Política

O PED será em novembro, aqui está uma análise comparativa das propostas das oito chapas inscritas

O Processo de Eleições Diretas do PT renovará as direções zonais, municipais, estaduais e nacional do partido. Será realizado, em todo o país, no dia 22 de novembro de 2009 e o segundo turno, se necessário, ocorre em 6 de dezembro. Seis candidaturas nacionais foram registradas, aqui uma análise comparativa das propostas das oito chapas inscritas

Em uma célebre passagem de O 18 Brumário, Karl Marx coloca sob suspeição o discurso político descrito no livro como "máscara" e "ilusão". Diz ele: "Assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação efetiva e de seus reais interesses, o conceito que fazem de si do que são na realidade".

Para justificar a aplicação dos procedimentos da crítica da ideologia à representação política, Marx adverte que a história é feita pelos homens sob circunstâncias com que "se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado". Eis porque "justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens".

Marx contesta assim não apenas aos atores burgueses que imaginavam retomar 1789 em 1848, mas o próprio programa do proletariado, alvo principal de sua advertência quando sublinha que a ação de transformação social "não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro".

Os múltiplos discursos do PT sobre sua história e principalmente sobre os dois mandatos do governo Lula constituem um campo fértil para a detecção dessa evocação do passado, seja quando mira os expoentes da modernização burguesa como Getúlio e Juscelino, quando imagina renovar o nacional-desenvolvimentismo, seja quando descreve sua ativa intervenção para reduzir a barbárie do capitalismo brasileiro como socialismo.

Considero, no entanto, mais decisivo, na análise comparativa das teses apresentadas pelas diferentes tendências do partido para o Processo de Eleição Direta (PED), indicar os pontos em que emerge, ainda que de forma fugaz, a "poesia do futuro".

A determinação da tarefa prioritária do PT em 2010 separa as chapas nacionais em dois grandes grupos. Para "Terra, trabalho e soberania", "Virar à esquerda" e "Contraponto", o desafio consiste em estabelecer mudanças na política econômica e social tendo em vista a gravidade e o teor sistêmico da "crise econômica". As demais tendências, no entanto, evitando superestimar o caráter da crise e seus efeitos no Brasil, consideram que a primazia deve ser concedida às eleições gerais, que, além de escolher o sucessor do presidente e dos governadores estaduais, renovarão as duas casas do Congresso Nacional. Outro ponto comum entre as chapas desse segundo bloco é a prioridade da eleição presidencial, bem como a adesão explícita à candidatura da ministra Dilma Rousseff.

As discordâncias afloram, no entanto, quando se trata de definir a tática eleitoral e o programa a ser apresentado pelo PT. O principal divisor de águas continua sendo a questão das alianças políticas.

"O partido que muda o Brasil" sugere que se agreguem à campanha todas as forças que dão sustentação política ao governo Lula, adicionando ao tradicional bloco de esquerda os partidos de centro, em especial o PMDB. Acrescenta ainda que "a construção de palanques estaduais unitários é uma exigência desse objetivo, independentemente de o PT estar na cabeça da chapa". Esse último tópico é contestado explicitamente pelos proponentes da chapa "Partido para todos ­ Unidade na diversidade", que advogam a necessidade de o partido ter "candidatos próprios nos estados onde há chances reais de vitória".

"Movimento: partido para todos" também defende uma aliança que inclua todos os partidos da base de sustentação do governo Lula, mas sugere uma mudança na ênfase: esse arco amplo deve ser composto a partir de um reforço do núcleo de esquerda. A reedição da Frente Popular teria como objetivo impulsionar "um avanço político, e não um retrocesso em direção ao centro". "Mensagem ao partido" propõe uma combinação semelhante que procura conjugar "alianças que garantam a vitória e, ao mesmo tempo, o avanço da revolução democrática", nomeando como base ideológica e política dessa proposta o bloco de esquerda composto por PT, PSB, PDT e PCdoB. Salienta ainda a importância dos governos estaduais, destacando que na montagem das alianças "devem ser levados em conta os objetivos de fortalecimento das bancadas de esquerda, de reeleição dos cinco governos petistas e da ampliação desse número, além de reeleger e eleger governos de partidos aliados".

"Esquerda Socialista" advoga em favor de uma política de alianças mais restrita. Sugere que a campanha eleitoral não seja subordinada à composição prévia de uma base de sustentação parlamentar, o que pode ser lido como a concessão de maior autonomia ao PT na "definição de candidaturas, alianças e programas". Trata-se de um passo necessário para forjar "alianças estratégicas dentro do campo democrático popular, com os partidos de esquerda e movimentos sociais", bem como para recusar "alianças táticas com frações da burguesia, sem que haja base programática e hegemonia democrático-popular".

