Internacional

Criação de "dois Estados", laicos e democráticos, ainda é vista como solução para o conflito entre palestinos e israelenses

Palestinos e israelenses sonham com o fim do processo sangrento de guerras e sofrimento que domina a região nos últimos sessenta anos. Ainda é vista como solução para o conflito, além de negociações entre os envolvidos, a criação de "dois Estados", laicos e democráticos

Se uma pesquisa de opinião for feita nas ruas de Tel Aviv ou Haifa sobre o que as pessoas pensam quanto às possibilidades de uma paz duradoura e justa com os vizinhos árabes, a esmagadora maioria responderá que almeja a paz. Muitas dirão que estão dispostas a devolver os territórios ocupados desde 1967, que os palestinos devem ter seu próprio Estado, que Jerusalém seria a capital dos dois países. Mas vão acrescentar que as chances de paz não existem, que jamais haverá paz, que os árabes cultivam o ódio e não querem paz, que esse dia nunca chegará.

Se pesquisa semelhante for feita em Gaza ou Nablus, as respostas serão as mesmas. "O que mais desejamos é a paz, já sofremos bastante, seria uma bênção dos céus. Os israelenses nos odeiam e os líderes não se entendem. Não há nenhuma chance de haver paz."

Esse comportamento se traduziu em resposta política. Nas eleições palestinas ganhou o Hamas, não devido a sua ideologia ­ não reconhecer a existência de Israel ­, e sim porque reflete a desesperança de paz com o poderoso vizinho. No pleito israelense houve um deslocamento à direita. Parte dos trabalhistas votou no Kadima, uma porção do Kadima votou no direitista Likud e uma fatia do Likud votou na extrema-direita fascista, representada pelo Israel Beiteinu.

A composição demográfica de Israel sofreu nas últimas décadas profunda transformação. As primeiras levas de imigrantes depois da Segunda Guerra Mundial, fruto de uma intensa campanha de aliá ­ o retorno dos judeus da diáspora à Terra de Israel ­, eram de judeus da Europa Oriental e Central, mas também dos EUA, da Argentina e de outros países. As principais lideranças tinham se formado num ambiente de lutas sociais do socialismo e da socialdemocracia na Europa do final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20 e carregaram parte de seus ideais na formação do novo Estado. Israel era então conhecido, e até reverenciado, pelos seus kibutzim ­ fazendas coletivas ­ e por seu influente Histadrut, a central de trabalhadores. Hoje a aliá é inexistente, os kibutzim foram descaracterizados e perderam peso econômico e social, o Histadrut viu esvair sua influência e não passa de um instrumento a serviço do governo. Grossas correntes imigratórias mais recentes, provenientes da extinta União Soviética e em menor número dos países árabes, passaram a constituir, sob a liderança de figuras da direita extremada, a base social desses partidos. Somado a isso, a influência político-social crescente dos setores religiosos ultraortodoxos explica a forte inclinação à direita do eleitorado israelense. O pensamento dominante entre a população israelense poderia assim ser sintetizado: "Pouco importa o que os não-judeus pensam de nós. Afinal, quando sofríamos sob a sanha do nazismo, o mundo não se importou. Na verdade o mundo sempre foi antissemita. Lutamos pela nossa existência e nossos soldados vão fazer o que for necessário" .

Num cenário em que a esperança se esvai, não há esquerda possível. A esquerda é por sua essência otimista, acredita em transformar o mundo, crê num futuro melhor e na possibilidade de tudo ser mudado, sempre para melhor. O pessimismo é inerente à direita. Esta não acredita que a natureza da sociedade e do homem possa ser transformada e crê que a guerra não passa de uma lei da natureza.

