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Os programas e projetos de ocupação do “vazio” amazônico sempre foram pautados pelo mercantilismo

Os programas e projetos de ocupação do “vazio” amazônico sempre foram pautados pelo mercantilismo, liberal e capitalista. Foram planos que pilharam a região e promoveram o desenvolvimento à custa de prejuízos ambientais

Esta Amazônia paradisíaca, “vazia”, “inóspita”, “selvagem”, morada e refúgio de gente e animais, de fome e abundância de alimentos, riquezas e misérias, odiada e desejada por grupos e governos de todo o planeta é nossa. É?

Dos produtos extraídos da Amazônia descrita como um paraíso por Américo Vespúcio, Pero Vaz de Caminha e José de Anchieta, as essências, especiarias, índios, madeira, ouro, mais recentemente a cassiterita, o diamante; nos dias de hoje a soja e a carne continuam numa via de mão única, a via da exportação, commodities. Os planos, os programas, projetos elaborados ideologicamente para a ocupação e preenchimento do espaço “vazio” amazônico, sempre tiveram a mesma batuta, mercantilista, eurocentrista, liberal, capitalista, e o de agora – neoliberalismo – pilhagem subsidiada, financia o nosso desenvolvimento predatório.

Qual é o legado positivo para os amazônidas que essas filosofias de momento econômico específico (Sudam, Supra, Basa, Suframa, Radam Brasil, Proterra, Polocentro, Polonoroeste, Transamazônica, I e II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND, Sivam, Sipam) deixaram?

Belém–Brasília e Transamazônica para assentar os camponeses pobres do Nordeste; BR-29, atual-364 e futura alimentadora da Transoceânica junto com a BR-163, para os expulsos pela mecanização e valorização das terras no Sul, Sudeste, Centro-Oeste. BRs válvulas para aliviar as pressões, estradas para o surto migratório rumo ao Norte, alterando a composição social e o modelo econômico da região amazônica até então extrativista.

A saga extrativista na Amazônia se encarregou de acentuar a mistura de cor e raça, o amálgama da composição social num espaço temporal aproximado de dezesseis décadas, de 1800 a 1960. O escravo negro, o comerciante branco, o índio, os seringueiros, os garimpeiros, os aventureiros e os operários de todas as partes do mundo que aportaram nessas terras compuseram um tecido social importante: o caboclo/ribeirinho, “raça forte”, em substituição ao “índio, um indivíduo com quem a civilização não pode contar”, como escreveu José Veríssimo.

A derrocada do preço da borracha forçou o Estado a repensar sua intervenção na região, a urbanização da sociedade brasileira, a industrialização, a necessidade da inter-regionalização econômica após 1930. Juscelino Kubitschek e seu modelo de circulação nacional penetra na Amazônia, e no dia 4 de julho de 1960, montado num trator de esteira, derruba a última árvore na divisa de Mato Grosso com Rondônia e desfila sobre o seu tronco, a BR-29 era real. Já na época se intencionava chegar até a fronteira do Acre com o Peru. Simbólico isso, não?! Em 1966 se dá a atual composição ideológica da segurança à ocupação dos espaços “vazios” na Amazônia. O Brasil tem pressa!

O minério, a Poloamazônica e o II PND chegam a Rondônia definitivamente e o modelo permanece até os dias atuais. Brascam, Itaú, Paranapanema, Dramim, Patino-Engradt, que substituíram a lavra manual da cassiterita pela mecanizada, causaram grande impacto ecológico e social em Rondônia. Na esteira dessa reorganização territorial nascem os polos minerais, madeireiros, agropecuários e de grãos na Amazônia, tudo subsidiado, sem levar em consideração os ecossistemas regionais. Era questão de urgência para aliviar as tensões sócias em terras “civilizadas” brasileiras.

Incra, PIN/Proterra programas de integração nacional e de redistribuição de terras para estimular a agroindústria trazem a Rondônia os Projetos Integrados de Colonização (PICs) na década de 70, o “novo Eldorado”, o paraíso para as massas deserdadas de todas as regiões do Brasil. Com autorização oficial se inicia o “desbravamento das terras de Rondon”, com a recomendação de corte raso em 50% da área entregue pelo Incra! Enfim, a brutalidade do homem e do Estado versus “natureza bruta”.

Com essa formatação ideológica estendemos a nossa fronteira produtiva. Essa foi a lógica para a “ocupação”, mas a intenção oficial dos projetos foi o “amansamento” da floresta e seus perigos – índios, febre amarela, malária, leishmaniose e outros sujeitos, como os povos tradicionais “preguiçosos” e vulneráveis à “doutrina subversiva dos comunistas”. A Lei Federal nº 5.173, de 27 de outubro de 1966, considera terras devolutas do Brasil, para o “desenvolvimento e segurança” da Nação, aquelas que se estenderiam por 17.855 quilômetros, 100 quilômetros de largo de cada lado, cobrindo assim 100% dos estados da Amazônia Legal, um total de 3.571.000 quilômetros quadrados, 70% da Amazônia. Pensamento filosófico do Estado na década de 60 e em muitas questões em marcha até os dias atuais.

O Polonoroeste/Polocentro, na década de 70, tinha como meta produzir e escoar a soja por meio do complexo viário BR364–Madeira–Amazonas– Ásia–Amsterdã. Em 1984 o asfalto da BR-364 foi inaugurado, meta atingida. O principal produto no dorso dos caminhões indo sentido Rio Madeira é a soja, de Rondônia para o Atlântico carne e madeira (60% extraído em corte raso), rumando para Europa e levando dezenas de milhares de fontes, igarapés, espécies vegetais e animais do nosso ecossistema sem ao menos sabermos qual o valor ambiental e econômico disso. A nação que permite a espoliação de um dos seus grandes tesouros, a água, é manca! Ou a expansão da cultura da soja não seca as fontes, polui os igarapés, assoreia os rios? A quem vamos queixar a reparação; aos importadores?

Como a proposta aqui é visitar o passado para uma reflexão do futuro, não cabem gráficos sociais ou econômicos, mas a denúncia de Euclides da Cunha no início do século 20 sobre a semiescravidão dos seringueiros nordestinos na Amazônia continua atual. Cabe registrar, as ocorrências ainda hoje nas propriedades rurais, nas serrarias clandestinas, na exploração do trabalho do “gato” (empreiteiro), dos juquireiros (roçadores de matas, capoeiras e pastagens) são tão desumanas hoje quanto há um século. Visitar Alberto Rangel, Euclides e José Veríssimo, acho que nos remete à reflexão do que não devemos fazer neste início de milênio.

A diferença hoje para os de “raça forte”, “ser superior”, no “paraíso” ou “inferno verde”, como queiram compreender a Amazônia de ontem e a destes dias, para o acometido de malária ou acidente são a ambulância e as novas drogas disponíveis. Na época dos barracões, o paciente era amarrado no fundo da rede, hoje há as macas e os corredores dos hospitais públicos, com sua capacidade ultrapassada em até três vezes. Esse é um dos problemas permanentes nas cidades amazônicas. Uma nação soberana cuida soberanamente de suas riquezas, dentre elas seu povo, uma lacuna ainda não reparada. É possível ver no horizonte a proximidade de um mundo sustentável?

Ação recente do Estado para coibir o desmatamento e a exploração da madeira de forma irregular no arco de fogo – Pará, Mato Grosso e Rondônia – deixa às claras a ineficiência dessas operações sem o acompanhamento de uma política que substitua os modelos adotados até agora. Desempregar milhares de operários das serrarias que anos a fio têm essa mesma ocupação profissional com ato de repressão é incompreensível para os dias atuais e para o governo petista. Qual é a proposta nova que vem para amainar o “prejuízo econômico, social” e ambiental? Se, por um lado, os municípios sofrem a demanda social causada pelos trabalhadores das serrarias, também não resistem ao fechamento de comércios, oficinas, tornearias, que fazem parte dessa cadeia produtiva e geram muitos empregos e renda, de baixa qualidade, mas melhor que nada ou a juquira.

Não cabe na cabeça de 80% dos agricultores familiares, de serradores, que é crime o que até então foi incentivado pelos governos “desenvolvimentistas” da região e da Nação. A madeira como riqueza posta por Deus para o homem exportar, gerar divisas, é uma questão cultural, legado do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do general Ernesto Geisel, que incendiou Rondônia, grande parte do norte de Mato Grosso, sul do Pará.

O sistema de repressão contra o desmate e a exploração da madeira que amansa a terra para o boi que traz o pasto, que destoca para a soja, é estéril; vejam os números do desmatamento em Rondônia 2007-2008.

O Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) verificou avanço no desmatamento em duas unidades de conservação rondonienses. A Reserva Extrativista (Resex) Rio Jaci-Paraná teve mais 4 mil hectares desmatados e, com isso, já possui 22% de sua floresta derrubada. A Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro registrou aumento de 9 mil hectares de desmatamento, no período (julho de 2007 a julho de 2008), o total de área desmatada já chega a 77 mil hectares, ou seja, 28% de seus 271 mil hectares. Os analistas estimam que, se nada for feito para coibir o avanço do desmatamento, até 2013 a Flona será reduzida à metade e até 2021 só haverá um imenso pasto no lugar (tudorondonia.com.br).

O peso dessas atividades “marginais” na economia local é importante demais nos dias atuais, as madeireiras ainda respondem por 25,2% da riqueza industrial de Rondônia, a produção moveleira, 7,7%. A pecuária, por outros 15,30% do PIB e ocupa cerca de 120 mil propriedades. A produção de soja cresceu 655% no ciclo 2006-2007 e avança forte no sul do estado. Já comentei nesta revista, edição 20, essa situação. Quais as alternativas em curso?! Estatal nenhuma, infelizmente, ou pelo menos não chega com a mesma força que a repressão compreensível do Ibama e da PF. O PAS e o Território da Cidadania do governo federal concretamente não aparecem; o Zoneamento Socioeconômico Ambiental do Estado é desrespeitado até pelos deputados estaduais. Iniciativas isoladas buscam novas formulações para um modelo diferente, modelos de sustentabilidade promissores que não reverberam nos palácios. No caso de Rondônia, fere de morte o atual governador Ivo Narciso Cassol.

Estamos neste momento chamando a todos os envolvidos neste ciclo a inaugurar um grande debate, a rebuscar dentro de nós a visão de um futuro limpo, do lucro generoso e distribuído, à sustentabilidade antes da morte, um modelo para preservar a vida, um novo mundo neste mundo novo, econômico e socialmente justo para amazônidas e brasileiros, buscamos o “graal” da nova Amazônia.

Bernardo Ciro Lopes é secretário estadual de Organização do PT - Rondônia