A candidatura de Dilma Rousseff é apresentada unanimemente como uma forma de "continuidade com mudança". As discordâncias, novamente, situam-se na determinação do grau de mudança que um terceiro mandato petista poderia incrementar.

O êxito das medidas implementadas para enfrentar a crise arrefeceu, no interior do partido, as críticas à política econômica. Mesmo assim, trata-se de um dos principais pomos de discórdia.

A chapa "O partido que muda o Brasil", que adota como linha geral "a consolidação e o aprofundamento das conquistas dos dois primeiros mandatos", destaca que as "orientações macroeconômicas do novo governo, sobretudo a política monetária e cambial", deverão estar subordinadas a uma "nova concepção de desenvolvimento" ditada a partir do restabelecimento do "planejamento econômico".

"Movimento: partido para todos" ressalta que a medida dos avanços do país não é o mero desenvolvimento econômico, mas os indicadores sociais em educação, saúde, segurança pública e cidadania, cultura, meio ambiente etc. Redimensiona assim o PAC como um mecanismo de "política social". "Mensagem ao partido" propõe mudanças no âmbito da ordem financeira, sugerindo a redução da autonomia do Banco Central, com a democratização do Conselho Monetário Nacional, e o "controle da movimentação do grande capital financeiro internacional e nacional, assim como o controle cambial". Tais medidas teriam como efeito aumentar o crédito para micro e pequenas empresas, consolidando e ampliando a política de geração de empregos e a distribuição de renda.

"Esquerda socialista" discrimina nitidamente o que deve ser mantido e o que deve ser alterado, propondo a "continuidade das políticas sociais bem-sucedidas do governo Lula e mudança na política econômica". Além de modificações no Banco Central e em suas taxas de juros, propugna o abandono da política de superávit primário, a adoção de uma "política tributária progressiva e do imposto sobre grandes fortunas, a taxação do capital especulativo e o controle da movimentação de capitais".

As discrepâncias são menores quando se trata das políticas sociais, um dos inegáveis êxitos da administração Lula. Mas mesmo aí a continuidade supõe ênfases diferentes, como se pode comprovar comparando o programa das tendências "O partido que muda o Brasil" e "Mensagem ao partido".

A primeira diz: "O novo governo dará continuidade e maior amplitude às políticas sociais até aqui desenvolvidas, continuará reduzindo a pobreza e a exclusão social. Isso permitirá ampliar o mercado interno de bens de consumo, fator fundamental para uma expansão econômica de novo tipo. Essas políticas terão como objetivo central diminuir a enorme desigualdade que ainda marca a sociedade brasileira".

A segunda afirma: "Vencido o obstáculo financeiro, o investimento público poderá ser ampliado, para o PAC avançar mais na eliminação dos bolsões de pobreza, com mais absorção de mão de obra, para continuar a erguer um sistema público de educação com qualidade, voltado especialmente aos jovens da periferia, para prover as necessidades de um bom sistema público de saúde, revertendo a perda dos recursos da CPMF".

As posições também se aproximam mais quando entra em pauta a política externa. "Movimento: partido para todos" sugere que o PT incorpore também em sua agenda o empenho, até então circunscrito apenas ao governo, para que se torne "um agente ativo da construção de uma nova ordem mundial". "Esquerda socialista" ressalta como efeito benéfico da crise econômica mundial o enfraquecimento da hegemonia dos Estados Unidos, "o que abre o caminho para o surgimento de um mundo multipolar".

Para além da pauta específica da política governamental em suas diferentes áreas, um arco que quase coincide com a repartição do poder em ministérios, os documentos propõem transformações mais gerais e estratégicas em relação ao Estado e à sociedade.

"O partido que muda o Brasil" destaca o fortalecimento do Estado brasileiro com a interrupção do processo de privatização e de desmonte da máquina pública. Sugere a ampliação de seu papel no planejamento econômico. Propõe, ao mesmo tempo, intensificar experiências que permitam democratizá-lo, como conferências nacionais, conselhos nos ministérios, ouvidorias na administração direta e nas empresas estatais, mesas de negociação. "Mensagem ao partido" defende, de forma genérica, "propostas que possam representar maior participação popular e maior controle social sobre o Estado"; "Esquerda socialista" reivindica a "retomada das empresas que foram privatizadas", a "intervenção do Estado nos setores de alta tecnologia", alvos prioritários de uma disputa pela hegemonia na sociedade e no interior do aparelho de Estado.

