Internacional

De 116 países em desenvolvimento, 94 já apresentam retração econômica - dos quais 43 já enfrentavam altos índices de pobreza antes de 2008

De 116 países em desenvolvimento, 94 já apresentam dados de retração econômica, dos quais 43, muitos localizados na África Subsaariana, já enfrentavam altos índices de pobreza antes de 2008

A atual crise com origem nos Estados Unidos, que alguns ainda insistem em chamar de "financeira" já contaminou , o mundo todo e está rapidamente adquirindo o contorno de uma crise econômica comparável apenas com a de 1929 e a Grande Depressão dos anos 1930 que a seguiu.

De 116 países em desenvolvimento, 94 já apresentam dados de retração econômica, dos quais 43, muitos localizados na África Subsaariana, já enfrentavam altos índices de pobreza antes de 2008.

Sejam quais forem as semelhanças entre os dois momentos, a estratégia para enfrentar a crise atual deverá incluir algumas medidas que não foram aplicadas oitenta anos atrás, particularmente a abordagem multilateral. Os remédios daquela época foram basicamente unilaterais. No caso do Brasil, o governo Vargas comprou o estoque de café dos fazendeiros e o queimou para preservar a produção e recuperar o preço do produto no mercado internacional. Deu resultado em tempo relativamente curto. No caso dos Estados Unidos, a solução veio por intermédio das políticas keynesianas do New Deal implementadas por Franklin Roosevelt.

No entanto, a economia mundial de hoje é muito mais integrada e interdependente, o que explica o rápido contágio geral, e, no caso brasileiro e de outros países em desenvolvimento, já não é possível queimar os produtos de exportação como aço, automóveis, eletrônicos, entre outros, para recuperar os preços.

O objetivo deste artigo é passar um rápido olhar sobre a crise fora das Américas e das iniciativas adotadas para enfrentá-la. A primeira constatação é que ela tem causas diferenciadas, a depender das regiões e países. Nos países europeus, sua origem está na liberalização financeira, assim como nos EUA, mas na Ásia o problema maior foi a brusca e rápida queda nas exportações devido à redução da demanda europeia e americana.

Quanto às medidas de combate à crise, os governos vêm aplicando desde o remédio neoclássico de corte nos impostos com o objetivo de ampliar o consumo até a ajuda governamental aos bancos e indústrias em dificuldades sob a justificativa de estimular as atividades econômicas.

No entanto, apesar do consenso quanto à necessidade de intervenções do Estado para enfrentar a crise, há poucas semelhanças com o receituário keynesiano puro de investimentos governamentais em obras para gerar trabalho e renda, nos anos 1930 e após a Segunda Guerra Mundial, e, menos ainda, há preocupações relevantes com a proteção ao emprego e ao bem estar das pessoas.

União Europeia, Leste Europeu e Rússia

Os países da União Europeia, em particular Alemanha, França e Inglaterra, já estavam com a economia em desaceleração antes do início do colapso hipotecário americano e se verificou que seu sistema financeiro também estava contaminado por aplicações em derivativos e empréstimos de risco. O governo inglês, por exemplo, utilizou mais de 20% de seu PIB até agora para adquirir o controle de quatro bancos, entre eles o Lloyds, o terceiro maior do país. A Alemanha injetou  80 bilhões em seu sistema financeiro e outros  32 bilhões para ajudar empresas e consumidores. A Dinamarca propõe reduzir os impostos equivalentes a 49% do PIB em 8 pontos, diminuindo o patamar máximo atual de 63%, o maior da Europa, para 55% em dois anos.

O governo Sarkozy, na França, disponibilizou inicialmente um pacote de  26 bilhões para aplicar em obras públicas e na indústria automobilística. As duas principais montadoras, Renault e Citroën, deverão receber ao todo um empréstimo de  6 bilhões e as empresas de autopeças, outros  600 milhões, para ser pagos em cinco anos, a uma taxa de juros de 6% ao ano. Esses financiamentos, porém, estariam condicionados à manutenção dos empregos e à aplicação integral dos recursos nas unidades fabris na França, provocando queixas no resto da Europa sobre o protecionismo francês e levando o governo da República Tcheca, que atualmente preside a União Europeia, a convocar uma reunião de emergência para discutir medidas mais coordenadas frente à crise.

