Cultura

Entrevista com Geraldo Moreira Prado, o Alagoinha

A 225 quilômetros de Salvador, em São José do Paiaiá, distrito de Nova Soure, uma biblioteca comunitária, transformada em Ponto de Cultura, é coordenada à distância pelo seu fundador. São cerca de 45 mil livros num povoado de mil habitantes, basicamente de doações do Sudeste do país

Foto: JAM Prado

[nextpage title="p1" ]

Antes de mais nada, poderia explicar por que alguém chamado Geraldo Moreira Prado se torna universalmente – da China a Paris, passando por vários sertões – conhecido como Alagoinha, a ponto de poucos saberem seu nome de batismo?
Ah, esse apelido data do tempo em que morei no Crusp, o  conjunto residencial da USP. Eu era tão evidentemente sertanejo – aparência física, sotaque etc. – que meus colegas me chamavam de Alagoinha, porque essa era a cidade do sertão da Bahia que eles acreditavam ser meu berço. Na verdade, erravam, mas erravam por pouco, porque sou mesmo nascido numa cidade ali pertinho de Alagoinhas, onde minha família mora até hoje. Cidade, não, um arruado, ou vilarejo de uma rua só e não mais que mil habitantes, São José do Paiaiá, no município de Nova Soure (antiga Natuba). Nova Soure faz divisa com sete outros municípios: Cipó, Olindina, Sátiro Dias, Araci, Biritinga, Tucano, Itapicuru. Sertão de Canudos, território das peregrinações de Antônio Conselheiro. Paiaiá era um povo indígena, hoje extinto. Ali devia ser um aldeamento indígena dos padres catequistas, como outros da região, os Rodelas etc.

Foi até mencionado num poema de Gregório de Matos. Mas quando foi que você morou no Crusp?
Vim para São Paulo estudar, mas só tinha o primário e precisei fazer supletivo. Para me sustentar, fui faxineiro, porteiro, morei na casa de máquinas do elevador, tudo isso no Centro, no que chamam de “zona do baixo meretrício”. Quando tinha dinheiro para comer, pegava e comprava um livro. Entrei no vestibular do curso de Português e Chinês da USP, porque era o de menor concorrência, mas acabei me transferindo para História, em que me diplomei, porque não consegui aprender chinês de jeito nenhum. Outro dia fui à China, onde fiquei hospedado com uma prima que trabalha no corpo diplomático e me levou para conhecer o país todo, e verifiquei que fiz bem, porque não ia conseguir aprender mesmo.

Imagine, de Português e Chinês para História... Mas você fez vários outros cursos e ficou conhecido de muitos professores e muitos colegas, como sabem os que pertencem à imensa rede de amizade, aliás internacional, que é sua devota. Como foi isso?
Nessa época, o estatuto da USP permitia que um aluno fizesse diferentes cursos avulsos. Fazendo História, eu podia assistir a aulas de Florestan Fernandes, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Emília Viotti, Paulo Beiguelman, Alfredo Bosi, Ruth Cardoso, Fernando Novais, até de Fernando Henrique Cardoso, e de muitos outros. Então, aproveitei bem. Afora isso, peguei 1968, fui ocupante da Maria Antônia e do Crusp, tive a honra de ser desalojado pelo Exército, preso no Dops e na Oban. Sendo um meia-oito e militante, conhecia todo mundo. Fui um dos que se cobriram com a bandeira do Brasil nas noites da ocupação, porque era inverno e fazia muito frio. Depois, tornei-me petista, o que sou até hoje, e conheci mais gente. No ano passado promovemos em São Paulo a festa de comemoração dos quarenta anos de nossa ocupação, veio todo mundo, foi uma glória. Ao todo, fiz a proeza de ficar oito anos estudando na USP.

Você já trabalhou no CNPq, morando em Recife, não foi? E agora, morando no Rio, trabalha no Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia e leciona na UFRJ. E foi no Rio que começou essa ação da Biblioteca Comunitária. Freguês inveterado de sebos e livrarias desde o tempo em que trocava comida por livro, comprador compulsivo de livros e revistas, doou sua biblioteca pessoal de 12 mil volumes para São José do Paiaiá. Como é que foi isso?

Eu tinha uma casinha no arruado, num correr de casinhas de porta e janela em parede-meia, que pertenceu a um conhecido meu. Ele a trocou por uma sela de cavalo e me vendeu por R$ 2 mil... Derrubei a casinha, deixando só a fachada, e ergui no terreno três lajes de concreto: ali havia lugar para uma modesta biblioteca. Depois – você não vai acreditar – consegui que a Viação Itapemirim levasse todos os 12 mil livros para São José, de graça. Encostaram um caminhão-baú e carregaram tudo, e olhe que são 2 mil quilômetros. Agradeço até hoje aos anjos dessa companhia, que disseram que sendo livro teriam prazer em transportar: do Rio, sr. Perin, d. Viviane, d. Deulenisse; de São Paulo, d. Margareth Cola. Fiquei sabendo que eles fizeram a mesma coisa para um biblioteca no Maranhão e outra no sertão do Ceará.

E como passou a funcionar?
Contratei um sobrinho ainda no colegial, a quem pago um salário mínimo do meu bolso para tomar conta dos livros e atender os consulentes. Eu moro e trabalho no Rio, vá lembrando. Pois meu sobrinho desenvolveu uma vocação: foi estudar mais e se enfronhar em coisas de biblioteca, e hoje é uma liderança na região. Inicialmente, quem fazia a limpeza e manutenção eram as senhoras do povoado. Os habitantes locais têm orgulho da biblioteca, têm sentimento de posse e de proteção para com ela, e era isso mesmo que eu queria. Só no começo houve  certa resistência por parte de algumas pessoas. Uma era o padre, por causa da minha fama de “comunista da USP”. Outra foi uma senhora que viu na televisão a história de um roubo de livros em algum lugar famoso e, quando deparou com o caminhão encostando e descarregando aquelas toneladas de material, achou que eram do roubo a que assistira. Ela foi de casa em casa, prevenindo as pessoas. Mas tudo isso passou e hoje temos outro padre, grande fã e incentivador da biblioteca.

E parou aí, quer dizer, seu sobrinho foi atendendo quem aparecia e tomando conta dos 12 mil livros?
Não, não, não. Desandei a fazer projetos e, com esse núcleo, deslanchei campanhas de doações. Hoje há lá cerca de 45 mil livros. O Gadelha, jornalista carioca, fez um levantamento nas estatísticas do mundo todo e chegou à conclusão que, entre as comunidades rurais com menos de 50 mil habitantes, essa é a maior biblioteca do mundo, veja só. Nosso povoado tem apenas mil habitantes.

Conte um pouco mais. A biblioteca tem nome?
Fiz uma assembleia com a população para coletar propostas de nomes. Apareceu de tudo, mas o nome que ganhou, e não foi proposta minha, foi o de uma tia que era professora de primeiras letras. Resultou num belo nome: Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado, fundada em 2002. A fachada de porta e janela traz esse nome estampado e mais uma frase de Bertolt Brecht: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos”. Chama-se Biblioteca Comunitária porque nos inscrevemos no projeto de bibliotecas comunitárias do Fundo Universal do Serviço de Telefonia (Fust), pelo qual, por lei, 1% da arrecadação do imposto de telefonia celular é aplicado na criação e no desenvolvimento de bibliotecas públicas comunitárias. E desembestei fazendo projetos. Um para o Banco do Nordeste Brasileiro (BNB), de formação de leitores e contadores de histórias. Dois de ensino fundamental no meio rural para o HSBC e a Brazil Foundation, outro para o BNB. Um de preservação de acervo para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Um para Ponto de Cultura, um para Ponto de Leitura. Um para SalaVerde (educação ambiental), do Ministério do Meio Ambiente. Um de Telecentro para Inclusão Digital, para o Serviço de Processamento de Dados (Serpro). Ganhei todos, nunca perdi nenhum; isto é, salvo um para a Petrobras. Com isso, hoje a biblioteca tem dez computadores, seis que recebi pelo projeto do Serpro, um doado por um parente meu que mora em São Paulo e mais três que eu mesmo comprei. A utilização dos computadores é livre.
Por falar nisso, seis meninos que frequentaram a biblioteca para estudar e fazer lição entraram em universidades públicas da Bahia e de Sergipe, e dois deles já estão quase se formando. É normal, hoje em dia, os alunos da escola de São José do Paiaiá fazerem lição de casa na biblioteca. A repetência local já diminuiu em 20%. Os adultos vêm à noite, para ler livros e revistas. Há mesmo um que vem todas as noites. Estamos roubando audiência da televisão. Por isso, a biblioteca fica aberta todos os dias da semana – incluindo sábados e domingos, que é quando pode vir gente de mais longe –, das 8 da manhã às 9 da noite. Tem gente que vem a pé, de bicicleta, de ônibus ou a cavalo. E vem gente de bem longe, porque é a única biblioteca rural do sertão. Devido à coleção de história da China, hobby meu, veio um consulente de Salvador, da Universidade Estadual, que estava preparando seu doutorado.

[/nextpage][nextpage title="p2" ]

 

A propósito, fale um pouco do acervo.
Bem, naturalmente o acervo que fui formando ao longo da vida decorre de meus interesses, como é o caso da história da China. Tem muita literatura brasileira, ficção e poesia, com obras completas de nossos maiores escritores. Alguns estrangeiros também, como as obras completas de Molière, em francês, em edição de 1732. Há livrso de história, sociologia, antropologia, estudos rurais. Brasiliana, quase tudo, todos os clássicos para entender o Brasil – o normal de quem se diplomou em História. E não tenho preconceito, acolho tudo o que queiram me presentear. Ultimamente eu, um ateu, recebi uma coleção de esoterismo, e está tudo lá, tem quem goste. Um dono de sebo do Rio me deu 5 mil revistas de histórias em quadrinhos – também levei para lá, e as crianças adoraram. Tem ótimas coleções de revistas comerciais, não especializadas, mas também de suplementos literários e culturais. Recebo revistas científicas gratuitamente e de algumas pago assinatura, e todas vão para lá. Temos coleção de DVDs, aos quais as pessoas podem assistir, e cerca de 10 mil periódicos.

De 12 mil para 45 mil, mais que triplicou: se o acervo inicial já é admirável, o aumento também é de espantar. Como se fez esse crescimento?
Você não imagina como tem gente boa neste mundo, pronta a fazer doações. Aproveito a oportunidade para agradecer a todos, e aqui vai a lista: PUC-Rio; Fiocruz; várias divisões da UFRJ, na qual sou professor, divisões de Economia, Educação, Colégio de Aplicação, Fórum de Ciência e Cultura, Escola de Comunicação e Ciência da Saúde; meus alunos de graduação, mestrado e doutorado no programa de pós-graduação em Ciência da Informação, na Escola de Administração da UFRJ; Biblioteca Municipal Pedro Nava, da Glória, bairro em que moro; Biblioteca Nacional; Biblioteca Histórica do Itamaraty; Fundação Alexandre de Gusmão, do Rio; Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; Associação dos Projetos de Tecnologias Agrícolas; Embrapa, com vários centros de pesquisa, principalmente o do Trópico Semi-árido. Além desses, amigos e outras pessoas costumam deixar pacotes e caixas na portaria de meu prédio, ou então telefonam para que eu vá buscá-los. Meu apartamento e meu escritório já estão de novo com um metro de altura de doações, espalhados por onde der.

E as despesas? Afinal, é preciso pagar luz, água, imposto predial, manutenção e consertos – além do salário do bibliotecário-chefe, seu sobrinho. Como é que você faz? Como mobiliou as três lajes de concreto, estantes, mesas e cadeiras para leitura? Com outro projeto?
Água não se cobra lá, nem imposto predial. Quanto ao resto, eu pago luz, telefone, consertos... Como moro e trabalho no Rio, coordeno tudo por telefone e vou lá a cada três meses mais ou menos. Sai caro. Mas agora, com o Skype, vai ficar mais barato. As três lajes de concreto, mobília, estantes, mesas e cadeiras eu banquei, com meu minguado salário.

Você, que só entrou numa biblioteca pela primeira vez aos 14 anos, no Colégio Central da Bahia, em Salvador, até então que livros possuía?
Até então eu só tinha um livro, e era Na Sombra do Arco-íris, de Malba Tahan, presente de minha professora no primário, Maria Ivete Dias, mãe de Ivete Sangalo. Ela, que é de Juazeiro, foi nomeada para São José do Paiaiá, veio morar na casa de uma tia minha e dava aula na escolinha.

Quais são seus planos para o futuro da Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado? Sim, porque já percebi que você não para e está sempre pensando em ir em frente, em melhorar as coisas.
Bem, a biblioteca tornou-se um centro de sociabilidade, e aproveitamos para dar cursos de ambientalismo, desenvolvimento local, cidadania etc. Mas aqui também não temos preconceito e lutamos para atender aos desejos da população, e por isso já promovemos cursos de corte e costura e de culinária. Queremos ampliar o âmbito desses cursos. E, naturalmente, a catalogação é uma de nossas prioridades, junto com a informatização. Para isso, nossos dez computadores serão fundamentais.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate

[/nextpage]