Política

Ainda são incipientes os estudos acadêmicos sobre a origem, trajetória e atualidade do PSDB

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É uma salutar prática intelectual evitar sedimentar em teoria a análise de acontecimentos sociais que ainda guardam o frescor do recém-vivido. Quase dez anos mais novo que o PT, o PSDB ainda não recebeu dos departamentos especializados da universidade brasileira um tratamento sistemático e profundo à altura de sua importância na história recente do país.

É correta a afirmação que acontecimentos contemporâneos podem jogar novas luzes sobre o passado, tornando o próprio sentido da História incerto e sob permanente disputa. A ascensão da intelectualidade peessedebista, por exemplo, foi precedida de uma forte crítica da tradição varguista ou mesmo nacional-desenvolvimentista. A derrota ou vitória do PSDB nas eleições presidenciais de 2010 certamente contribuirá para o ganho de uma consciência nova sobre sua trajetória passada.

Um dos primeiros estudos monográficos sobre o PSDB foram realizados por Celso Roma, cientista político da USP. Estes levaram o autor a apresentar já em junho de 2000, no III Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, o "Programa partidário e ação estratégica das lideranças: PT e PSDB em perspectiva comparada". A polêmica de Celso Roma é conduzida para criticar o lugar-comum de que a cultura política brasileira não se traduz em partidos coerentes ou com perfis ideológicos com alguma identidade. O autor já identificava nessa época a polaridade PSDB versus PT como organizada em torno a matrizes ideológicas, programáticas, de organização partidária, de alianças eleitorais e bases sociais e eleitorais que guardavam coerência com racionalidades distintas.

Assim, a nova tradição do PSDB conciliava um programa liberal, que o aproximava do espectro de alianças de centro-direita, relacionava-se mais com uma base empresarial do que com movimentos sociais, tinha um perfil mais institucionalista e uma organização partidária com forte centralização da decisão na cúpula, apta a fazer movimentos pragmáticos eleitorais.

O valor da avaliação em perspectiva de Celso Roma foi, no fundamental, confirmado historicamente com a continuidade das disputas presidenciais de 2002 e 2006, centradas na polaridade entre coalizões lideradas por PT e PSDB, que concentraram no mínimo 70% dos votos dos eleitores brasileiros. E, ao que tudo indica, esse padrão de polarização tende a se repetir em 2010. Isto é, vivemos um ciclo político iniciado em 1994 em que o sistema partidário nacional tem se organizado, nas disputas nacionais, em torno à matriz de polarização PT versus PSDB.

FHC e a teoria da dependência  

O ensaio de Carlos Águeda Nagel Paiva, economista da Fundação de Economia e Estatística do governo do Rio Grande do Sul, "FHC: o antidependentista", é interessante para o debate sobre a trajetória intelectual de FHC e sua relação com a renovação da tradição liberal brasileira. Essa trajetória, de enorme irradiação na cultura universitária e política brasileira no pós-64, está no centro da origem do PSDB. O ensaio de Carlos Águeda, editado em 2007, analisa o justamente famoso Dependência e Desenvolvimento na América Latina, em circulação no final dos anos 1960, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, não como parte da tradição de estudos da dependência, mas como em ruptura com essa tradição.

São três as novidades do ensaio de Carlos Águeda. Em primeiro lugar, a relação entre as ideias contidas no último capítulo do livro de FHC e Enzo Faletto, "A internacionalização do mercado: o novo caráter da dependência", e o livro anterior de FHC sobre o empresariado brasileiro, realizado antes de 1964, quando ainda trabalhava integrado aos grupos de pesquisa de Florestan Fernandes. Nesse livro, FHC já indicava certos padrões de modernização inscritos no novo empresariado industrial brasileiro, tendentes a compatibilizar democracia e capitalismo. No último capítulo de Dependência e Desenvolvimento na América Latina, os autores descortinam a possibilidade de um desenvolvimento dependente, isto é, o horizonte de uma solidarização entre o capital externo e a industrialização em certos países da América Latina, entre eles, o Brasil.