Há vinte anos os países do Leste Europeu abandonaram os regimes de socialismo real, aderiram à Otan há dez e começaram a ingressar na União Europeia há cinco. No entanto, isso não resolveu seus problemas estruturais nem lhes proporcionou auxílio algum dos demais países da UE para enfrentar a atual conjuntura. Com exceção da República Tcheca, Eslováquia e Polônia, os demais países dessa região enfrentam o que a chanceler alemã, Angela Merkel, classificou de uma "extraordinária crise internacional" devido à fuga de capitais e queda nas exportações.

A UE, entretanto, recusou-se a contribuir com o pacote de  170 bilhões elaborado pelo governo húngaro para socorrer o sistema financeiro dos membros do Leste Europeu. A recomendação aprovada na reunião de emergência mencionada anteriormente foi que busquem socorro junto ao FMI ­ a UE contribuiria apenas com  20 bilhões a  35 bilhões depois de analisar caso a caso. Avalia-se que a manutenção da financeira e da produção no conjunto dos ex-países da Cortina de Ferro, afora a Rússia, custaria algo em torno de € 500 bilhões.

A Rússia não entra nessa conta, pois enfrenta dificuldades ainda maiores. Possui um sistema financeiro instável e vulnerável a ataques especulativos,  sua indústria moderna, exceto a de armamentos, ainda está em processo de consolidação devido ao reduzido mercado interno e os investimentos deverão sofrer uma queda de 14% em 2009. O governo consumiu quase metade das reservas cambiais no final do ano passado para desvalorizar o “rublo” a fim de aumentar as exportações, pois o expressivo crescimento econômico dos últimos anos esteve basicamente ligado à exportação de commodities como gás natural e petróleo.

O remédio europeu contra a crise tem sido liberal, com alguma exceção na França, onde foram destinados recursos para obras públicas e para subsídios sociais – estes, no entanto, liberados apenas após uma vigorosa greve geral de 24 horas convocada pelas centrais sindicais, mobilização que prometem repetir.

A UE tem discutido uma série de propostas para criar um sistema de regulação e supervisão mais eficaz para intervir frente a situações de risco como os problemas financeiros   atuais. Um ex-diretor geral do FMI, Jacques de Larosière, propôs a instituição de um “Conselho Europeu de Risco Sistêmico”, composto por representantes de Estados-Membros e da Comissão Europeia e dirigido pelo presidente do Banco Central Europeu, mas não há consenso para que seja criado, pelo menos no curto prazo. Da mesma maneira que há um consenso quanto à revisão das regras bancárias previstas no acordo Basileia II.

Índia, China e outros países asiáticos

O Japão promoveu  uma reforma bancária  nos anos 1990 “estatizando” alguns bancos que foram novamente privatizados poucos anos depois. Mesmo após um longo período de estagnação devido à falta de dinamismo de seu mercado interno, manteve-se como a segunda maior potência econômica mundial. Em janeiro, porém, sofreu uma baixa de 46% em suas exportações.

Outros países asiáticos também apresentaram quedas graves, como Taiwan, Filipinas, Cingapura e Coréia do Sul, respectivamente, de 44%, 40%, 38% e 34%. Outro grupo de países da região registrou percentuais menores, como Indonésia, 20%; China, 18%; Tailândia, 16%; e Malásia, 15%. Apenas o Vietnã e a Índia tiveram quedas de um dígito, respectivamente 5% e 1%.

Com a crise financeira e a redução do valor de mercado dos bancos em geral, os três maiores agora são os bancos estatais chineses, o ICBC, o China Construction e o Bank of China,  que, segundo a Agência Bloomberg, valem juntos US$ 424,6 bilhões. Os bancos Mitsubishi UFJ e o Sumitomo Mitsui, do Japão, encontram-se hoje, respectivamente, em 7º e 18º lugar no ranking mundial.

As medidas adotadas pelos países asiáticos têm sido, em geral, também liberais, embora sua prioridade em relação ao mercado financeiro seja preservar os câmbios, e não salvar eventuais instituições financeiras prejudicadas pela especulação com derivativos. A memória do ataque especulativo que provocou a crise asiática de 1997-1998 ainda é muito viva, e os dez países-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), somados a China, Índia e Coréia do Sul, criaram um fundo de US$ 120 bilhões para ajudar qualquer desses países a manter a estabilidade de sua moeda.