Guerra e paz, é disso que se trata. A saída para essa questão vital passa pelo reexame histórico do sionismo. A direita, ao longo dos anos, conseguiu fazer do sionismo monopólio seu. E quando o sionismo, que para muitos judeus de esquerda era um movimento de libertação nacional, passou a ser definido pela direita, ser de esquerda e sionista tornou-se um paradoxo. O sionismo é um movimento nacionalista que propugna a existência de um Estado judaico e o direito do povo judeu à autodeterminação. Definida a "Terra Prometida" como seu território, tornou-se logo evidente que para o estabelecimento de um Estado os sionistas teriam de proceder a uma profunda transformação, pacífica ou violenta, se necessário, tendente a mudar o equilíbrio demográfico e étnico da região. O projeto de um Estado judaico deveria alicerçar-se em bases culturais e religiosas específicas, definidas pelo modo de vida, valores e visão dos que viriam a habitá-lo, uma cultura totalmente estranha aos povos que secularmente lá viviam e mesmo à pequena comunidade judaica local.

Em 1947, as Nações Unidas, diante dos horrores do holocausto, mas sensível à presença intemporal de comunidades árabes na região, decidiram pela Partilha, o embrião da tese de "dois Estados" No ano seguinte, é . proclamada a independência de Israel e se constitui o Estado judaico, que quase todos pretendiam democrático e laico. Houve reação dos países árabes vizinhos, o que deu início a uma espiral diabólica e sangrenta de guerras, ações terroristas, terrorismo de Estado, assassinatos, conflitos internos, vingança e ódio, que perpassa a história dos últimos sessenta anos na região. No começo da década de 1950, Israel e EUA conformam uma aliança estratégica que garantia a Washington sua presença na região e a Tel Aviv a construção de poderosas forças armadas, fato que desequilibrou, a seu favor, a correlação do poderio bélico. No entanto, houve breves interregnos a demonstrar que a guerra não é inevitável. Menciono o momento em que Yitzhak Rabin estendeu a mão a Yasser Arafat no jardim da Casa Branca, em setembro de 1993, na cerimônia de assinatura do Acordo de Oslo, após meses de reuniões secretas na Noruega entre israelenses e palestinos, e o simbolismo de cenas mostradas pela televisão em Jerusalém. Um grupo de jovens palestinos, delirantes de alegria, marchava pelas ruas, com ramos de oliveira nas mãos e uma enorme bandeira palestina que flutuava sobre as cabeças. Postado numa esquina havia um batalhão da agressiva Polícia de Fronteira. Os telespectadores prenderam a respiração sem saber o que poderia ocorrer. Os palestinos avançaram na direção dos policiais e meteram-lhes nas mãos ramos de oliveira. Os policiais, atônitos, não reagiram. E os jovens, entusiasmados, prosseguiram sua marcha pelas ruas de Jerusalém Leste, cantando e festejando. Um ano mais tarde, Rabin foi assassinado e seu sucessor, Benjamin Netanyahu, iniciou a derrocada do processo selado em Washington.

Uma questão crucial: é compatível um Estado judaico, sionista, com um Estado democrático, pacífico, plurinacional e pluriétnico? É lícito acreditar que sob a égide do Estado sionista os cidadãos árabes israelenses possam ter os mesmos direitos culturais, sociais e nacionais que os judeus? É possível não ser sionista vivendo em Israel dentro dos valores e conceitos definidos pelo sionismo real? É válido ao cidadão israelense acreditar que os judeus têm mesmo direito a um Estado e, ao mesmo tempo, ser contra o sionismo que gera a ocupação e negar-se a legitimar a guerra? Pode-se ser sionista e ao mesmo tempo reconhecer o direito dos refugiados de voltar a seu lugar de origem?

Que a direita responda negativamente a todas essas questões, é da sua natureza. E o que diz e faz a chamada esquerda sionista, aquela que encheu as ruas de Tel Aviv contra o massacre de Sabra e Chatila? Muitos anos se passaram sem oposição aos caminhos aos quais a direita conduzia o país, e esse silêncio se traduziu nas urnas deste fevereiro. A esquerda sionista cedeu, acovardada e inerme, ao sionismo real. Não foi capaz de reagir à guerra do Líbano, de Gaza; crianças mortas, bombas de fragmentação e de fósforo não a sensibilizaram; as atrocidades da ocupação não foram suficientes para arrastá-la às praças.

