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Desde sua promulgação, em 1979, a Lei 6.683 tem abrangência contestada

Desde sua promulgação, em 1979, a Lei 6.683, que concedeu  perdão a torturados e torturadores, tem abrangência contestada. Ações na Justiça colocaram essa polêmica novamente em pauta na sociedade e nos meios jurídicos

Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – a chamada Lei da Anistia –, em seu artigo 1º, concedeu anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram, dentre outros, crimes políticos ou conexos a estes. Para tanto, considerou como crimes políticos ou conexos, nos termos do § 1º, para efeito desse artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, e, em conformidade com o § 2º desse mesmo artigo, excetuou dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

É público e notório que o legislador, com a redação propositalmente obscura do § 1º do citado artigo, ao considerar como políticos ou conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, teve o intuito de incluir, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e praticaram crimes comuns – tortura, homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais e atentado violento ao pudor – contra opositores políticos do regime militar instituído em 1964.

Com a tentativa de inclusão dos agentes públicos, mandantes ou executores, que praticaram crimes contra os opositores do regime militar, como beneficiários da anistia, a controvérsia constitucional quanto à abrangência da Lei da Anistia foi instalada, inicialmente de forma mais tímida, isto é, desde a sua promulgação em 28 de agosto de 1979.

Atualmente, a controvérsia, relativa à abrangência da Lei da Anistia, encontra-se na pauta de discussão da sociedade brasileira de forma mais acalorada, sobretudo a partir do trânsito em julgado de decisão judicial que determinou à União a abertura dos arquivos da ditadura, bem como de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, formulada no Supremo Tribunal Federal pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)1, e também a partir da propositura de ação civil pública nº 2008.61.00.011414-5 pelo Ministério Público Federal contra a União Federal e contra os agentes públicos Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, ex-comandantes do DOI-Codi de São Paulo, para reaver destes os valores despendidos pela União com as indenizações pagas pelo erário às famílias, com fundamento na Lei nº 9.140/951, conforme relatos, que constam no livro Direito à Memória e à Verdade, elaborado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Direito à verdade e à memória

Na propositura da ação civil pública, o Ministério Público Federal considerou 64 casos de pessoas mortas, quando eram comandantes do DOI-Codi de São Paulo os réus Carlos Alberto Brilhante Ustra e Aldir dos Santos Maciel. Tais casos constam no relatório oficial da Presidência da República, denominado Direito à Verdade e à Memória, livro-relatório que constitui ato de justiça, e não de vingança, e sinaliza uma nova etapa no reconhecimento do direito à memória e à verdade, ao contar histórias dos mortos e desaparecidos políticos, a partir dos julgamentos realizados, com fundamento na Lei nº 9.140/952, de quase 500 casos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A controvérsia constitucional, decorrente da propositura da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, se agravou com a contestação apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU), que violou o interesse da própria União ao defender a impossibilidade do pedido de ressarcimento contra os réus Ustra e Maciel em benefício dos cofres públicos. Mais: também atentou contra o interesse público, ao defender que as ações de recomposição do patrimônio público não são imprescritíveis, contrariando doutrina e jurisprudência a respeito do § 5º, do artigo 37, da Constituição Federal.

Em decorrência da redação capciosa do § 1º da Lei da Anistia, como já disse, estabeleceu-se a controvérsia constitucional, já submetida ao Judiciário e ainda não decidida em definitivo, quanto aos limites ou à abrangência dessa lei. E diante das divergências interpretativas e do acaloramento da discussão atual da controvérsia, tornou-se imperioso saber se a anistia de fato beneficiou ou não tais agentes públicos. Ademais, também é preciso esclarecer se tais crimes são ou não políticos, conexos, prescritíveis ou não, e, independentemente disso e principalmente, se, no âmbito do Juízo cível, as ações ordinárias para declarar as responsabilidades e condenar os agentes públicos, que comandaram ou praticaram diretamente a tortura e outros crimes desse jaez contra aqueles que se insurgiram contra o regime ditatorial, estão ou não prescritas.