A Índia, por sua vez, além de contribuir para esse esforço, tem atuado internamente para reduzir a taxa de juros básicos, de 9% em agosto de 2008 para 5,5% em janeiro de 2009, e promover cortes nos encargos fiscais de 96% dos bens e serviços do país, reduzindo-os da média de 14% para 8%, o que deverá elevar o déficit das contas governamentais a 6% do PIB anual. Os críticos dessas medidas do governo indiano afirmam que o orçamento que as sustenta não durará mais de dezoito meses.

O governo chinês lançou um pacote de medidas econômicas no final de 2008 para manter o crescimento apesar da retração de suas exportações. A previsão é gastar US$ 586 bilhões durante dois anos com subsídios à  renda de setores da população, investimentos em transporte ferroviário e aeroportos, aumento do  crédito bancário, construção de estações de tratamento de lixo, investimentos em infraestrutura rural, além da expansão da rede de saúde e educação, erradicação de favelas, redução de impostos para a indústria, estímulos à inovação tecnológica e aceleração da reconstrução da província de Sichuan, que sofreu grave terremoto em maio de 2008.

Para incluir econômica e socialmente o conjunto de sua população, a China precisa crescer fortemente, e há vários anos apresenta um alto nível de expansão, de dois dígitos, o que a levou à posição de quarta maior potência econômica mundial. Apesar de ocorrer uma queda nesse nível, a expectativa é que o pacote provoque um crescimento da ordem de 8% em 2009.

Além dessas medidas, será permitido aos produtores rurais arrendar ou transferir suas terras como incentivo ao aumento da renda na área rural. É a sequência de uma política que nos últimos anos eliminou impostos na agricultura, ampliou o investimento em iniciativas rurais e aumentou o preço de algumas commodities, como o trigo, em 15%, para tentar reduzir a distância entre a renda urbana e a rural. Na zona rural ainda existem cerca de 500 milhões de chineses vivendo com menos de US$ 2 por dia, e a expansão da renda nessa área também é parte da estratégia do governo chinês para aumentar o consumo e o peso do mercado interno.

Desdobramentos

Os desdobramentos de crises econômicas como a atual tendem a ser sociais e políticos. Estes se apresentarão em primeiro lugar no Ocidente, como demonstra uma pesquisa realizada pela Hewitt – consultoria em recursos humanos – sobre a intenção de empresas em diferentes países de preservar ou não postos de trabalho.

De acordo com o levantamento, 55% das empresas americanas promoverão demissões, e da mesma forma 32% na Austrália, 31% na China, 20% na Tailândia, 17% no Japão, 15% na Coréia do Sul e 14% na Malásia. A  previsão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é que a crise poderá eliminar 50 milhões de postos de trabalho no mundo todo.

Na Índia, 13% das empresas pretendem demitir trabalhadores, mas lá a crise econômica e social se apresenta de outra forma. Aqueles que vivem da coleta e reciclagem de metais e papéis tiveram sua renda de 50 rúpias diárias (US$ 1) reduzida pela metade, o que os moveu para baixo da linha que separa a pobreza da miséria, conforme o critério do Banco Mundial.

Os cerca de US$ 2 trilhões gastos mundialmente até agora, exceto o pacote chinês, apenas socializaram os prejuízos, pois nada garante que os que tiveram impostos reduzidos consumam esse dinheiro, em vez de poupá-lo. Nada garante que os bancos transformem a ajuda recebida em crédito popular e nada garante que as empresas socorridas, mesmo assim, não promovam demissões.

Outra política se faz necessária, e cabe aos sindicatos, às organizações sociais e aos partidos progressistas e de esquerda conduzir a luta. Não fazê-lo custará caro a todos.

Kjeld Jakobsen é consultor em relações internacıonaıs, ex-secretárıo de Relações Internacionais da CUT e da Prefeitura de São Paulo

Fontes de consulta: Agência Xinhua, The Times of India, Financial Times, The Economist e Carta Capital