícios morais dos governantes. Declara que um Estado cuja segurança e liberdade dependam das virtudes privadas dos governantes está fadado à ruína, pois o essencial se encontra na qualidade das instituições, que obriguem os governantes (sejam eles movidos por vícios ou virtudes) a governar segundo o interesse comum, posto pelos ordenamentos institucionais ou pelas leis. Vícios e virtudes dos cidadãos não são deles, mas da Cidade, assim como são dela a fraqueza e fortaleza, e, portanto, os costumes ou a moralidade privada e pública dependem da qualidade das instituições.”

Marilena Chaui, filósofa, em Corrupção – Ensaios e Crítica

A corrupção atravessa séculos, culturas e sistemas políticos, por certo, mas nem por isso deixa de ter um aparente denominador comum em todas as manifestações. Faz-se necessária a qualificação de ‘aparente’ porque a história pode surpreender e fazer surgir um exemplo contradizendo o registro aqui realizado. Mas, com tal grau de cautela, é razoável anotar que hábitos de corrupção existem em todas as sociedades hospitaleiras ao fenômeno do lucro. Onde quer que a estratificação social dependa, pelo menos em parte, da acumulação de riqueza material, aí se descobrirá a incidência de transações ilícitas entre o público e o privado.

Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, em Corrupção – Ensaios e Crítica

No momento em que o Estado abre mão de políticas públicas universalistas, em favor de ações públicas não comprometidas com a universalidade do atendimento e entende que isso é sinônimo de eficiência, há uma avenida aberta para atos de corrupção, absolutamente incontroláveis e somente dependentes da boa vontade de homens e mulheres envolvidos nessas ações, para serem evitados.”

Céli Pinto, cientista política, em Corrupção – Ensaios e Crítica