É nos limites dessa controvérsia que se desenvolverá esse trabalho, com ênfase na questão da prescrição das ações de natureza cível.

Crimes políticos, conexos ou crimes contra a humanidade

Com o encerramento do regime militar, embora as autoridades do novo Estado de Direito, instituído pela Constituição de 1988, devessem ter exercido o dever fundamental de agir contra os responsáveis pelas violações de direitos humanos, isso não ocorreu.

No campo penal, interpretou-se falsamente a Lei da Anistia, como tendo abrangido pela anistia os agentes públicos, mandantes ou executores que haviam cometido crimes contra a vida e a integridade pessoal dos cidadãos considerados opositores políticos do regime. E assim sucedeu, porque os delitos praticados pelos agentes do Estado foram considerados, com base na lei, conexos com os imputados aos opositores políticos.

É inequívoco, porém, que os agentes policiais militares da repressão política, entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 – período de abrangência da anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 –, não cometeram crimes políticos –, um dos pressupostos para que fossem beneficiados pela anistia –, mas, sim, crimes comuns.

Com efeito, como ressalta o eminente jurista professor Fábio Konder Comparato, na citada Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta perante o Supremo Tribunal Federal pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “no período abrangido pela anistia concedida por meio da Lei nº 6.683/79 vigoravam três diplomas legais, definidores de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social: o Decreto-Lei nº 314, de 13/3/1967, o Decreto-Lei nº 898, de 29/9/1969, e, finalmente, a Lei nº 6.620, de 17/12/1978”.

Ora, é indiscutível que os agentes públicos que mataram, torturaram e violentaram sexualmente opositores políticos no período abrangido pela Lei da Anistia (2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979) não praticaram nenhum dos crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, definidos como tais nos citados diplomas legais. Ao revés, a pretexto de defender o regime militar, praticaram crimes comuns contra aqueles que, supostamente, punham em perigo a ordem política e a segurança do Estado, ou seja, não praticaram crimes políticos.

E também não se pode cogitar que tais agentes tenham praticado crimes conexos, dentre outros motivos, porque a conexão criminal pressupõe unidade de objetivo e de ação delituosa entre os agentes, o que jamais ocorreu em tais casos, pois, de um lado, os agentes públicos, mandantes ou executores, praticaram crimes contra a vida e a integridade pessoal dos cidadãos considerados opositores políticos do regime, enquanto estes “(...) os acusados de crimes políticos não agiram contra os que os torturaram e mataram, dentro e fora das prisões do regime militar, mas contra a ordem política vigente no país naquele período”3.

Em verdade, os agentes públicos que mataram, torturaram, violentaram sexualmente e desapareceram com pessoas que se contrapunham ao regime militar, assim como os mandantes desses atos ilícitos, além de não poderem ser beneficiários de uma auto-anistia4, praticaram crime contra a humanidade, que é em si mesmo uma grave violação aos direitos humanos, afeta toda a humanidade e se caracteriza pela prática de atos desumanos, como o homicídio, a tortura, as execuções sumárias, extra-legais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, cometidos em um contexto de ataque generalizado e sistemático contra uma população civil, em tempo de guerra ou de paz.

Essa definição de crime contra a humanidade foi acolhida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é reconhecida pelo Estado brasileiro, através do Decreto nº 4.463/02, e, portanto, vincula todos os poderes estatais.

Os crimes contra a humanidade

A tortura é um crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica e afeta toda a humanidade, na medida em que a condição humana é violentada na pessoa submetida a esse crime. Quando alguém é torturado, somos todos atingidos duplamente: em nossa humanidade e em nossa cidadania. A prática da tortura é inaceitável e seus executores deverão ser punidos a qualquer tempo.

O Brasil é signatário de tratados internacionais que o inserem em diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, inclusive se submetendo ao julgamento de organismos internacionais, especialmente ao International Criminal Court (Tribunal Internacional), criado pelo Estatuto de Roma, que não estabelece prescrição para os crimes contra a humanidade, entre eles definidos a tortura e a prática de outros atos desumanos que causem grande sofrimento, ou sério dano ao corpo ou à saúde mental e física de um indivíduo.

O Brasil é igualmente signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que o vincula aos conceitos dessa Convenção, na medida em que tais conceitos foram assumidos pelo nosso país, em 6 de novembro de 1992, através do Decreto nº 678, nos termos do seu artigo 2º, para o fim de alterar a sua legislação interna, visando à defesa e à integridade física e moral do indivíduo5.

Os dois tratados internacionais citados, assinados pelo Brasil, são suficientes para esclarecer que a República não compactua com a prática de atos que violem a dignidade da pessoa humana, por ser este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito6 e um direito inalienável do indivíduo. E a dignidade, como direito inalienável, tanto quanto o direito à vida, à honra e à liberdade, constitui uma categoria especial de direitos do indivíduo, devendo ser defendidos a todo o custo, sob pena de os agentes violadores dos direitos humanos poderem, após o lapso prescricional, sair impunes, mesmo tendo praticado atos aniquiladores da condição humana.

A qualificação dos atos praticados pelos agentes públicos, mandantes ou executores, como crimes contra a humanidade, é suficiente para impedir a concretização de qualquer instituto que possa significar impunidade, conforme preceituam os tratados internacionais aos quais o Brasil está vinculado e obrigado a cumprir. A Assembléia Geral das Nações Unidas indicou a existência desse preceito no costume internacional, por meio da Resolução nº 3.074, editada em 3 de dezembro de 1973, ao apresentar os Princípios de Cooperação Internacional na Identificação, Detenção, Extradição e Castigo por Crimes de Guerra ou Crimes de Lesa-Humanidade, nos seguintes termos:

“1. Os crimes de guerra e os crimes de lesa-humanidade, onde for ou qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos, serão objeto de uma investigação, e as pessoas contra as quais existam provas de culpabilidade na execução de tais crimes serão procuradas, detidas, processadas e, em caso de serem consideradas culpadas, castigadas.
(...)

8. Os Estados não adotarão disposições legislativas nem tomarão medidas de outra espécie que possam menosprezar as obrigações internacionais que tenham acordado no tocante à identificação, à prisão, à extradição e ao castigo dos culpáveis de crimes de guerra ou de crimes contra a humanidade”.

Acresce que, no âmbito dos direitos humanos, o tempo nada apaga, porquanto o Estado brasileiro, mesmo durante o regime militar de exceção, jamais oficializou a prática das violações que ocorriam nos porões; jamais houve ato do Poder permitindo as crueldades inomináveis ocorridas ou a supressão formal dos direitos fundamentais, tais como o direito à vida e à integridade física.

Em suma: a prática de atos que violaram os direitos humanos fundamentais, dentre os quais a tortura – crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia-,7 não pode ser esquecida, não pode ser apagada; tais atos são imprescritíveis.

Acresce que, pelo fato de o Brasil reger-se, nas suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos8, também pelo fato de ser subscritor da Carta das Nações Unidas e de ter, em seu ordenamento jurídico interno infraconstitucional9. e, principalmente, na própria Constituição (artigo 5º, inciso III)10, recepcionado tratados internacionais que caracterizam os crimes já referidos, sobretudo a tortura e os desaparecimentos forçados, como crimes contra a humanidade, todos os poderes da República, inclusive o Judiciário, estão vinculados aos preceitos de tais tratados. E dentre esses tratados consta justamente o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade.

A proteção constitucional

A Constituição Federal, em seu artigo 37, § 5º, é clara, no sentido de que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.

Diante da ressalva, feita no final do dispositivo constitucional citado, forçoso é concluir que há impedimento constitucional a qualquer possibilidade de afastar, por decurso de tempo, pretensões contra a União ou contra os seus agentes que, a qualquer tempo e inclusive durante o período ditatorial (1964-1985), tenham dado ensejo a danos experimentados pelo erário, em decorrência de ações indenizatórias que lhes tenham sido propostas pelas vítimas de violações de direitos humanos.

Nesse sentido, aliás, tem decidido a jurisprudência dos tribunais pátrios, dentre os quais o Supremo Tribunal Federal11 e o Superior Tribunal de Justiça 12.

Por outro lado, a Constituição Federal, em seu art. 37, § 6º, é clara, ao estabelecer que as pessoas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviço público têm responsabilidade objetiva diante dos administrados, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, vierem a causar, devendo, contudo, intentar contra estes a competente ação regressiva.

Foi exatamente por esta razão – danos infligidos a 64 cidadãos brasileiros contrários ao regime militar, mortos nas dependências do DOI-Codi em decorrência de torturas a que foram submetidos pelos agentes da União, cujas famílias foram ressarcidas por ela, com fundamento na Lei nº 9.140/95 – que o Ministério Público Federal propôs a ação civil pública referida neste trabalho, isto é, propôs ação civil pública para que a União, assumindo o pólo ativo da ação, exercesse a competente ação regressiva contra os comandantes do DOI-Codi, Ustra e Maciel, para que estes, ao fim e ao cabo, fossem compelidos a devolver ao erário federal as indenizações pagas às famílias dos que ali foram mortos sob tortura.

A Advocacia Geral da União (AGU), ao contestar tal ação civil pública, lamentavelmente se opôs à pretensão de ressarcimento ao erário, sustentando uma interpretação da Lei da Anistia que é polêmica – e não encontra guarida no próprio texto da Lei nº 6.683/79 e, menos ainda, nos instrumentos internacionais vigentes à época – por pretender a extensão da anistia a torturadores agentes do Estado. Ao assim agir, procurou isentar aqueles que foram chefes do mais famoso centro de torturas do país de devolver à União as referidas indenizações.

Conclusão

O que se espera é que seja levado adiante o debate travado em torno desta ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, que, em última análise, quer a  responsabilização de torturadores já identificados, para que estes, regressivamente, devolvam ao erário o quanto a União já despendeu com as indenizações por ela pagas às famílias de mortos e desaparecidos políticos.

O que se espera também é que o Supremo Tribunal Federal, nos termos do pedido formulado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e referida neste trabalho, dê à Lei da Anistia uma interpretação conforme a Constituição, reconhecendo que a anistia concedida aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra os opositores políticos, durante o regime militar.

O que se espera, finalmente, é que a instituição Forças Armadas, composta pela maioria de militares que não se envolveu com crimes de tortura ou desaparecimento forçado, reconheça que não é e não está sendo acusada e deve ser a maior interessada em apurar toda a violência praticada, durante o período coberto pela Lei da Anistia, restaurando, definitivamente, sua imagem perante a sociedade, como uma instituição essencial a um Estado Democrático de Direito.

Marco Antônio Rodrigues Barbosa é advogado, foi presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e do Conselho de Defesa da Pessoa Humana. Atualmente é presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos políticos.
Direito à verdade e à memória

Na propositura da ação civil pública, o Ministério Público Federal considerou 64 casos de pessoas mortas, quando eram comandantes do DOI-Codi de São Paulo os réus Carlos Alberto Brilhante Ustra e Aldir dos Santos Maciel. Tais casos constam no relatório oficial da Presidência da República, denominado Direito à Verdade e à Memória, livro relatório que constitui ato de justiça, e não de vingança, e sinaliza uma nova etapa no reconhecimento do direito à memória e à verdade, ao contar histórias dos mortos e desaparecidos políticos, a partir dos julgamentos realizados, com fundamento na Lei nº 9.140/95, de quase 500 casos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A controvérsia constitucional, decorrente da propositura da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, se agravou com a contestação apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU), que violou o interesse da própria União ao defender a impossibilidade do pedido de ressarcimento contra os réus Ustra e Maciel em benefício dos cofres públicos. Mais: também atentou contra o interesse público, ao defender que as ações de recomposição do patrimônio público não são imprescritíveis, contrariando doutrina e jurisprudência a respeito do § 5º, do artigo 37, da Constituição Federal.