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As esquerdas e o PT devem formular projeto de rompimento com o autoritarismo oligárquico

Para o século 21, as esquerdas e o PT precisam formular um projeto de desenvolvimento voltado para o fortalecimento de um Estado brasileiro com eficácia nas políticas sociais e que rompa com o autoritarismo patriarcal e oligárquico, presente na formação de sua sociedade e também nos ciclos de crescimento econômico de vários períodos

Mecanismos de mobilização social e processos de democracia participativa são fundamentais para fazer o Estado avançar. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Ao longo do século 20, o Brasil foi um dos países que apresentaram as mais altas taxas de crescimento do mundo. Recém-saído de uma formação social assentada sobre a exploração do trabalho escravo ­ a abolição desse crime histórico que durou quatrocentos anos só veio em 1888 ­, o Estado brasileiro traz consigo a marca do autoritarismo patriarcal e oligárquico. Com um traço fortemente hierárquico e antirrepublicano. Essa moldura enquadrou a ação do poder público. Determinou sua cultura. Tratou as primeiras gerações da classe operária, no país que se urbanizava, como "descendentes sociais dos escravos", na base da compreensão de que "a questão social é caso de polícia".

Dois traços estão presentes nos ciclos de crescimento do país nesse período: forte investimento público e centralização das decisões na União. O Brasil cresceu sob o impulso do Estado e sob ditaduras: o ciclo Vargas e sua extensão com o Plano de Metas de JK; e o ciclo da ditadura militar 1964-1985, particularmente com o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Se considerarmos os dois períodos ­ de 1930 a 1960 e de 1964 a 1985 ­, em um século tivemos 55 anos vivendo e crescendo sob regimes autoritários separados por breves intervalos de experiência de democracia representativa.

Essa tradição não nos ajuda na formulação do projeto de desenvolvimento que a sociedade reclama para o século 21. Tampouco contribui o processo de demolição do Estado conduzido pelos governos que sucederam à ditadura militar, identificados com a perspectiva privatista que desejava pôr fim à "era Vargas", ministrar um "choque de gestão" para alcançar a "eficiência" necessária a um país que almejava integrar-se ao mundo contemporâneo. O que colhemos foi um período de duas décadas de estagnação econômica e um agravamento das desigualdades sociais. Três idas ao FMI. Perda da soberania na condução das políticas econômicas do país. Este momento exige das esquerdas ­ e em particular do PT ­ um esforço de elaboração que escape das molduras anteriores: seja do planejamento centralizado e autoritário, seja da anarquia que resultou na aposta nos poderes mitológicos do mercado como única mola propulsora do desenvolvimento.

O colapso do pressuposto neoliberal 

Ao longo de três décadas de vigência, a perspectiva neoliberal de primado do mercado sobre qualquer possibilidade de regulação pública dos processos de desenvolvimento produziu instabilidade econômico-financeira em diferentes partes do mundo. Quebrou economias nacionais em países asiáticos, quebrou a Turquia, a Rússia, o México, o Brasil (por três vezes ao longo dos anos 90) e, em setembro de 2008, pasmem, Wall Street, centro nevrálgico do capitalismo mundial. A partir dali, disseminou-se como uma pandemia por todas as economias do planeta.

A crise econômico-financeira mundial ganhou os contornos de uma crise global do capitalismo. Alcança, ainda que de maneira desigual, as nações de todos os continentes, cadeias produtivas inteiras, fluxos comerciais de importação-exportação, bolsas de valores, revelando com clareza que o mercado não é capaz de conduzir um processo de desenvolvimento econômico, social, cultural e ambientalmente sustentável. Ela se sobrepõe e se conjuga às prevalecentes crises de alimentos, de energia e ambiental e, em lugar de amenizá-las, agrava-as, uma vez que não se questionam os padrões de produção e de consumo que estão na sua raiz.

Os países que retardaram a aplicação das fórmulas do fundamentalismo neoliberal ou escaparam delas e encontraram alternativas de desenvolvimento preservando mecanismos de intervenção do setor público ­ alguns mais, outros menos, de acordo com sua história e sua cultura ­ têm sido capazes de neutralizar os efeitos perversos dessas crises conjugadas e encontrar caminhos mais eficazes para sua superação. O Brasil se insere nesse contexto e não é por outra razão que se projetou na cena internacional como um player relevante.

Ao trazer para a agenda do país uma pauta de políticas anticíclicas para enfrentar a crise, o Brasil demonstra que deseja deixar para trás o limitado horizonte dos especuladores financeiros e das bolsas de valores guiadas pelos humores da maré de lucros ou perdas que podem durar quinze minutos, para recuperar sua capacidade de se pensar como nação.

Qual o Estado para o século 21?  

Ao planejamento centralizado e autoritário que marcou o período dos generais e se expressou de maneira mais elaborada no II PND, ao final da ditadura militar, sucedeu o discurso da ineficiência do Estado. Um discurso nutrido pelas fontes do Consenso de Washington, que forneceu a base teórica e política para o novo ciclo de acumulação, para produzir o desmonte do setor público e fundamentar a renúncia, por parte do Estado, ao papel de indutor do desenvolvimento que desempenhara nos ciclos anteriores.

A crise da globalização determinou, discretamente por alguns e estrepitosamente por outros, o abandono de um discurso que vigorou como verdade absoluta e irrecusável durante o banquete iniciado com Reagan & Thatcher.

A imaginação das esquerdas brasileiras está desafiada a responder à questão formulada por Márcio Pochmann no artigo "Qual o Estado para o século 21?" (Folha de S.Paulo, 20/5/2009). Para o autor, uma nova feição de Estado deve incorporar três premissas: reinvenção do mercado, capaz de fazer valer a isonomia nas condições de competição, ou seja, acesso universal a crédito, tecnologia e assistência técnica, entre outras; mudança da relação do Estado com a sociedade, a fim de buscar eficácia global nas políticas sociais, através da superação da lógica das caixinhas contidas no compartilhamento do Estado brasileiro; e mudança da relação do Estado para com o fundo público, sobretudo através da tributação progressiva e do deslocamento da base tradicional de incidência (produção e consumo) para o patrimônio e novas formas de riqueza.

Dois fatores são cruciais para a viabilização das premissas propostas por Pochmann:

  •  incorporar vastos setores populares à disputa dos recursos públicos e induzir, a partir da ação do Estado, mecanismos de mobilização social e processos de democracia participativa. É importante registrar que as políticas econômicas e sociais do governo Lula têm caminhado nessa direção;
  • disseminar, através da ação do Estado, a noção de que o cidadão é portador de direitos, e não apenas destinatário de favores, de acordo com a tradição oligárquica e clientelista, ou consumidor de serviços públicos, como supôs a ideologia neoliberal.

Essas formulações contribuem para a compreensão e o equacionamento de dilemas para o projeto de Brasil do próximo período: como institucionalizar a conquista representada pela integração de alguns milhões de brasileiros à disputa dos fundos públicos e como proceder à integração das políticas de desenvolvimento com vistas ao novo ciclo em um Estado oligarquizado, compartimentado em "caixinhas", cada uma delas com sua cadeia de interesses e lealdades estabelecida e ferozmente defendida.

O atual desenho do Estado brasileiro, de perfil conservador, configura um poderoso obstáculo à integração das políticas públicas. A heterogeneidade das forças parlamentares que sustentam qualquer composição de governo nos moldes do atual presidencialismo brasileiro reforça esse obstáculo. Produz a pulverização das iniciativas do Estado, torna-as refratárias a uma lógica matricial e resistentes à perspectiva de médio e longo prazo. O resultado é um baixo retorno dos investimentos públicos, permanentemente atados ao varejo das respostas locais e de curto prazo, e a incapacidade de dialogar com os 30 milhões de brasileiros que ascenderam à condição de atores da disputa dos fundos públicos.

Talvez estejamos dando os primeiros passos no sentido de superar o padrão de crescimento autoritário, concentrador de renda e predatório dos recursos naturais, ou a renúncia ao papel do Estado que resultou na anarquia da década das privatizações, para alcançar um novo padrão de desenvolvimento ancorado na consolidação e ampliação das conquistas democráticas; no aprofundamento das políticas sociais e de integração produtiva para reduzir as desigualdades sociais e regionais; na defesa de legislação ambiental como fator indispensável para a garantia da sustentabilidade socioambiental do novo ciclo de desenvolvimento do século 21.

Nova agenda para novo ciclo  

O governo Lula, por meio do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), foi capaz de apresentar ao debate nacional a Agenda Nacional de Desenvolvimento (AND), calcada numa visão de futuro ("Um país democrático e coeso, no qual a iniquidade foi superada, todas as brasileiras e todos os brasileiros têm plena capacidade de exercer sua cidadania, a paz social e a segurança pública foram alcançadas, o desenvolvimento sustentado e sustentável encontrou o seu curso, a diversidade, em particular a cultural, é valorizada. Uma nação respeitada que se insere soberanamente no cenário internacional, comprometida com a paz mundial e a união entre os povos") e em valores transcendentais ("Democracia; Liberdade; Equidade; Identidade Nacional; Sustentabilidade Socioambiental; Respeito à Diversidade Sociocultural; Soberania"). São seis os objetivos dessa agenda, a saber: fazer a sociedade brasileira mais igualitária, sem disparidades de gênero e raça, com a renda e a riqueza bem distribuídas e vigorosa mobilidade social ascendente; tornar agenda propõe diretrizes, a maioria coincidente com formulações do PT, como reforma política, tributária e agrária, equidade social, planejamento participativo e sustentabilidade socioambiental a economia brasileira apta a incorporar todo o mercado interno potencial, com forte dinamismo e capacidade inovadora, desenvolvendo novos produtos e mercados e com participação relevante na economia internacional; garantir uma infraestrutura logística eficiente e competitiva, integradora do território, da economia e da sociedade nacional; construir um sistema de financiamento do investimento eficaz, uma estrutura tributária simplificada e racional, com tributos de qualidade, progressiva e estimuladora da produção e do emprego; instaurar a segurança pública e a paz social, um sistema judicial transparente, ágil e democrático, em um Estado que regule e fiscalize a contento; e desenvolver um aparato estatal que opere eficiente e eficazmente um pacto federativo competente para lidar com a capacidade de manejar recursos naturais de forma sustentável. Para alcançar esses seis objetivos são propostas 27 diretrizes estratégicas, a maioria coincidente com as formulações que o PT vem sistematicamente defendendo, sobretudo as que preconizam a reforma política, a reforma tributária, a reforma agrária, a equidade social, o planejamento participativo e a sustentabilidade socioambiental.

Logo depois de tornar pública sua proposta de Agenda Nacional de Desenvolvimento, o CDES produziu os "Enunciados Estratégicos para o Desenvolvimento", na verdade um esforço de detalhamento e ampliação de suas diretrizes estratégicas, com a vantagem de ter feito um exercício de definição de metas temporais, num horizonte de planejamento fixado em 2022, ano em que se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil.

Com o acoplamento das metas e a definição de um horizonte de planejamento de longo prazo, a Agenda Nacional de Desenvolvimento proposta pelo CDES constitui um marco nas discussões sobre desenvolvimento estratégico em nosso país porque,  indubitavelmente, trata-se de proposta de um projeto de Nação que deve, a nosso ver, ser valorizada e debatida no interior do PT e na sociedade em geral.

A crise enseja oportunidades. É necessário superar, com urgência, essa dolorosa fase da vida brasileira em que a luta política mesquinha tomou o lugar do debate estratégico.

A disputa pelos rumos de curto, médio e longo prazo do novo ciclo de desenvolvimento do Brasil exigirá do PT o esforço maduro de um partido socialista contemporâneo para estabelecer interlocução com amplos setores sociais, a fim de consolidar o projeto democrático e popular em curso e, por meio dele, um projeto de Nação que aponte pra a realização da "sociedade sem explorados e sem exploradores" que prefigurávamos no Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores.

No dia 10 de fevereiro de 2010, o PT fará 30 anos. Se deitarmos o olhar para essas três décadas, vamos nos comover com algumas passagens, criticar duramente outras, mas sobretudo seremos levados a concluir que ao longo desses anos não é possível separar o PT de todos os avanços democráticos, sociais, políticos e culturais que a sociedade brasileira alcançou.

Descortinar os próximos 30 anos e galvanizar a sociedade brasileira em torno de um projeto de Nação é tarefa da qual o PT não pode abdicar.

Hamilton Pereira é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

José Machado é presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)