Juca Ferreira sucede Gilberto Gil no Minc e relata nesta entrevista as frentes de batalha no setor cultural.
Juca Ferreira sucede Gilberto Gil no Minc e relata nesta entrevista as frentes de batalha no setor cultural.
Quando, em 2008, Gilberto Gil deixou o Ministério da Cultura, após uma bem-sucedida gestão, assumiu o então secretário executivo, que nos conta sua trajetória, os limites e avanços do governo na área
Gostaríamos que você recuperasse um pouco de sua trajetória que é de militância, resistência à ditadura, exílio, participação na reconstrução democrática, mobilização em torno das questões ambientais.
Vivia em uma família de esquerda. Até por volta dos 8 anos de idade, moramos pelo interior da Bahia, de Sergipe, do Espírito Santo, acompanhando meu pai, que trabalhava em construção de estradas. Depois fui interno no Rio de Janeiro, mas em uma escola pública, onde a maioria dos alunos era de favelas. Quando ocorreu o golpe militar, eu tinha 15 anos. Em 1967 entrei para o Partido Comunista e em 1968 já estava saindo, pois os achava muito reformistas. Participei do movimento estudantil na Bahia, onde fazia escola técnica. Com o AI-5, fui expulso da escola. Cursei dois anos de História, mas aí eu não tinha mais participação no movimento porque já era um quadro dirigente da chamada Dissidência na Bahia. Eram os quadros que estavam repensando a esquerda em seus diversos aspectos e acabaram contribuindo para a esquerda que fez a luta armada. Fui preso e depois solto. Vivi clandestino até metade de 1971.
Você estava no MR-8?
Sim, o que era Dissidência virou MR-8. Em 1971, liderei no MR-8 um movimento para sair da luta armada. Fui para o Chile e voltei com a legitimidade de ter sensibilizado os quadros que estavam no exterior de que a luta armada estava esgotada. Vivi a experiência chilena, um processo de massa muito interessante. No dia em que cheguei a Santiago pela segunda vez, estava ocorrendo uma manifestação de apoio a Allende, por cinco horas. Quando atravessamos da Argentina para o Chile, metade do ônibus se levantou cantando a Internacional eram os tupamaros. A outra metade cantava a Marselhesa eram os socialistas. Depois do golpe, decidi ir para a Suécia, onde fui trabalhador braçal, faxineiro, estivador, garçom, auxiliar de trânsito e até jardineiro de cemitério. Ajudei a fundar um sindicato. Os trabalhadores estrangeiros de gráfica de jornal ganhavam menos e estavam sujeitos a distorções. Um dia, reunidos por causa de uma injustiça contra um grego, resolvemos fundar um sindicato e fomos ajudados pelo Partido Social Democrata Sueco.
Também aproveitei esse período na Suécia para estudar muito, depois fui para a França fazer Sociologia. A Europa estava tomada por uma série de movimentos sociais.
Foi nesse período que se deu sua aproximação com os temas ambientais?
A Escandinávia e a Alemanha são os mais desenvolvidos nesse tema. Votei pela primeira vez em um partido de Estocolmo. Lá um partido pode começar em uma cidade, ter representação parcial e depois se encorpar. Havia outros partidos locais, como o de mulheres. Juntaram-se todos em uma nova esquerda e fundaram o Partido Verde da Suécia. Era a emergência das singularidades humanas como tema político: mulheres, negros, homossexuais... Eu assinava todos os manifestos. E me desliguei completamente da esquerda, até jurei que não participaria mais de partido político, mas fui escolhido para o Comitê de Anistia. Mais tarde participei de discussões políticas, inclusive a de formação do PT.
Quando cheguei ao Brasil, percebi que a indiferença não estava ao meu alcance porque a miséria, a desigualdade, o caráter insustentável da sociedade e o racismo na Bahia eram enormes. Aos poucos fui atraído pela questão ambiental. Ajudei a fundar o SOS Chapada Diamantina e vários outros movimentos ecológicos.
Como foi sua participação no processo de reconstrução democrática?
Na Bahia, resisti ainda a ter alguma participação política, mas a indiferença exige um alto nível de mutilação, pois é necessário reprimir a sensibilidade, o olhar. Então, à medida que se vive no Brasil, vai se percebendo que há muito ainda por construir. Não se diferencia o público do privado, as relações são muito hierárquicas, e na questão ambiental me chamou a atenção a falta de zelo. O país é fruto do empreendimento colonial e mantém até hoje um perfil de extrativismo, pouco preserva seus recursos naturais.
Trabalhei como assessor na Fundação Cultural do Estado da Bahia, e intensifiquei minha militância. Eu me dividia entre trabalho cultural, questão ecológica e trabalho social. Fui criando um campo de atividade profissional que me possibilitava dar uma contribuição política.
Trabalhei na área de infância e juventude em situação de rua para o Projeto Axé. Percebi que os meninos mesmo na rua faziam parte de um sistema cultural. Por meio da cultura seria muito mais fácil o trabalho pedagógico. A cultura tem a capacidade de encantamento, de reconstituir possibilidades, para além das condições reais e da forma mais prazerosa possível.
Em 1988 me chamaram para fundar o Partido Verde e ser candidato. Não saí candidato, mas ajudei a criar o PV na Bahia.
Você assumiu a secretaria executiva do Ministério da Cultura no apagar das luzes de um governo que tinha como cartilha "Cultura é um bom negócio". O que encontrou como principal desafio?
A coisa que mais nos surpreendeu, a Gil e outros dirigentes, foi a fragilidade do Estado brasileiro. Realizaram um bom desmonte! Não encontramos nem o conceito de política pública. Foi o único ministério que não teve relação com o IBGE na época do censo para obter informações sobre a área, apesar de o ministro ser um sociólogo reconhecido. Não se compreendia a cultura como necessidade fundamental, como é comida, meio ambiente, saúde. Assim, não a compreendiam como um direito. O Estado não tinha papel, repassou suas funções para a área privada. Naquele momento a ideologia dominante era a crença de que o mercado teria condições de cumprir funções até então inerentes ao Estado. E nós percebemos que era o contrário, que era preciso construir política pública. Não havia números, mas percebíamos que o envolvimento e o acesso da população aos bens e serviços culturais eram pequenos.
Agora temos indicadores. Por exemplo, só 5% dos brasileiros entraram em um museu alguma vez na vida, 13% vão ao cinema uma vez por mês. Nenhum dos bens culturais chega a atingir 20% da população. Isso pelo custo, pela falta de informação... Logo no início definimos: cultura não é só arte, muito menos arte consagrada. Então, tínhamos de alargar as relações com o corpo simbólico do país. Depois definimos que se tratava de um direito e, portanto, o Estado tinha obrigações, deveria ter políticas públicas como tem para saneamento, habitação. Ter números, interpretação desses números e capacidade de suprir as deficiências. Definimos que nosso papel não é produzir cultura, definir gostos, reforçar tendências estéticas. É criar as condições sociais para o desenvolvimento cultural e acesso à cultura para todos. Além do mais, tínhamos tarefas de desenvolvimento das artes, de preservação da memória. A primeira grande reformulação foi o reconhecimento da amplitude e da dimensão simbólica. O ser humano faz cultura até nas mais degradadas condições sociais. Isso é o que nos diferencia dos outros animais. Depois, tratar cultura como um direito. Em terceiro lugar, compreender que a cultura tem de ser vista pelo Estado em três dimensões: simbólica, cidadã e econômica. O Estado brasileiro resiste a admitir que se trata de uma economia importante. Estudo encomendado ao IBGE revela que corresponde a 7% do PIB e a 5% de todo o emprego formal no Brasil. Nunca conseguiram ver que a música brasileira era um produto de exportação de primeira qualidade.
Essas três dimensões realizam e orientam a formulação no ministério. Avançamos na área de museus significativamente, de patrimônio e memória. O Iphan estava derrubado, há mais de vinte anos sem concurso. Avançamos menos na Funarte, que é uma das mais importantes.
O ministério enfrentou o problema do financiamento da cultura. Que mecanismos vocês tiveram de gerir para isso, especialmente com relação à Lei Rouanet?
Percebemos que nada era pensado em escala. O ministério não tinha intervenção nos grandes processos culturais do país. E isso era preciso para garantir desenvolvimento da economia, sustentabilidade da cultura, acesso a todos os brasileiros e desenvolvimento cultural. Nós não temos, por exemplo, programas de bolsa de estudos para artistas. Boa parte dos músicos brasileiros surge quase por geração espontânea, de ouvido, não há escolas acessíveis. Mais de 90% dos municípios brasileiros não têm cinema, teatro. Em qualquer área era possível perceber que o Estado havia abdicado de sua função. E esse foi o grande problema: a forte assimilação da lógica de que o Estado é o lobo mau da história da cultura.
A Lei Rouanet, em resumo, disponibiliza dinheiro público para ser gerido a partir de critérios privados. Ainda no primeiro ano fizemos um seminário que envolveu mais de 30 mil pessoas no Brasil. Muita gente estranhou, mas a discussão inaugural foi sobre financiamento. Claro que se não houver como financiar as boas ideias não construiremos nada. Esse foi um processo muito pedagógico. Primeiro, não se tem na sociedade brasileira consciência da importância da cultura e da necessidade de criar uma política de fato abrangente e ter recursos para isso. Nesses 18 anos da lei, só 10% foi dinheiro empresarial. Se tirar as estatais, o volume é insignificante. Todo mundo quer trabalhar com 100% de renúncia. Resultado: os números são escandalosos, 3% dos proponentes captam mais de 50% desses recursos; 80% ficam entre Rio de Janeiro e São Paulo e para um número restrito de artistas e produtores. Então, discutimos no Brasil inteiro, e a reforma que estamos propondo hoje saiu desse debate. Percebemos que nem no nosso meio tínhamos algo consolidado. No governo, nos partidos políticos, a indiferença em relação ao financiamento da cultura é muito grande. As pessoas acham que isso é algo secundário. Quando querem falar a sério, falam de economia, de infraestrutura... A importância de Gilberto Gil foi usar seu capital simbólico pessoal para mostrar essa indiferença, a inviabilidade de desenvolver políticas públicas para a cultura com 0,2% do Orçamento.
Nos surpreendeu na chegada ao ministério o desmonte que realizaram! O governo anterior não compreendia cultura como um direito, uma necessidade fundamental. O Estado não tinha papel, repassou suas funções para a área privada
Depois, com muito esforço conseguimos aumentar para 0,6%. Saímos da insignificância para a precariedade absoluta. Os museus estavam caindo pelas tabelas, a proteção ao patrimônio também, a absoluta desassistência aos artistas brasileiros em todas as áreas, não tínhamos programa de acessibilidade. É preciso ter recursos para tudo isso, as Nações Unidas recomendam pelo menos 1% do Orçamento.
A mudança de paradigma tem permitido a inclusão de milhões de brasileiros num outro patamar de relação com os desafios do século 21. O programa Cultura Viva, que desenvolve a experiência original dos Pontos de Cultura, é algo consolidado e exemplo internacional. Nós modernizamos e somos reconhecidos no mundo inteiro. O secretário geral da Comunidade Ibero-Americana, Enrique Iglesias, considera nossa experiência a mais desenvolvida, com todos os limites, exatamente por essa complexidade. Temos problemas em todas as áreas, crescemos muito, mas não o suficiente.