Para retomar algum protagonismo, a esquerda sionista precisa debater o sionismo hoje. Uma doutrina superada, nascida em outra realidade, que hoje serve para demarcar os campos do que é proibido e do que é permitido, tendo como árbitros forças reacionárias. Esse sionismo significa estabelecer colônias e assentamentos em territórios alheios ocupados? É sinal verde para violências e injustiças de toda sorte? É o sionismo do trabalhista Ehud Barak, que quando primeiro-ministro afirmou não haver parceiros para a paz e a única solução era a guerra, a violência, o assassinato coletivo, a colonização? Ou o sionismo de Avigdor Liberman, que sem fidelidade ao sionismo não pode haver cidadania, tendo como consequência a exclusão e expulsão dos cidadãos israelenses árabes do país? Essa esquerda tem de explicar por que expandir assentamentos é legítimo e sionista e lutar contra isso é ilegítimo e antissionista. Se não revir o sionismo real, se deixar, sem opor resistência, a direita assumir o comando total, impor sua ideologia e controlar a vida israelense, estará abrindo as portas para uma provável destruição do Estado. Israel está situado no Oriente Médio, cercado de países árabes, e lá vai ficar. E o país não pode se transformar numa fortaleza bélica para o resto dos tempos. Ou isso, ou essa esquerda que se curvou sem glória às teses da direita estará fadada à extinção gradual e sem honra.

Lideranças árabes progressistas ­ e elas existem ­ devem levar a Al Fatah que governa a Cisjordânia, o Hamas que governa Gaza e o Hezbollah que comanda importante área do Líbano a examinar a conjuntura com realismo e dignidade, abraçar as soluções políticas negociadas e abandonar as táticas terroristas, convencê-los de que a derrota do inimigo pela força é inviável e só levará mais sofrimento a seus povos e impedir que velhas doutrinas sigam prevalecendo. Tudo isso é necessário para o almejado Estado palestino, viável, laico e democrático.

A ideia mais que sexagenária dos "dois Estados" ainda é a única solução para o conflito entre Israel e os palestinos. A alternativa é a guerra, a continuação da ocupação, a extensão dos assentamentos, mais opressão, mais humilhação. Entretanto, os inimigos da solução de "dois Estados" marcam suas posições. Khaled Meshaal, líder do Hamas, e Hassan Nassrallah, chefe do Hezbollah, insistem em não reconhecer a existência do Estado de Israel, ou seja, pretendem fazer desaparecer um dos "dois" De outra parte, . há os que fingem apoiá-la. Avigdor Liberman, chefe do Israel Beiteinu, é favorável aos "dois Estados" Passou . a campanha reiterando a tese de diversos enclaves palestinos, todos eles cercados de colonos e soldados israelenses. Essas ilhas serão denominadas "Estados palestinos" Israel . se verá livre e limpo dos cidadãos não leais, ou seja, os israelenses árabes, e prosseguirá mandando na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. "Bibi" Netanyahu pensa o mesmo, porém se vale de outros termos. Os palestinos governarão suas vilas e cidades, mas não o território da Cisjordânia nem o de Gaza. E, lógico, não terão forças armadas, não controlarão fronteiras nem o espaço aéreo. Mas haverá o que ele chama de "paz econômica" Tzipi Livni, líder do Kadima, diz que sempre propugnou por "dois Estados" Contudo, antes . deverá haver negociações. Intermináveis, sempre postergadas.

Então, jamais se poderá chegar a uma solução justa e duradoura? Sim, se os EUA, premidos pela sua colossal crise e pouco dispostos a novos focos de conflagração, adotarem uma posição firme de equidistância; se Arábia Saudita, Egito e Jordânia deixarem de ser a quinta roda dos interesses geoestratégicos dos norte-americanos na região; se Irã e Síria, mais Hamas, Hezbollah e Al Fatah, abandonarem visões fundamentalistas e também se sentarem, comprometidos, à mesa; se a União Europeia deixar de, cinicamente, querer tirar suas casquinhas. Se tudo isso ocorrer, a pressão sobre Israel será irresistível e o fará negociar seriamente.

A alternativa é a barbárie sem fim.

Max Altman é membro do Coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores