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A frase do título é do ex-militante tupamaro e atual candidato à Presidência do Uruguai pela Frente Ampla, José "Pepe" Mujica

A frase do título é do ex-militante tupamaro e atual candidato à Presidência do Uruguai pela Frente Ampla, José "Pepe" Mujica. Figura folclórica, até hoje cruza as ruas de Montevidéu em uma lambreta, reúne histórias incríveis e avalia com destreza e ironia os desafios de um próximo governo de esquerda no país

Pepe Mujica. Foto: Eduardo Seidl

Senador mais votado do país em 2004, José Pepe Mujica passou mais de doze anos preso durante a ditadura militar. Um par desses anos, o possível futuro presidente uruguaio esteve praticamente enterrado vivo, no fundo de um poço. Ele e os companheiros submetidos à mesma tragédia ficaram conhecidos como "os reféns". Líder do Movimento de Participação Popular (MPP), Mujica recebeu o apoio de 1.694 dos 2.381 delegados, mais de dois terços dos que estavam habilitados a votar na eleição interna da Frente Ampla. Venceu o ex-ministro da Economia do governo de Tabaré Vázquez, Danilo Astori, atual candidato a vice-presidente. Nesta conversa que Teoria e Debate travou com ambos em Buenos Aires, devido à campanha no país vizinho pelo grande número de uruguaios residentes na Argentina, eles reiteraram a necessidade de massificar as escolas de tempo integral, pois acreditam que "salvar a los guríses", antes de mais nada, é a solução para resolver o problema de insegurança, principal preocupação dos uruguaios atualmente.

A Frente Ampla aparece com 42% das intenções de voto, contra 32% para o Partido Nacional, do ex-presidente centro-direitista Luis Lacalle, e 12% para o direitista Partido Colorado, segundo pesquisa da Interconsult divulgada no final de setembro. Na pesquisa realizada em agosto pelo mesmo instituto, a Frente Ampla somava 45% das intenções de voto. A queda é pequena, mas preocupa, porque reflete a mais recente controvérsia em torno de Mujica. No livro de entrevistas Pepe, Colóquios, lançado na Feira do Livro de Montevidéu, Mujica ataca a classe política da Argentina e põe em dúvida alguns companheiros da Frente Ampla.

"Los kirchner son de izquierda, pero una izquierda que, mamma mía, és una patota"; "Carlos Menem es mafioso y ladrón" e "los radicales son tipos muy buenos pero unos nabos", são algumas das pérolas de Mujica contra os argentinos. Segundo o jornalista Alfredo García, autor do livro publicado pela editora Fin de Siglo, tudo não passa de um mal-entendido, porque todas as linhas foram tiradas do contexto inicial das entrevistas.

Caso nenhum partido tenha mais da metade dos votos em 25 de outubro, ocorre um segundo turno em 29 de novembro, na mesma data das esperadas eleições hondurenhas. No dia em que os uruguaios escolhem o novo presidente, votam também em um referendo em que a população decidirá se quer instalar uma Comissão da Verdade para julgar crimes do período da ditadura, o que depende de a Justiça derrubar a Lei da Caducidade, que protege os agentes da repressão.

Pepe, caso vocês sejam eleitos, como será a atuação do governo uruguaio na Unasul, principalmente depois da reunião de agosto em Bariloche, quando o debate sobre as bases militares estadunidenses na Colômbia se intensificou?

Mujica - Na verdade, ainda não discutimos o problema com a equipe de governo, mas eu posso dizer algo muito simples. A única coisa para a qual serve uma base militar é para nos complicar a vida, e com os meios materiais que uma grande potência tem é algo que eles podem fazer praticamente sempre. É lógico que eles não deveriam nos complicar a vida, pois não precisaríamos de umas quantas conferências internacionais e uns tantos documentos e reuniões de imprensa e tudo o mais. Entendo, no entanto, que tampouco podemos entrar em conflito flagrante com os Estados Unidos, porque não deves desafiar quem não podes vencer. É preciso ter a inteligência de, por meios diplomáticos, acalmar as vontades e fazer de tudo para que eles paguem o maior custo político por essas bases. Apenas gostaria de grifar que essa não é uma resposta de governo, é o que pensa o Pepe.

As eleições do dia 25 de outubro não decidem apenas a disputa eleitoral, mas apresentam dois referendos à população. Um deles é sobre a anulação da Ley de Caudicidad, que impõe obstáculos ao julgamento de casos de violação dos direitos humanos durante a ditadura militar uruguaia, e o outro sobre o direito ao voto dos uruguaios que vivem fora do país. Vocês acreditam que as perguntas do referendo têm influência sobre as eleições?  

Astori -­ Não acreditamos que isso vá prejudicar a proposta partidária eleitoral da Frente Ampla. É certo que a imensa maioria dos frente-amplistas está de acordo e apoiará os dois referendos, o que já foi comprovado em resultados de consultas de opinião pública. O interessante é que a legislação eleitoral uruguaia brinda o cidadão com a possibilidade de separar as duas escolhas e pronunciar-se autonomamente por sua decisão quanto ao candidato à Presidência. E mais: de acordo com a regulamentação, apenas se vota por sim nos referendos, não existe opção por não. Obviamente, quando o eleitor não introduz o papel por sim, incrementa o número de pronunciamentos contra. As pesquisas de opinião pública indicam um apoio crescente às consultas. E, por supuesto, nós dois apoiamos os dois plebiscitos a lo largo y a lo ancho do país durante toda a campanha eleitoral.

Tabaré Vázquez, com o Plano Ceival, garantiu milhares de computadores para crianças e professores em todo o país. Existem planos de expansão para o projeto que incentivou a educação e serve de exemplo para a América Latina?  
Astori -­ O Ceival significa um computador para cada criança e professor. Faz parte de um projeto maior, que é o plano de inclusão e acesso da sociedade à informação e ao conhecimento. E a resposta é afirmativa, o nosso plano de governo pretende expandir a iniciativa. Hoje, são 380 mil computadores. Estão cobertos todos os alunos do primário e seus professores, e esse número alcança o núcleos familiar dessas crianças também. Projetamos, para o próximo período, alcançar as crianças do secundário.

Existem questões delicadas no plano de governo, se pensarmos na grande coalizão que a Frente Ampla representa nestas eleições?  
Mujica -­ Não planteamos o drama de consenso, porque minha preocupação de um sul desenvolvido é muito mais primitiva que isso. Se pudermos liquidar a indigência e cortar a pobreza pela metade, é por isso que vamos lutar no governo, eu não sei se estaremos pensando em direita ou esquerda. Depois, os outros é que vão julgar se fomos muito conciliadores. Mas há um tema com o qual nos comprometemos. O Uruguai é um país muito pequeno para ser comparado com a Argentina ou o Brasil, como os jornalistas gostam muito de fazer. Estamos entre dois colossos para a nossa dimensão, num mundo onde todos precisam de impostos e geração de emprego para prosperar. Na dimensão de mercado, nosso país não atrai ninguém e quem vem até a América Latina se instala no Brasil ou na Argentina. Para pretender que alguns capitais se instalem no Uruguai, necessitamos de claridade e certeza de certas regras que digam aos outros que somos um país muito sério. Não podemos nos dar ao luxo de mudar regras, nem devemos. Quando selamos um compromisso, temos de dejar el cuero en la estaca, que é a forma de apresentarmo-nos ao mundo como um país interessante.

Acredito que essas colocações sejam referências à polêmica das papeleiras (fábricas de celulose) na fronteira com a Argentina. Minha pergunta é, na verdade, se é possível um governo socialista com a Frente Ampla.
Mujica -­ E o que é o socialismo? O que era e o que será amanhã? Nosso programa corresponde a uma aliança de partidos que apresenta historicamente um conjunto de reformas para desenvolver uma sociedade e tentar integrá-la o máximo possível. Alguns dentro dessa coalizão podem ter visões mais socializantes, outros menos, mas estamos comprometidos a estabelecer um conjunto de reformas que ajude a diminuir tamanha distância na nossa sociedade. Pensar não é fazer, pensar é pensar, mas eu também não vou esconder meu pensamento para conseguir quatro votos. Digo que meus sonhos me levam hoje a crer que, para construir algum dia uma sociedade melhor, necessitamos de um país rico materialmente e tremendamente incluído e culto. Não que, por ter essas duas coisas, se irá criar uma sociedade socialista, mas, sem essa questão prévia de massificação de conhecimento e cultura e de riqueza compartida, não há condição. Não leva a nada se igualar por baixo, temos de nos igualar por cima. Mas esse é o meu sonho, e eu tenho 74 anos. Conquistar esse sonho é para uma geração mais jovem que a minha.

Vocês falavam sobre o fato de o Uruguai conviver com dois países maiores, a Argentina e o Brasil. Nesse sentido, existem assimetrias intransponíveis para o Uruguai no Mercosul, ou um próximo governo deve intensificar a presença do país no grupo?  
Astori -­ O Mercosul significa para nós, uruguaios, e não apenas para os frente-amplistas, um projeto estratégico fundamental. O Uruguai é um país pequeno em tamanho físico, mas com uma potencialidade muito grande que deve abrir-se ao mundo, não há outra possibilidade. O Mercosul e essa abertura marcam dois fundamentos absolutamente essenciais da convicção estratégica que temos. Obviamente, a abertura uruguaia começa na região, não caberia outra possibilidade racionalmente fundamentada. Nossa adesão e convicção em relação ao Mercosul estão fora de qualquer discussão. Mas também acreditamos, e não há soberba nisso, que o Mercosul sem o Uruguai se converte em outra coisa, e não em uma aliança integracionista na região. E isso tampouco é incompatível com nossa visão de abertura igualmente importante em escala mundial, porque temos de multiplicar nossas possibilidades de inserção. O Pepe sempre diz que o mais inteligente é vender pouco a muitos, do que muito a poucos. Do ponto de vista comercial, vamos continuar com a tarefa que iniciou Tabaré Vásquez. O Mercosul tem problemas de assimetrias, e existem dois tipos de assimetria: as estruturais e as políticas. E são elas que temos de encarar com paciência e convicção no trabalho conjunto.

Para encerrar, falando em questões estratégicas e políticas, como chegar a um acordo em relação às papeleiras na fronteira do Uruguai com a Argentina?
Mujica -­
Posso responder a essa pergunta em termos de hipóteses, e acredito que nunca se possa fazer nada contra a vontade da gente. Agora, o mais importante é encontrar uma solução. E, quando não se quer nenhuma solução, o tempo dá as respostas. Nós reivindicamos sempre transformar os problemas em possibilidades, porque sei que, além dos cartazes e das manifestações, o povo necessita de trabalho e soluções econômicas. E não digo isso em tom ofensivo. Gosto de dizer que sou admirador do presidente Lula. Em que sentido? Lula é um senhor presidente, com um grande número do Parlamento que vota contra e, mesmo assim, logra manejar um país com as dimensões do Brasil, com os problemas que tem. E por que ele consegue isso? Porque negocia, negocia e negocia, tem a paciência de um velho dirigente sindical. E esse é o espírito que devemos ter nesse tema. Aliás, aqui entre nós, deveríamos clonar o Lula pela América Latina.

Clarissa Pont é jornalista e repórter da Agência Carta Maior, dedica-se a temas como política e economia latino-americanas