Sociedade

Normas geradas por denúncias de irregularidades em convênios entre governos e ONGs criaram paralisia em serviços públicos prestados à população

Muitas políticas públicas são executadas por organizações da sociedade civil em parceria com governos. Entretanto, denúncias de irregularidades em alguns convênios geraram normas que acabaram por paralisar muitos serviços prestados à população

Surpreende à primeira vista o intenso relacionamento dos governos da União, estados e municípios com organizações não governamentais (ONGs). Estas executam, em parceria com aqueles, políticas públicas das mais variadas espécies. Grande parte das ações do governo federal no campo da saúde, da educação de jovens e adultos, da pesquisa científica, da assistência social, do desenvolvimento local e regional, do combate à fome e pela segurança alimentar, no apoio à economia solidária etc. é executada, com recursos governamentais, por entidades especializadas, sem fins de lucro, da sociedade civil.

Essa ampla e diversificada simbiose entre o Estado e setores organizados da sociedade civil, na formulação e realização de políticas públicas ­ que não é uma peculiaridade brasileira, ocorre na maioria dos países ­, explica-se por razões históricas. Muitas das atividades que hoje estão no âmbito governamental foram originalmente desenvolvidas por entidades da sociedade civil, às quais boa parte destas continua se dedicando, agora sob orientação dos órgãos estatais respectivos e com recursos deles recebidos.

Isso ocorre, por exemplo, na Previdência Social. Antes de os governos começarem a instituir sistemas nacionais de seguridade social, que atualmente abrangem a totalidade dos que exercem atividades econômicas em cada país, os trabalhadores haviam começado a se associar em cooperativas ou mútuas para se proteger em conjunto contra o desemprego, a doença, a invalidez e outros sinistros. Essas associações previdenciárias reuniam trabalhadores dos mesmos setores de atividade e de âmbito local ou, no máximo, regional. Quando a previdência social se tornou política pública, grande parte das cooperativas e mútuas atuantes nessa área foi incorporada ao sistema nacional, mas outras se mantiveram independentes, complementando suas ações com as da previdência pública. São exemplos análogos o SUS, o ensino escolar público, a produção científica, artística, a mídia etc. Em suma, são muitas as ONGs que realizam políticas públicas como parceiras do poder público ou como prestadoras alternativas de serviços públicos.

Essa associação se deve à competência e ao empenho das ONGs na formulação e execução das políticas, uma relação completamente diferente da que o Estado mantém com fornecedores de bens e serviços, quase sempre empresas com fins de lucro. Nesses casos, é do interesse do vendedor obter pelo que fornece o maior preço, ao passo que o interesse do Estado é pagar o menor. Por isso, a aquisição de bens e serviços é feita mediante licitações, que, em geral, são ganhas pelas empresas que oferecem os menores preços. Mas, quando o Estado faz convênio com entidade civil que não visa ao lucro, a meta das duas partes contratantes é a mesma: realizar o objetivo combinado. O valor transferido pelo Estado à executante é a soma das despesas necessárias para concretizar a meta, menos uma porcentagem determinada por lei, que constitui contrapartida obrigatória, paga com recursos próprios pela ONG conveniada.

Sempre que há desembolsos pelo poder público, surge a suspeita de que o dinheiro seja desviado de sua finalidade em proveito dos que montam e executam a transação. Para evitar que isso aconteça, toda uma série de cuidados cerca as licitações e recentemente passou a ser exigida também nos convênios. Investigações demonstraram que, nas parcerias entre o Estado e ONGs, estas, algumas vezes, não são o que parecem: em vez de a serviço do bem público, são falsas entidades sem fins de lucro montadas por aproveitadores, que não têm competência nem intenção de executar as ações previstas nos termos da parceria com o poder público.

Os escândalos provocados pelas denúncias acarretaram a adoção de novos regulamentos das parcerias do Estado com ONGs e a formação de uma CPI para investigar convênios contra os quais forem levantadas suspeitas. Muitas das medidas aplicam regras das licitações aos convênios, provavelmente com a esperança de assim evitar que estes possam ser celebrados com falsas ONGs. O Decreto nº 6.170 de 28/7/2007 dispõe que "a celebração de convênio com entidades privadas sem fins lucrativos poderá ser precedida de chamamento público, a critério do órgão ou entidade concedente, visando à seleção de projetos ou entidades que tornem mais eficaz o objeto do ajuste" (art. 4º).

Essa medida deu lugar a muitas controvérsias porque agentes dos órgãos de controle entendem que o "poderá" do texto legal deve ser entendido na verdade como "deverá", tornando obrigatório o que é uma mera possibilidade. Pela redação se percebe que o chamamento só se aplica quando há várias entidades civis especializadas que podem ser conveniadas, o que justifica estabelecer competição entre elas para que a mais eficaz seja contemplada. Mas situações como essa são relativamente raras. Na maioria das vezes a política pública já vem sendo executada há tempos por uma mesma ONG, que ao longo dos anos adquiriu grande prática e competência, merecendo plena confiança do poder concedente. Portanto, não faz sentido abrir um chamamento para que essa ONG tenha de competir com outras, em geral inexperientes e desconhecidas dos representantes do Estado, além do que isso leva tempo e exige trabalho, retardando e encarecendo a celebração de convênios.

Outra medida que está causando considerável dificuldade à celebração de parcerias com entidades civis e também com governos estaduais e prefeituras é a exigência de que todas as entidades privadas sem fins lucrativos que pretendam conveniar-se com o governo federal se cadastrem previamente no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (Siconv). Este é um sistema computadorizado, bastante complexo e cujas particularidades nem sempre se ajustam às necessidades dos inúmeros convênios que o poder público vem gerindo. O Siconv inspirou-se no Siafi, o sistema de gestão das compras e contratos da administração pública federal com empresas com fins de lucro, que levou uns bons dez anos para se tornar adequado e realmente útil ao controle da gestão dos recursos públicos pela sociedade civil.

No caso do Siconv, oficializado pelo Decreto nº 6.428 de 14/4/2008 e tornado obrigatório a partir de 1º de setembro do mesmo ano, como seria de esperar o sistema está longe de ser operacional. Apresenta ainda numerosos defeitos, que vão sendo corrigidos à medida que causam danos e reclamações, e seu uso por parte das administrações públicas e das ONGs exige treinamento específico das pessoas que devem manipulá-lo. A introdução do Siconv deveria ter sido gradativa, aplicada inicialmente em caráter experimental a um pequeno número de convênios. Do modo como está sendo feito, continua sendo fonte de inúmeras dificuldades para o bom andamento das parcerias entre o poder público e entidades da sociedade civil.

Outra área de muitas controvérsias é a definição das despesas efetuadas pela parceira civil do convênio que devem ser cobertas por recursos transferidos a ela pelo poder público. Em sua grande maioria, o objeto dos convênios é prestação de serviços, sejam eles colocação de desempregados, incubação de cooperativas, ensino escolar, pesquisa científica, assistência à saúde etc. Ora, a prestação de serviços não exige outra coisa, em geral, senão a realização de trabalho, de modo que a principal despesa a ser ressarcida é o pagamento devido a trabalhadores. Objeta-se contra o ressarcimento dessa despesa pelo poder público porque a entidade civil, para ser conveniada, já deve ter realizado atividades relacionadas com o objeto do convênio, além de dispor de condições técnicas para executálo. O que significa que a entidade já deve ter em sua folha de pagamentos pessoas capacitadas para executar o objeto, e portanto ressarci-la de uma despesa que ela já vinha fazendo seria "enriquecê-la" indevidamente.

Assim, essa interpretação impediria a celebração de convênios, na prática, pois pressupõe que a ONG já dispõe de alguma fonte de recursos para remunerar o trabalho que o objeto do convênio demanda, quando na realidade a fonte desses recursos só pode ser o próprio poder público, que deve têlos fornecido em função de convênios anteriores. A dúvida foi dirimida pelo próprio Ministério do Planejamento, depois de ser consultado, nos seguintes termos: "Percebe-se, no entanto, que, não obstante haver a necessidade de certificação de padrões mínimos de qualificação técnica e de capacidade operacional, cada celebração de um convênio ou contrato de repasse impõe à recebedora dos recursos, além da execução do objeto, uma série de novas demandas, decorrentes do gerenciamento de tais atividades. Diante disso, é razoável pressupor que a entidade não necessite possuir antecipadamente todos os requisitos técnicos e operacionais necessários para a realização da totalidade do objeto, pois esses poderão ser implementados ou mobilizados com recursos oriundos do próprio convênio..." (Retirado do sítio http://www. convenios.gov.br em 22/7/09).

A confusão resultante da sucessão de novas normas de conveniamento tem suas consequências agravadas pela rigidez dos prazos de execução orçamentária, combinada com o contingenciamento da maior parte dos recursos orçamentários aprovados por lei. Estes não ficam disponíveis para ser aplicados até praticamente o fim do exercício. Apenas nas últimas semanas do ano uma parte é descontingenciada. Mesmo em circunstâncias normais, a celebração de grande número de convênios num prazo exíguo já seria extraordinariamente difícil. Mas, quando os procedimentos têm de seguir normas inéditas, muitas com interpretações controversas e com o uso de instrumentos ainda imperfeitos, como o Siconv, a tarefa torna-se impossível.

Em 2008, numerosos convênios tiveram de ser encerrados, embora estivessem disponíveis recursos orçamentários para que pudessem ser prolongados. A maioria das emendas parlamentares, com recursos finalmente liberados, caiu em exercício findo, vítima dos defeitos do Siconv e/ ou das interpretações controvertidas das novas normas. Muitos milhões de reais tiveram de ser devolvidos ao Tesouro, configurando verdadeira crise no relacionamento do Estado com seus parceiros da sociedade civil. A mais prejudicada pela interrupção inesperada e indesejada de inúmeras políticas sociais foi a população que delas depende porque não tem dinheiro para adquirir de empresas lucrativas os serviços faltantes.

Paul Singer é secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego