Maracatu, caboclinho, bumba meu boi, carimbó: cultura popular no centro das atenções de Mário de Andrade e nos dias de hoje. Foto: Antonio Cruz/ABr
Revigorando a lição de Mário de Andrade sobre cultura popular, muito sangue novo tem-se revelado. Ao dar continuidade ao que ele tanto pregou conferir tratamento contemporâneo às matrizes tradicionais , artistas e estudiosos de campos variados encontram soluções às vezes surpreendentes, em demanda de uma fusão ou síntese que prime pela originalidade. Se no passado observam-se resultados em tantas obras, a exemplo da de Villa-Lobos, não há motivo para que da imaginativa de outros não saia boa coisa na atualidade.
O mais recente espetáculo de Antonio Nóbrega, intitulado Naturalmente Teoria e Jogo da Dança Brasileira (2009), instaura explicitamente tal diálogo. O pernambucano radicado em São Paulo propõe a forjadura de um léxico misto de passos tradicionais do frevo, do maracatu, dos cabocolinhos, da capoeira, visando à criação de coreografias atuais que expressem o corpo e a alma do país, conforme as veredas desbravadas nos três volumes de Mário sobre as Danças Dramáticas do Brasil.
Afora tudo o que fez como escritor e líder do movimento modernista, o autor de Macunaíma detém o pioneirismo de mais uma iniciativa, que está na raiz das de hoje. Ao criar o primeiro órgão público do Brasil para a área, o Departamento Municipal de Cultura, despachou a Missão de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste e Norte, desdenhando tratar-se de um órgão da cidade de São Paulo.
Ele mesmo faria a viagem inaugural antes, em 1928, tal como a descreveu em O Turista Aprendiz; e, quando chefe do Departamento (1935-1938), delegaria a missão a um grupo de pesquisadores. Era a primeira vez no país que se fazia esse tipo de investigação com metodologia científica moderna, tomada à etnografia. Mário, que ajudaria a patrocinar expedições do casal Lévi-Strauss às aldeias indígenas, chamou a etnóloga Dina Lévi-Strauss para dar cursos no Departamento1.
A Missão procederia, com o rigor exigido por seu paradigma, ao registro sonoro, visual e escrito de um tesouro incalculável, que incluiu toré, xangô, cabocolinho, maracatu, bumba meu boi, acalantos, cantos de carregadores de piano, ciranda, repentes e desafios, cantos de pedintes, aboios, cantigas de roda, reisado, congo, nau catarineta, marujada, praiá, tambor de mina, tambor de crioula, carimbó, babaçuê, pajelança. Cobriu igualmente formas de poesia popular como mourão, martelo, galope, rojão, pé-quebrado e histórias de Trancoso. Antes da era digital, carregava toneladas de equipamentos e punha-se à mercê dos caprichos da eletricidade. Foi o momento seminal desses estudos.
Logo Mário seria alijado do Departamento por motivos políticos. E assim essa faceta de sua liderança permaneceria ignorada, devido a circunstâncias sobre as quais não tinha controle, incluindo a morte precoce. O material ficaria sepultado por quase três quartos de século.