Não deixa de causar espanto que, após sete anos no poder e com a perspectiva de um novo mandato petista, as chapas apresentem reflexões e programas tão incipientes para a reformulação do Estado brasileiro.

No que tange à sociedade, no entanto, o balanço é mais positivo. Há unanimidade nas propostas de continuar e intensificar o processo, iniciado no governo Lula, de redução da desigualdade social, da pobreza e da exclusão social; de ampliação dos mecanismos de transferência de renda, da cobertura previdenciária e da geração de empregos.

Notam-se, no entanto, divergências quando se trata de desenhar o perfil do Brasil rural. "O partido que muda o Brasil" defende uma política agrícola que busque "compatibilizar a agricultura familiar com o agronegócio". "Movimento: partido para todos" promete o "aprofundamento da reforma agrária", uma desconcentração da terra que fortaleça "a produção dirigida ao mercado interno". "Mensagem ao partido" propõe um modelo que privilegie a agricultura familiar, submeta o agronegócio a uma regulação que controle seu caráter "predatório" do meio ambiente e evite sua dependência crônica de recursos públicos, além de enfrentar o latifúndio "alterando, entre outras medidas, a legislação da propriedade e o índice de produtividade".

Além dessas demandas históricas da sociedade brasileira, as chapas incorporam, ainda que com peso desigual, novas metas: a reforma política, a democratização da mídia e a reforma urbana.

As tendências convergem quando se trata de justificar a necessidade de uma reforma política que diminua o peso do poder econômico nas eleições e fortaleça os partidos. Divergem, no entanto, como seria de esperar, na determinação de seu teor e até mesmo de seu âmbito institucional: "Um partido para todos" considera que deva ser "uma obra essencialmente do Legislativo"; "Mensagem ao partido" julga necessária "a convocação de uma Constituinte exclusiva".

O tema da democratização dos meios de comunicação aparece no programa de algumas chapas. "Movimento: partido para todos" defende, de forma incisiva, "a desconcentração do poder midiático, hoje fortemente sustentado por subsídios estatais". "Mensagem ao partido" propõe o fortalecimento "dos espaços de comunicação pública" e do "uso de novas tecnologias".

A reforma urbana, por sua vez, tem apenas uma menção. Surge, de passagem, na tese da "Esquerda socialista" como um dos exemplos das "reformas estruturais que alterem a matriz social e econômica da nossa sociedade".

Por fim, como não poderia deixar de ser, as chapas apresentam uma série de sugestões para revitalizar o PT.

Algumas são medidas profiláticas, como a sugestão de "qualificação dos filiados e militantes, por meio de uma política de comunicação que assegure informação, de formação política e de intensificação e dinamização do debate nas instâncias partidárias, visando fortalecê-las para a ação política e eleitoral" ("O partido que muda o Brasil"). Mas propõe-se também a retomada do vínculo histórico do partido com os movimentos sociais, num trânsito de mão dupla em que o PT se oxigenaria com as demandas da sociedade e, ao mesmo tempo, contribuiria para reestruturar esses movimentos ("Mensagem ao partido").

Um giro mais substancial encontra-se no projeto de deter o processo que tende a torná-lo um mero "partido de governo" e reafirmar sua condição de "partido dirigente e de classe" ("Movimento: partido para todos").

Adverte-se para o risco de o PT "se tornar um partido convencional, avesso às reformas estruturais e ao socialismo", sugerindo como forma de manutenção de seus compromissos históricos alterações vigorosas em seu funcionamento interno ("Esquerda socialista"). A tese de que mudanças na dinâmica interna podem transformar a configuração e, por conseguinte, a direção política do PT é também a aposta preferencial das outras tendências ("Partido para todos: Unidade na diversidade"; "Contraponto"; "Virar à esquerda!"; "Terra, trabalho e soberania").

Não deixa de ser alvissareiro observar que o PT, ao mesmo tempo em que, com o governo Lula, germina um incisivo processo de transformação do país, continua aberto e atento às demandas ­ antigas e novas, e muitas vezes contraditórias ­ dos setores populares da sociedade.

Numa época em que o pensamento e a ação política, à direita e à esquerda, se tornaram reféns da lógica econômica, convém relembrar que o sentido das lutas sociais não se reduz à produção e redistribuição de riquezas. A vitalidade da bandeira do socialismo deriva, em grande medida, de seu projeto civilizatório.

Como advertiu Marx no capítulo de O Capital em que relata a luta pela redução da jornada de trabalho, para o sistema econômico e para a "mentalidade" capitalista "tempo para a educação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o preenchimento de funções sociais, para o convívio social, para o jogo livre das forças vitais físicas e espirituais ­ é pura futilidade!"

Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP