Cultura

Multiplicação do número de grupos teatrais é parte da batalha contra políticas neoliberais na área cultural

Produtores de um tipo de arte que não se submete às determinações do mercado lutam para garantir sua sobrevivência e pelo direito de existir como artistas que querem expandir e ampliar seu repertório de temas e formas de expressão teatral. A multiplicação do número de grupos nessa batalha é resultado das políticas neoliberais na área cultural e do encolhimento do mercado de trabalho

O movimento Arte contra a Barbárie surgiu oficialmente no dia 7 de maio de 1999 para lutar contra a situação criada pelas leis de renúncia fiscal, em particular a Lei Rouanet e suas versões paulistas, estadual e municipal. Seu Manifesto perguntava pelo valor da cultura no país, tomando como referência sarcástica o orçamento do Ministério da Cultura, e propunha a luta por políticas públicas para a área.

O movimento congregava basicamente grupos teatrais que faziam um tipo de teatro que não agradava aos profissionais de marketing que decidem sobre a destinação das verbas da renúncia fiscal. Estas, obviamente, passaram a fazer parte do orçamento de publicidade das empresas, que obviamente contam com veículos muito mais eficientes do que o teatro para esse fim. Ainda mais grave que isso, os espetáculos desses grupos não obtinham um retorno mínimo de bilheteria que assegurasse sua continuidade como mercadoria de tipo artesanal de modo autônomo, isto é, independente dos patrocínios do grande capital.

Mesmo entre aqueles que se dispunham a se lançar no mercado, isto é, a contar apenas com o retorno de bilheteria, generalizou-se a constatação de que não há demanda de mercado ­ ou, para dizer a mesma coisa, não há mercado para o tipo de trabalho que fazem. E nos últimos dez anos a experiência só tem confirmado essas avaliações.

A própria multiplicação do número dos grupos que lutam pelo direito à existência já é expressão do encolhimento do mercado de trabalho (fenômeno mundial), inclusive no ramo da produção de mercadorias culturais. O mais eloquente dos exemplos recentes é o desmentido cabal das promessas feitas pelos arautos da TV por assinatura e a cabo, quando de seu lançamento entre nós: ao contrário da multiplicação dos postos de trabalho para artistas e técnicos e da prometida abertura de canais para veiculação da produção independente, o que tivemos foi nova inundação de lixo cultural mundial, com destaque para o norte-americano (99% da produção, segundo estimativa de Woody Allen).

Essas informações deixam claro que os grupos de teatro de São Paulo percebem estar reduzidos à luta contra as malfeitorias do mercado e das mercadorias não mais por postura ideológica, como outrora foi o caso de militantes de partidos de esquerda, mas por mera questão de sobrevivência em meio ao estado de coisas criado pelas contradições e pelo encolhimento cada vez mais visível do sistema capitalista (a crise oficializada em 2008 ainda não se apresentou por inteiro, mas ninguém perde por esperar).

Políticas públicas contra a renúncia fiscal

A bandeira de luta por políticas públicas para a cultura no Brasil é resultante de uma análise muito precisa do discurso neoliberal em confronto com as práticas inauguradas por Collor, intensificadas por Fernando Henrique e agora incorporadas por Lula. As teses liberais do "Estado mínimo", da eficiência administrativa etc. encobrem um movimento de dupla direção: o estado abandona seus compromissos com previdência, saúde, educação, cultura ­ que correspondem a direitos consagrados na Constituição de 1988 (a "cidadã") e atendem às necessidades e demandas dos trabalhadores e da população mais pobre ­- , redirecionando as verbas desses setores aos que servem mais diretamente aos interesses do capital, representados em ministérios como os da Fazenda, Planejamento, Agricultura etc. A própria política "intocável" de superávit fiscal nada mais é que a declaração de que os interesses do capital financeiro estão acima de todos os demais. Leis de renúncia fiscal fazem parte desse processo. Consistem em transferir ao próprio capital a prerrogativa de definir políticas para a arte e a cultura. (Não vem ao caso analisar a coreografia da mediação do Estado, que confere aos projetos uma espécie de selo de qualidade sem o qual os proponentes não podem sequer dar início à peregrinação em busca de patrocínio).

