Economia

São grandes desafios para alterar a tendência de exploração da Amazônia

São grandes os desafios para alterar as tendências atuais de exploração da região amazônica com o propósito de barrar o desmatamento e as ações predatórias dos recursos naturais

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Desmatamento resultante da prática exploratória da agroindustria. Foto: Jefferson Rudy

Muito se tem falado sobre a dinâmica de desmatamento da região amazônica e os riscos ambientais a isso associados, desde a contribuição ao aquecimento global até os efeitos deletérios de possível savanização da região. É notória, por outra parte, a distribuição concentrada dos resultados de tal uso da base natural. Urge que se delineiem estratégias de reorientação das tendências presentes, que configuram dinâmica rural ecologicamente predatória e socialmente desigual. Este artigo indica possibilidades de mudança, ao tempo que demonstra as dimensões dos obstáculos a superar. Os grandes desafios destacados associam-se, de um lado, às características e à dinâmica da economia rural da região; de outro, aos fundamentos institucionais dessa evolução.

Setor rural como economia

Por trás dos 13,5 milhões de hectares desmatados para atividades agropecuárias entre os Censos Agropecuários de 1995 e 2007, e dos correspondentes 2.193,3 Gt adicionalmente acumulados na atmosfera nesse meio tempo (Costa, 2008c), há uma economia que vem crescendo a taxas médias que, para todas as suas macrovariáveis, situam-se próximas de 5% a.a.: nos últimos 17 anos o Valor Bruto da Produção Rural (VBPR) passou de R$ 5,5 bilhões para R$ 9 bilhões a preços constantes do final do período, gerando valor adicionado total de R$ 16,5 bilhões; 41% retidos no setor rural por camponeses, fazendeiros e assalariados rurais, 26% pelas economias urbanas locais, 11% pelas economias urbanas estaduais e, finalmente, 21,5% transbordam para o resto da economia nacional (Costa, 2008a).

Na base dessa dinâmica estão seis grandes estruturas em movimento, visualizadas como trajetórias tecnológicas (Costa, 2008b), que seguem pela ordem de importância no valor da produção:

A Trajetória Camponês (T1) reúne o conjunto de sistemas camponeses que convergem para sistemas com dominância de culturas permanentes e produção de leite, explica 27% do VBPR, 38% do emprego, 10% da área degradada e 11% do balanço líquido de carbono. A economia em torno dessa trajetória se expande em termos absolutos a 5% a.a., com rentabilidade crescente nos últimos tempos a 2,5% a.a., por trabalhador a 4,3% a.a. e por área a 0,3% a.a. (ver Gráfico 1).

A Trajetória Patronal (T4) reúne o conjunto de sistemas de produção em operação em estabelecimentos patronais que convergem para a pecuária de corte, explica 25% do VBPR, 11% do emprego, 70% da área degradada e 71% do balanço líquido de carbono. A economia em torno dessa trajetória se expande em termos absolutos a 5,1% a.a., com rentabilidade crescente nos últimos tempos a 8,4% a.a., por trabalhador a 9% e por área a 6,2%.

A Trajetória Camponês (T2) reúne o conjunto de sistemas camponeses que convergem para sistemas agroflorestais com dominância ou forte presença de extração de produtos não-madeireiros, explica 21% do VBPR, 26% do emprego, 3,5% da área degradada e 2,6% do balanço líquido de carbono. A economia em torno dessa trajetória se expande em termos absolutos a 12% a.a., com rentabilidade crescente nos últimos tempos, por trabalhador a 12,7% e por área a 11,4%.

A Trajetória Camponês (T3) reúne o conjunto de sistemas camponeses que convergem para sistemas com dominância da pecuária de corte, explica 19% do VBPR, 28% do emprego, 14% da área degradada e 12,5% do balanço líquido de carbono. A economia em torno dessa trajetória se expande em termos absolutos a 7% a.a., com rentabilidade crescente nos últimos tempos a 7,8% a.a., por trabalhador a 8% e por área a 5%.

A Trajetória Patronal (T5) reúne o conjunto de sistemas patronais que convergem para plantações de culturas permanentes, explica 6% do VBPR, 2% do emprego, 2% da área degradada e 3% do balanço líquido de carbono. A economia da trajetória cresce em termos absolutos a 2,5% a.a., com rentabilidade crescente nos últimos tempos a 7,2% a.a., por trabalhador a 5,7% e por área a 4,1%.

Trajetória Patronal (T6) reúne o conjunto de sistemas patronais de silvicultura, explica 2% do VBPR, 0,2% do emprego, 0% da área degradada e 0% do balanço líquido de carbono. A economia em torno dessa trajetória decresce em termos absolutos a -2,9% a.a., com rentabilidade fortemente decrescente por trabalhador a -11% e por área a -20%.