Em segundo lugar, Carlos Águeda acentua o conflito de ideias entre FHC e Florestan Fernandes, o qual sedimentará alguns anos depois em A Revolução Burguesa no Brasil o campo analítico que amarra o desenvolvimento de um capitalismo dependente às formas autocráticas de poder. Por fim, o autor procura mostrar como o entendimento de Cardoso e Faletto está em contradição com as teorias clássicas do imperialismo, de extração marxista, e se alimenta de leituras não problematizadoras de teses de economistas liberais clássicos e modernos, como Ricardo e Schumpeter.

Seria importante analisar como o enfoque de Cardoso e Faletto, na verdade, apoia-se no vasto repertório de conhecimentos empíricos e analíticos acumulados pela tradição da Cepal sobre a América Latina e, ao mesmo tempo, dissolve sua problemática histórica, que pensa o desenvolvimento como superação da situação de dependência. Mais do que polemizar com as vertentes de esquerda da "teoria da dependência", FHC está procurando desconstruir nesse momento o conceito de subdesenvolvimento de Celso Furtado, que centralizava conceitualmente toda a tradição nacional-desenvolvimentista. A crítica a essa tradição, que ganhará corpo na obra de Fernando Henrique Cardoso ao longo dos anos 1970, percorrerá um caminho cada vez mais nitidamente liberal, pensando a oposição ao regime militar através da oposição entre "sociedade civil" e "Estado".

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Moderno príncipe  

A dissertação de mestrado "Um moderno príncipe para a burguesia brasileira: o PSDB (1988-2002)", de André Pereira Guiol, defendida em 2006 no programa de História da Universidade Federal Fluminense, é uma tentativa de mobilizar conceitos de Gramsci para entender o lugar e o sentido do partido liderado por FHC. Assumindo polemicamente uma crítica aos trabalhos de Celso Roma, que têm enfatizado o caráter pragmático do PSDB para explicar sua ascensão ao centro do governo do país, André Guiol quer demonstrar como o PSDB é orgânico à burguesia brasileira e internacional, em particular a seus setores financeiros, mobiliza quadros inseridos em vastas redes de elaboração e difusão intelectual e fornece um projeto capaz de, no primeiro momento, aglutinar amplos setores mercantis que se apresentavam dispersos e fragmentados após a fracassada experiência de Collor.

O estudo de André Guiol realiza o trabalho empírico de identificar e reconstituir a inserção social de cinquenta dirigentes que ocuparam lugares centrais nas comissões executivas do partido. Não deixa de ser impressionante a rede de grandes bancos nacionais, estrangeiros e de bancos de investimento, além de dirigentes da Febraban e a presidência da Associação Nacional de Bancos de Investimento, que se faz representar nas direções executivas do PSDB. Sem considerar um conjunto de figuras vinculadas ao setor financeiro que gravitam com centralidade na experiência e nas formulações do partido sem ser propriamente dirigentes do PSDB. Entende-se por que, nesse quadro, os setores vinculados à indústria tenham tido menor peso programático no PSDB.

Uma contribuição interessante é a identificação dos quatro setores que convergem para o PSDB em seus inícios: o grupo mais diretamente vinculado à direção de FHC, que teorizava o caminho liberal da Terceira Via; os democratas-cristãos vinculados à liderança de Montoro; os setores vinculados a um liberalismo conservador; e, enfim, um setor mais à esquerda, agrupado no MUP (Cristina Tavares, José Paulo Bisol, entre outros). Após a saída do MUP, consolida-se a liderança de FHC, que vai galvanizar posteriormente o partido com sua candidatura à Presidência.

André Guiol identifica também, seguindo a nomenclatura do sociólogo Basílio Sallum Jr., os "liberais-desenvolvimentistas", em torno da liderança de Serra, que vão se diferenciando e disputando posições ao longo da experiência com o núcleo duro do neoliberalismo. Evidencia que esses setores, não contrários à privatização nem à flexibilização dos direitos do trabalho, admitem uma maior autonomia desenvolvimentista do projeto, procurando construir linhas de fusão do capital financeiro com o grande capital industrial. É esse setor liberal-desenvolvimentista que vai ganhando posições no interior do PSDB à medida que a ortodoxia neoliberal demonstra crescentemente sua inconsistência e seus danos à popularidade do governo FHC.

Caberiam algumas observações ao uso das categorias de Gramsci para analisar o PSDB. A noção de "moderno príncipe" é uma metáfora utilizada por Gramsci, em diálogo com a obra clássica de Maquiavel, para nomear a função do partido revolucionário em torno a um projeto nacional-popular. Ora, o PSDB não se vincula historicamente a um projeto hegemônico capaz de refundar a Nação. Aliás, o neoliberalismo, programaticamente assumido pelo PSDB e matizado por suas diferentes correntes liberais, em um período foi capaz de centralizar a agenda política nacional e exercer, a partir dela, uma pressão inaudita sobre as tradições da esquerda brasileira. Mas era socialmente excludente, politicamente incapaz de absorver as tradições da esquerda brasileira, subordinando-a, e intelectualmente marcado por um forte sectarismo. Mais do que uma hegemonia intelectual, o PSDB foi capaz de construir uma vasta rede midiática empresarial, isto é, de forte partidarização dos meios de comunicação de massa, que ainda hoje sobrevive a duas derrotas eleitorais nacionais.

Como o voto entre PT e PSDB se decide?  

A tese de doutoramento de José Paulo Martins, defendida em 2007 na Ciência Política da USP, tem o nome "A disputa entre PSDB e PT nas eleições presidenciais: 1994-2006" e é certamente um dos maiores esforços de pesquisa já realizados no sentido de buscar padrões definidores da votação dos brasileiros. Orientada pela professora Maria Dalva Kinzo, com larga tradição no estudo dos partidos brasileiros e relacionada à inteligência do PSDB, a tese faz uso de 25 bancos de dados eleitorais, de diferentes fontes, e dialoga com três tradições interpretativas do voto eleitoral no interior da ciência política. O método utilizado, sofisticado do ponto de vista de pesquisas quantitativas, é o das regressões logísticas, no qual um certo número de variáveis independentes é correlacionado a dois campos de resposta.

O autor dialoga e procura testar padrões de definição de voto em relação a três tradições de investigação: aquela de viés mais sociologizante, que relaciona a definição do voto do eleitor à sua inserção social (classe, renda, urbano ou rural) ou à sua inserção em subculturas ou subgrupos (religião, gênero, etnia); outra que consulta a relação do voto com as filiações ou afinidades partidárias; e uma última que relaciona a definição do voto mais fortemente a eventos conjunturais, avaliações de governo e candidaturas.

O autor busca alinhavar conclusões, depois de testar quantitativamente um grande número de hipóteses, que vão na direção, como fator principal de definição do voto, da simpatia pelo candidato, com algum peso na avaliação dos governos e menor ponderação das afinidades partidárias e das inserções sociais.

Testando as hipóteses de correlação de voto com as dimensões sociais ou de subculturas, José Paulo conclui que o eleitorado mais pobre, do Nordeste e negro/pardo tem sempre maior tendência a votar no PT, o mesmo valendo, em sentido inverso, para o PSDB, cuja votação cresce no eleitorado branco e de maior renda. Entre 1994 e 2006 teria havido uma mudança nos padrões de votação no candidato do PT, com o voto firmando-se entre os brasileiros mais pauperizados e crescendo entre os mais idosos e a intenção de voto enfraquecendo-se entre os mais jovens. Mas essas variáveis, afirma o autor a partir das correlações verificadas, explicam apenas parte da votação do eleitorado ou, de todo modo, não são fortes o suficiente para explicar a definição geral do voto majoritário nas eleições presidenciais.

Cabem aqui três observações importantes. Em primeiro lugar, o autor trabalha com uma diferença muito larga no que diz respeito à renda dos eleitores (mais de 5 salários mínimos ou menos de 5 salários mínimos), o que o leva a afirmar incorretamente que os brasileiros estão mais pauperizados em 2006 do que em 1994. A proporção dos que ganham menos que 5 salários mínimos aumentou, mas houve no período forte elevação de seu valor real. Como já foi amplamente documentado, houve uma forte migração de dezenas de milhões de brasileiros de situações de maior pobreza para menor pobreza nos últimos anos. Em segundo lugar, ocorreu uma mudança significativa na "cor" dos brasileiros, revelando um processo histórico de afirmação e de autoestima daqueles que respondem aos questionários reconhecendo sua condição de não brancos. Em 1994, os que se diziam brancos eram 60% e os que se diziam negros ou mulatos eram 36%; em 2006, eram 40% e 58%, respectivamente. Em terceiro lugar, o autor verifica que a correlação entre menor renda e tendência de voto no PT aumentou de 38% no primeiro turno de 1994 para 73% no segundo turno de 2006. Neste ano, a porcentagem dos brasileiros que recebem até 5 salários mínimos chega a 86%. Mantida essa correlação, nas eleições de 2010 a variável renda pode ter um impacto decisivo nos resultados.
Importância dos partidos  

Em geral, o autor trabalha com um campo analítico que avalia como decrescente a influência dos partidos na definição de voto, seguindo um padrão internacional. Como o antagonismo ao paradigma liberal teria diminuído nas últimas décadas, havendo uma convergência dos partidos para o centro, como as identidades a partidos mobilizam uma minoria de eleitores e, enfim, como é cada vez maior o poder da mídia nas eleições, derivam-se daí tendências semelhantes para o caso brasileiro.

Apesar de haver sempre uma maior identidade organizada para o PT, cerca de dois terços dos eleitores não teriam uma filiação partidária fortemente constituída; apenas 22% votam no partido com que se identificam; 16% não votam em candidatos de partidos com os quais se identificam. A rejeição a partidos abarca apenas 10% do eleitorado. A prática cambiante das coligações partidárias no Brasil obscureceria ainda mais a identidade dos partidos para os eleitores. O fator partidário, testado nas correlações, teria assim impacto sobre uma parcela minoritária do eleitorado.

No caso do PT, a avaliação negativa dos eleitores era de 25,8% em 2002, passando a 32,6% em 2006. A avaliação positiva teria caído de 48,1% para 42,3% no mesmo período. O PSDB, por sua vez, contaria com avaliações negativas de 35,5% e 38,1% e positivas de 20,3% e 30,7%, respectivamente.

Após a consideração das variáveis sociais e regionais e das referentes a partidos, o autor concentra-se, a partir do modelo da escolha racional, nas dimensões conjunturais (avaliações positivas ou negativas de governo, reeleições ou não) e no fator candidato. Depois de testar correlações, chega, então, à conclusão de que essas variáveis são determinantes dos resultados nas eleições presidenciais no contexto da polarização PSDB-PT, em particular a imagem do candidato frente aos eleitores. Essa avaliação é compatível com a identificação do tipo médio ou majoritário do eleitor brasileiro, entendido como "novo eleitor não racional", isto é, pouco sofisticado nas informações para a definição do voto e pouco disposto a uma participação política mais engajada.

Resta saber, sem validar a força de argumentos e da empiria presentes na tese do autor, se os fatores avaliados como conjunturais podem ser assim separados analiticamente das variáveis chamadas "sociológicas" ou partidárias. Isto é, se a própria imagem pública dos candidatos não está, com as mediações devidas em cada caso, atada também na consciência do eleitor às dimensões sociais e de referência partidária no espectro brasileiro. E se, mais além disso, o esforço analítico do autor não apaga o que pode haver de aprendizado do eleitor, de formação de consciência e de construção de identidades ao longo de tantos anos de polarização entre coalizões lideradas pelo PSDB e pelo PT.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais

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