Dadas essas constatações, o Arte contra a Barbárie assumiu o desafio de lutar contra essa política no próprio terreno definido pelo discurso liberal como o único legítimo: o Poder Legislativo (com a clara disposição de correr todos os riscos implícitos). Descobrindo uma brecha, o movimento mostrou na prática que ela pode ser explorada. Sua vitória na Câmara Municipal de São Paulo, onde o Programa de Fomento ao Teatro foi aprovado por unanimidade em 2001, além de assegurar um ganho material, tem força simbólica nesse sentido. O ganho material é óbvio: desde que a lei entrou em vigor, cerca de 80 grupos já foram contemplados e é certo que muitos de seus integrantes já teriam desistido da luta pelo teatro que querem fazer se não tivessem recebido essas verbas. E desistiriam premidos pela simples necessidade de pagar as contas no fim de cada mês. É preciso insistir neste ponto: a luta é apenas pela sobrevivência de produtores de um tipo de arte que não se submete às determinações do mercado, por seu direito de existir como artistas que buscam expandir e ampliar seu repertório de temas e formas de expressão teatral.

Para dar concretude a essas afirmações, serão apresentados, em voo ligeiro, alguns dos trabalhos mais significativos de dois grupos exemplares do processo vivido nos últimos dez anos. O Folias d'Arte, por ter sido um dos maiores impulsionadores do Arte contra a Barbárie, e o Engenho Teatral, por seu empenho na proposição e implementação da Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo.

Folias: de Babilônia a Oresteia

Na última década, o Folias criou basicamente espetáculos que refletem sobre nossos problemas e misérias, destacando sempre a função da arte e do artista. Babilônia, por exemplo, estreou em 2001 e ficou em cartaz até maio de 2002. Dialogando com as cenas que ainda hoje podem ser vistas na região de Santa Cecília, mostra que o processo de exclusão, por mais sutil que pareça no caso dos artistas e trabalhadores intelectuais, também nos atinge e nos oferece como horizonte a vida de sem-teto. Todos fazemos parte de um processo que resulta em exclusão, e Babilônia o expõe pelo recorte da pergunta difícil de encarar: qual é o papel do artista e do intelectual na configuração presente de uma guerra civil permanente e não declarada? Como os interpelados não gostam de se dar por achados, texto e espetáculo mostram algumas formas de fugir da raia que, não por acaso, ilustram diferentes maneiras de praticar a lógica da guerra capitalista: nas relações pessoais, nos pequenos negócios e nos sonhos de inserção subordinada de intelectual artista. A opinião do espetáculo sobre o que os tipos de que trata (uma cafetina aposentada, um travesti, um professor, e assim por diante) podem fazer na hipótese da integração (passada ou futura: o espetáculo é circular) ao show business é muito clara: nenhuma satisfação é mais possível, nem mesmo a erótica, pois tudo está sob o controle da indústria cultural.

Babilônia evidencia que ninguém ali sabe onde está, nem para onde ir. O que se aprendeu não serve mais para nada, a não ser para chegar à mesma situação de sempre. O espetáculo não tem nada de afirmativo, é de uma radical negatividade. Da primeira à última cena, da primeira à última fala, afirma que nós só sabemos o que não queremos ser. Só estamos vendo a que ponto chegamos. Quem sabe, prestando atenção nas suas manchas escuras, nas coisas imprestáveis, acabemos por descobrir a moral da história.

Depois de vários outros experimentos, em 2007 o grupo encenou Oresteia, o Canto do Bode. Aqui combinou a reflexão sobre a história do Brasil e da América Latina com a análise crítica das condições de produção artística sob a dominação da indústria cultural. A saga dos atridas aparece entranhada na história de violência, golpes militares e golpes jurídicos que têm sido a marca da experiência latino-americana desde sempre. O golpe jurídico final, nosso contemporâneo, está assimilado ao exercício do poder pela indústria cultural em sua versão mais opressiva, que é a televisão. A pergunta continua a mesma: o que os artistas, principalmente os de teatro, têm a declarar numa situação como essa? Como a sugerir que a energia está se esvaindo, que o problema vem de muito mais longe do que temos consciência, e o teatro é parte dele, o espetáculo termina com o corifeu cantando, com um fio de voz, uma marchinha de carnaval que brinca com as máscaras da commedia dell'arte ­ Colombina, Pierrô e Arlequim ­, indicando também que o grupo quer discutir a relação que o teatro, tal como o conhecemos hoje, tem com toda essa história.

Engenho

O Engenho Teatral existe como grupo desde 1979 e adotou esse nome em 1993, quando inventou seu próprio espaço, um teatro móvel com duzentos lugares que desenvolve o conceito do circo no plano da infraestrutura. Tem salas de espera, banheiros, camarim, oficina, administração, cozinha e cabine técnica. Isto é, reúne condições adequadas à realidade brasileira e ao trabalho a ser feito, respeitando os profissionais e o público. Suas montagens dialogam com o público da periferia de São Paulo, onde costuma se instalar por períodos nunca inferiores a um ano.

As apresentações de Em Pedaços tiveram início em 2005. É um desenvolvimento radical e muito pensado do trabalho anterior em confronto com a experiência com jovens praticantes do hip-hop (entre outros moradores da periferia na zona sul de São Paulo). Um segundo ingrediente foram as cenas curtas ­ de "teatro de bolso" e "cenas de rua" ­ sobre diversos temas da barbárie numa cidade como São Paulo, em eventos como festas, reuniões e debates. Eram intervenções de cerca de dez minutos sobre esses temas, como a mercantilização do desejo, a distância entre os jovens e a produção literária, e assim por diante.

O trabalho anterior, Pequenas Histórias que à História não Contam, expunha um artista em crise às voltas com o mundo da violência, exploração, onipresença da mercadoria, publicidade, proliferação de linguagens, técnicas de comunicação e programas populares de televisão. Na condição de narrador, o artista/intelectual acaba fazendo um inventário acidamente crítico de todos esses dados por meio dos recursos que hoje estão à disposição de quem queira fazer teatro: atores, cenário, figurino, iluminação, sonoplastia, computador (inclusive Data Show e tela gigante), vídeo, técnicas como fragmentação, parábola, flash, flashback etc. O ponto de vista, que faz toda a diferença, é o das vítimas do processo, como a jovem pobre que quer ser modelo e não dispõe nem mesmo dos recursos para se inscrever na corrida ao sucesso, a mulher que acredita participar do poder da indústria cultural por frequentar programas de auditório, o rapaz que descobre nas drogas o único modo de viajar ou a velha que enlouquece depois de atropelada pelos tratores que derrubaram a sua casa para abrir uma rua.

No experimento de Em Pedaços o grupo abriu mão do aparato tecnológico, centrou a construção do ponto de vista no trabalho do ator e do conjunto (o ensemble) e abandonou os últimos vínculos com a narrativa dramática (enredo, personagem, ação dramática). Agora, o espetáculo faz perguntas e encena respostas. Os recursos básicos da linguagem e do jogo cênico são os da comédia popular (do boneco de ventríloquo à pancadaria) e os assuntos examinados vão das determinações da economia de mercado e do ritmo frenético da mercadoria às ilusões dos intelectuais sobre o valor da cultura (na figura da professora de escola pública que descobre quanto vale a "grande literatura" comparada aos sonhos de consumo dos estudantes), passando pelo desmentido cabal do fim da escravidão e da introdução do trabalho livre em país de periferia. O horizonte do espetáculo só pode ser o pesadelo provocado pela violência e a revolta do entorno.

Depois de desenvolver profundos estudos de história do Brasil, o Engenho estreou em 2008 o espetáculo Outro$ 500. Para começar a conversa com o público que forma a fila para entrar na sala, o elenco expõe ­ em fortíssima síntese crítica formalmente realizada por meio de agressiva cacofonia ­ o assédio da publicidade enganosa, que é interrompida por explosão cenográfica de bombas, codificada como a aproximação da barbárie. Elenco e público são convidados a entrar, onde estarão seguros. A ironia desse convite se traduz imediatamente pelo cenário de jaula dentro da jaula ­ eis o que o estado de coisas entende por segurança. Dentro da jaula, desenvolve-se a história do Brasil segundo a experiência dos trabalhadores (escravos, imigrantes etc.), com o interesse voltado para a figura do malandro, que, acreditando sempre na possibilidade de "se dar bem" pela via da adesão individual à regra do jogo, não percebe que não tem a menor chance e contribui para a manutenção da ordem. Simultaneamente, o espetáculo mostra seus produtores ­ um grupo teatral que pertence ao "povo" ­ em uma crise que aparentemente só poderá ser resolvida se todos se recusarem a compactuar com a violência que impõe uma ordem cujos beneficiários têm sido sempre os mesmos, há quinhentos anos.

Iná Camargo Costa é professora aposentada da USP