As características das trajetórias permitem uma formulação estratégica clara: um desenvolvimento mais distributivo (desconcentração de ativos), com efeito difuso de maior impacto sobre as economias locais (participação no emprego) e menores impactos ambientais (menores balanço líquido de emissão de CO2 e área degradada), exige fortalecer as trajetórias Camponês (T1), Camponês (T2), Patronal (T5) e Patronal (T6), e ao mesmo tempo conter/reorientar as Patronal (T4) e Camponês (T3).

A condução de tal projeto, contudo, porta imenso desafio porque o ambiente institucional apresenta vieses e dificuldades, explicadas por dependência de trajetória e cultura institucional e política que vêm favorecendo as trajetórias a conter (ver os IDIs, na Tabela 1), no seu modo tradicional. Ao mesmo tempo, não consegue garantir às trajetórias a fortalecer os pressupostos de conhecimento e de capital – físico e natural – necessários à sua capacidade de permanência por ganhos sistemáticos de eficiência. Já tratamos essas questões de diversos modos (Costa, 2007; Costa, 2006; Costa, 2005).

É hora de nos debruçarmos sobre o também hercúleo desafio derivado das amplas forças de mercado que vêm proporcionando ganhos de eficiência às trajetórias a conter, em parte por efeito das variações positivas dos preços reais de seus produtos, madeira, carne e grãos, questão já largamente explorada na literatura; em parte – e essa é uma questão bem menos discutida – como resultado do funcionamento de um mercado de terras de grandes dimensões que regulam, mantendo-os baixos, os preços desse fundamento da produção rural. Precisamente isso constitui o objeto dos esforços que seguem.

A formação dos preços da terra

O setor rural da Região Norte se assenta sobre uma estrutura fundiária – relações de apropriação, uso e alienação de um conjunto de ativos suportados pela terra – que apresenta três características relevantes: expressa alto grau de assimetria distributiva, permite a formação estratégica de estoques de ativos de existência finita, admite tratamento indistinto de ativos distintos e, por fim, suporta o uso de recursos públicos por critérios privados: admite a posse ilegítima de terras públicas.

Foto: Arquivo do Ministério do Meio Ambiente

Combinados, esses atributos da estrutura fundiária fundamentam o mercado de terras na região. Para se expandir às taxas mencionadas, os estabelecimentos, no contexto das respectivas trajetórias, incorporaram até 2006 adicionais 14,2 milhões de hectares ao estoque de terras de 52,1 milhões que contabilizavam em 1995: 13%, 8% e 7% disso para, respectivamente, as trajetórias camponesas T1, T2 e T3; 64%, 5% e 2% para as patronais T4, T5 e T6.

Tal mercado se expressa nos preços e na “natureza” do que movimenta.

Pesquisa anual que abrange o período de 2001 a 2007, do Instituto iFNP, em 241 municípios do Acre, Amapá, Amazonas e Pará, aponta para três grandes categorias da mercadoria: “Terras com Mata”, “Terras de Pastagens” e “Terras para Lavoura”. O Gráfico 1 apresenta, na parte A, as respectivas evoluções dos preços no período em valores corrigidos para reais de 2007, na parte B, as relações entre eles. Os seguintes pontos se destacam:

Os preços de “Terras com Mata” são parcelas dos demais, em média 43% dos das “Terras de Pastagem” e 23% dos das “Terras de Lavouras”. O mercado de terras só reconhece os preços das “Terras com Mata” como parcelas na formação dos preços das pastagens e terras agrícolas.

Tal fato pressupõe uma regulação que transforma “florestas originárias” (não mercadoria) em “Terras com Mata” (mercadoria) a preço sistemicamente controlado, de modo a não comprometer, no passo seguinte, a viabilidade da transformação dessas em “Terras de Pastagem” ou “Terras para Lavoura”. Pressupõe um processo de produção de “Terras com Mata”, a partir de “matas originárias”, que estabelece um “preço de produção” das primeiras compatível com a rentabilidade das trajetórias que têm como insumos “Terras de Pastagem” ou “Terras para Lavoura”. É o poder de compra dessas trajetórias que comanda a formação do preço e da oferta. De modo que o crescimento a 6% a.a. dos preços das “Terras de Pastagens” é compatível com o crescimento da rentabilidade da Trajetória Patronal T4 (para pecuária de corte patronal), conforme se apresentou antes. Do mesmo modo, o crescimento dos preços de “Terras para Lavoura” a 1,5% a.a. parece refletir as expectativas mais modestas da rentabilidade das Trajetórias Camponês T1 e Patronal T5. As taxas de crescimento dos preços de “Terras com Mata”, de 2,5% a.a., refletem, não obstante parcialmente, as tensões que afetam os demais preços.

Os fluxos reais e monetários

O mercado de terras na Amazônia movimenta e estabelece preços para três tipos de mercadoria: “Terras com Mata”, “Terras de Pastagem” e “Terras para Lavoura”. Quais as quantidades que conformam o jogo de oferta e demanda desses diferentes tipos de terra? Que valores, que expressão econômica o sistema apresenta?

A diferença entre os estoques totais de terras nos estabelecimentos nos dois censos, em condições claramente assinaladas, avulta 14,2 milhões de hectares em toda a Região Norte (Tabela 2). Agora, observando a distribuição dessa diferença pelas variações nos tipos de aplicação, é possível concluir que, nos onze anos em questão, os operadores dos estabelecimentos adquiriram no mercado de terras 5,4 milhões de hectares de “Terras para Lavoura”, 8,2 milhões de “Terras de Pastagem” e, ademais, 0,5 milhão de hectares adicionais aos seus estoques de “Terras com Mata”.

Esses “produtos” (os dois primeiros itens constituindo parcelas da formação bruta de capital fixo do setor; o último, uma reserva de contingência) não existiam na região em 1995, tendo sido, portanto, produzidos ao longo do período em tela.

Tal produção se fez pela transformação do ativo específico “floresta originária”, um bem público, no ativo genérico “Terra com Mata”, tornada, na condição de ativo privado, “matéria-prima” comum às demais formas de “terras” que circulam no mercado. Intransportável, a matéria-prima “Terra com Mata” foi ofertada ao longo do período em um montante preciso de 14,2 milhões de hectares. Considerando que aproximadamente 2,7 milhões de hectares podem ter origem na distribuição oficial de terras nos assentamentos (conf. Incra, Lista de Desapropriação, 2008), 11,5 milhões deverão ter origem em mecanismos espúrios de apropriação – a grilagem.

Abstraindo o custo da grilagem, de transformação da “floresta originária” em “Terras com Mata”, de difícil aferição, a avaliação monetária desse mercado exige a quantificação de um movimento “primário” de vendas das “Terras com Mata” e de um movimento “derivado” de venda de “Terras para Pastagem” e “Terras para Lavoura”. No primeiro, foram movimentados R$ 3,4 bilhões e, no segundo, R$ 11,6 bilhões, perfazendo em torno de R$ 15 bilhões em onze anos – R$ 1,4 bilhão por ano – o total de vendas diretas.

Conclusões

Reitera-se, aqui, a noção de que para um desenvolvimento base rural para a Amazônia é necessário que se quebrem as assimetrias de poder que enviesam a atuação institucional de fomento e pesquisa em favor das trajetórias a conter.

Acrescenta-se, contudo, a necessidade de conter o mercado de terras na região, atingindo-o em dois momentos: no seu processo de produção, momento da transformação do ativo específico “floresta primária” em “Terras com Mata”, e no momento da legitimação do produto final – “Terras para Pasto” e “Terras para Lavoura”.

São exigidas as capacidades formal e técnica do Estado para proteger os ativos públicos, em particular o bioma, ativo específico e distintivo da região e do país. No segundo, as formas de titularidade deverão distinguir entre direito fundiário, relativo estritamente ao ativo “terra”, e o direito aos “ativos ambientais originários”. Ao não se reduzir o último ao primeiro, ao ente público se reservará, sempre, o poder de questionar o agente privado quanto ao seu uso e alienação.

Referências bibliográficas

- Costa, F. de A. (2008a). “Desenvolvimento agrário sustentável na Amazônia: trajetórias tecnológica, estrutura fundiária e institucionalidade.” In: Becker, B.; Costa, F. de A.; Costa, W.M. Desafios ao Projeto Amazônia. Brasília: CGEE.(no prelo).

- Costa, F. de A. (2008b). “Heterogeneidade estrutural e trajetórias tecnológicas na produção rural da Amazônia: delineamentos para orientar políticas de desenvolvimento.” In: Batistella,M.; Moran, E.E.; e Alves, D.S. Amazônia: Natureza e Sociedade em Transformação. São Paulo: Edusp.

- Costa, F.de A. (2008c). Agrarian Dynamic and CO2 Balance in the Amazon. Proceedings of RSAI World Congress 2008, realizado em São Paulo, 16-19 de março.

- Costa, F. de A. (2005). “Questão agrária e macropolíticas na Amazônia.” Revista Estudos Avançados. São Paulo: v.53, n.19, p.1-26, 2005.

Francisco de Assis Costa é doutor em Economia pela Freie Universität-Berlin, professor associado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará e pesquisador associado da RedeSist - IE/UFRJ