Mundo do Trabalho

Compromisso nacional visa alterar as condições de trabalho na produção de cana-de-açúcar

Compromisso nacional celebrado entre governo, trabalhadores e empresas visa alterar as condições de trabalho na produção de cana-de-açúcar no país com estímulo a melhores práticas nas relações trabalhistas, envolvendo questões como saúde, segurança e organização sindical

No último dia 25 de junho foi assinado o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições do Trabalho na Cana-de-Açúcar, um pacto de "livre adesão" entre os representantes dos trabalhadores rurais, empresas, produtores do etanol e governo federal. Elaborado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, o documento tem como objetivo estimular e garantir melhores práticas nas relações de trabalho e defender o denominado "trabalho decente".

Seus principais pontos abrangem os seguintes itens:

-Contrato de trabalho. Os trabalhadores serão contratados diretamente pelas empresas, evitando assim a ação dos intermediários, ou seja, dos chamados "gatos". Com essa medida, a remuneração dos trabalhadores não está mais vinculada ao pagamento dos intermediários, fiscais e responsáveis pelo transporte. Por outro lado, a empresa deve dispor de mecanismos de aferição da produção, previamente acertados com os representantes dos trabalhadores, devidamente escritos e amplamente divulgados entre os cortadores.

-Saúde e segurança. As empresas devem fornecer gratuitamente os equipamentos de proteção individual (EPIs) aos trabalhadores e empenhar-se para que sejam usados durante as atividades laborais, sobretudo o corte da cana; implantar a prática da ginástica laboral antes do início da atividade; promover campanhas de conscientização acerca da necessidade de reidratação, com o fornecimento gratuito de soro hidratante aos cortadores. Deve haver rigor no exame médico admissional e pronto atendimento médico em situações de emergência. No que tange ao transporte, cabe às empresas fornecê-lo gratuitamente, de acordo com as determinações da NR31 NR31: Norma Reguladora das condições e ambiente de trabalho no meio rural., relativas à segurança e habilitação dos condutores dos veículos etc.

-Trabalhadores migrantes. Os alojamentos devem seguir os requisitos da NR31 e proporcionar acesso a meios de comunicação para facilitar o contato dos migrantes com as famílias. Além disso, as empresas têm de solicitar às Gerências Regionais ou Superintendências Regionais do Trabalho a emissão de certidão liberatória para os trabalhadores que neles permanecem após a jornada de trabalho, comprovando sua contratação regular e garantindo seu retorno ao local de origem no final da safra.

- Remuneração e alimentação. As empresas devem complementar o pagamento das diárias, correspondentes ao piso salarial, para os trabalhadores que não obtiverem a remuneração com sua respectiva produção. Quanto à alimentação, cabe-lhes fornecer apenas a "marmita" térmica, sem os alimentos.

- Organização sindical e negociações coletivas. As empresas e as entidades dos trabalhadores devem se empenhar para o estabelecimento da negociação coletiva de trabalho. O acesso aos locais de trabalho de dirigentes de sindicatos, federação ou confederação da respectiva base territorial, previamente credenciados, deve ser assegurado pelas empresas, desde que estas sejam comunicadas pelas entidades dos trabalhadores de maneira simplificada e com antecedência, para verificarem eventuais problemas e buscarem soluções.

- Responsabilidade no desenvolvimento da comunidade. As empresas divulgarão e apoiarão ações relativas a educação, saúde, cultura, esporte e lazer nas comunidades onde estão inseridos os trabalhadores.

Na celebração dessa "adesão voluntária", o presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) afirmou: "Entendemos este compromisso como um modelo inovador de cooperação tripartite ­ envolvendo empresários, trabalhadores e o governo federal. Trata-se de um acordo nacional de adesão voluntária que se diferencia de qualquer negociação realizada pelo setor até o momento e representa um avanço decisivo nas relações trabalhistas. As 300 unidades empresariais que assinam hoje os seus `termos de adesão' terão de cumprir um conjunto de cerca de 30 práticas empresariais exemplares, que em seu conjunto extrapolam as obrigações legais e darão direito a um `certificado de conformidade', que será debatido pela comissão nacional de diálogo e monitoramento do compromisso, hoje criada".

A (não) celebração no eito dos canaviais  

Em 2008 a produção nacional de cana-de-açúcar somou 495.794.424 toneladas, de acordo com dados da Unica. Dois terços desse total, no entanto, provêm apenas do estado de São Paulo, cuja área canavieira atual atinge 4,5 milhões de hectares, segundo o Instituto de Economia Agrícola (IEA). São Paulo, pode-se dizer, transformou-se num gigantesco canavial.

Por trás desses números grandiosos esconde-se uma realidade perversa relativa aos trabalhadores e ao meio ambiente. Nos limites deste texto, será abordada apenas a situação dos trabalhadores, levando-se em conta alguns dados recentes de pesquisas feitas no estado paulista, particularmente na macrorregião de Ribeirão Preto, considerada a capital mundial do etanol.

Logo após a assinatura do acordo em Brasília, entre os acontecimentos noticiados pela imprensa e investigados pelo Ministério Público, merecem destaque os seguintes:

- No mesmo dia da celebração, "[...] o Grupo José Pessoa acaba de se envolver, em menos de dois anos, no seu terceiro caso de flagrante de trabalho escravo. Desta vez, 280 pessoas ­ entre elas, quatro adolescentes (três com 16 anos e um com apenas 13) e 22 mulheres ­ foram libertadas da área que produzia para a Usina Santa Cruz, em Campos dos Goytacazes (RJ), no início de junho. Não havia registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) dos trabalhadores e o pagamento não seguia as normas legais. As centenas de cortadores de cana-de-açúcar vinham atuando há um mês junto à Usina Santa Cruz por intermédio dos chamados `gatos', que aliciaram mão-de-obra em outros estados como Alagoas, Bahia, Pernambuco e Minas Gerais" (Notícia veiculada pela PRT1).

-Um trabalhador da Usina Zanin, de Araraquara (SP), morreu enquanto cortava cana, supostamente por excesso de esforço, no dia 29 de junho de 2009. Segundo denúncias encaminhadas à Pastoral dos Migrantes, sediada em Guariba, desde 2004 ocorreram 23 mortes, supostamente por excesso de esforço nos canaviais paulistas. (Jornal Primeira Página, São Carlos, 5/7/2009, B 2).

-"BNDES é sócio de usina acusada de usar trabalho `escravo'" é o título da reportagem, publicada na Folha de S.Paulo, segundo a qual o governo federal recorreu à Justiça para incluir na "lista suja" a empresa Brenco, com 20% de seu capital nas mãos do banco, em razão de denúncias de possuir trabalhadores em situação degradante em Goiás e Mato Grosso. Foram registrados 107 autos de infração por violações à legislação, segundo o governo, como alojamento precário, falta de equipamentos de proteção e transporte irregular (30/6/2009, B 10).

- O trabalhador da Usina Bela Vista, de Pontal (SP), Sidnei dos Santos, 40 anos, morreu carbonizado na noite de 12 de julho de 2009, enquanto ateava fogo na cana. O trabalhador usava um botijão de gás e uma mangueira como lança-chamas. A prática é comum na região, embora extremamente irregular, segundo a NR31 (Folha de S.Paulo, Ribeirão, 13/7/2009).

- No dia 20 de julho de 2009, o Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público libertou 105 trabalhadores em São Francisco de Itabapoana (RJ), os quais estavam submetidos a condições análogas às de escravos. Eram cortadores de cana para a Usina Paineiras (Estado de S. Paulo, 21/7/2009).

Vale a pena ainda acrescentar os dados coligidos pela Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2009, 951 trabalhadores na atividade canavieira foram resgatados em condições análogas às de escravo, o que representa um crescimento em relação aos anos anteriores ­ 605 no período de 2003 a 2006.

Essas informações não se configuram exceções. Fazem parte da engrenagem da superexploração da força de trabalho vigente nessa atividade, que garante os altos níveis de produtividade e a competitividade do açúcar e do etanol no mercado internacional. Portanto, os itens da "adesão voluntária" celebrada em Brasília se constituem em meras aparências de mudanças.

Ademais, há outras formas invisíveis de exploração dessa força de trabalho registradas por minhas etnografias nos últimos meses, algumas das quais relato a seguir.

Um dos itens celebrados se refere ao oferecimento dos EPIs, garantindo a segurança no trabalho. Entre os EPIs, destacam-se: roupa, constituída de calça, camisa e mangote para a proteção dos braços; boné árabe para a proteção do pescoço; caneleira; sapatos com biqueira de aço, a fim de evitar corte nos pés; luvas; além do facão.

Em virtude do suor, da fuligem da cana e da poeira, torna-se necessária a lavagem da roupa diariamente, algo que é feito pelo trabalhador, ou sua esposa, assim que chega em casa. Nesse sentido, as usinas se comprometeram a fornecer a todos duas trocas de roupas. No mês de junho, no entanto, vários trabalhadores de um "barraco" (denominação dada pelos migrantes aos cômodos que alugam nas cidades durante a safra)A cidade, bem como os nomes dos trabalhadores, não estão sendo relatados, a fim de livrá-los de possíveis represálias por parte de fiscais e encarregados da usina. relataram que, em razão da usina lhes ter oferecido apenas uma troca de roupas, eles as vinham vestindo ainda molhadas logo na madrugada, pois não secavam durante a noite, com o frio e as frequentes chuvas neste inverno. Muitos contraíram gripe e outros, pneumonia. Indagados sobre o motivo de não usarem outras roupas, afirmaram que, nesses casos, o feitor (assim chamado o fiscal) impunha-lhes o "gancho", isto é, suspensão do trabalho por até três dias, dependendo da desobediência.

Outro item do acordo celebrado se reporta ao compromisso das empresas em apoiar atividades relativas a lazer, esporte, educação etc. Minhas pesquisas têm mostrado que a prática mais vigente é a jornada de 5x1, ou seja, trabalha-se durante cinco dias seguidos e descansa-se no seguinte. A Constituição Federal de 1988 assegura que o trabalhador rural que trabalha trinta dias tem a cada seis um dia de descanso remunerado, preferencialmente aos domingos (art. 7º, inciso XV, da Constituição de 1988). A prática do 5x1 obriga o trabalho aos domingos e feriados, dias em que deveria haver remuneração extra, algo que não ocorre. Além disso, esse sistema traz danos à sociabilidade dos trabalhadores, pois a rotatividade dos dias de folga impede que haja um tempo comum de lazer para todos. Assim, no interior dos "barracos" costuma-se encontrar trabalhadores cujo dia de folga não coincide com os dos colegas que compartilham os mesmos cômodos. Portanto, muitos hábitos e costumes praticados aos domingos pelas famílias ou por grupos de migrantes do mesmo local de origem não são realizados. Em outros termos, essa imposição põe em questão a reprodução cultural e social desses trabalhadores. Inquiridos sobre as atividades de lazer, respondem, em sua grande maioria, que descansam, mas não saem de casa, procurando recuperar as energias para a próxima jornada de trabalho. "Do `barraco' para o eito e do eito para o `barraco'", é o que afirmam.

No que tange à reprodução social de grande parte desses trabalhadores, constituída por migrantes vindos do Nordeste e também do Vale do Jequitinhonha (MG), é importante acrescentar outro dado. Em virtude dos milhares de trabalhadores que chegam no início da safra, há um acréscimo vertiginoso da população das cidades canavieiras, sobretudo das menores, considerando ainda que vários deles levam a respectiva família, pois o tempo da safra oscila entre nove e onze meses. Esse fato provoca um crescimento das demandas dos serviços públicos de saúde e educação, algo que não é contemplado pelo repasse de verbas advindas do governo estadual, cuja prática se baseia nos índices da população residente, e não da flutuante. Aliadas a essa realidade, as denúncias da precarização das moradias dos migrantes, encaminhadas ao Ministério Público e a outros órgão governamentais, têm contribuído para a realização de fiscalizações e a exposição pública dessas condições.

A fim de eliminar tal situação, algumas usinas contratam os migrantes em seu local de origem, após os exames médicos admissionais, transportando-os até as cidades de destino e se responsabilizando pelas moradias. Nesse caso, há o impedimento da vinda das famílias. Aqueles que optarem por levá-las terão de arcar com os gastos de transporte e também com os aluguéis da moradia. Por outro lado, os que, porventura, não retornarem a seu local de origem no final da safra não serão contratados para a seguinte, já que, para isso, necessitariam estar lá na época das contratações.

Torna-se evidente que essa prática é uma forma de impedir a vinda da família do migrante. Os efeitos deletérios sobre as relações afetivas, a sociabilidade e a organização das famílias se manifestam por meio das separações dos casais, do alcoolismo, da sobrecarga de trabalho, uma vez que despendem tempo para o preparo da comida e da lavagem da roupa, atividades desempenhadas pelas mulheres, em geral. Os depoimentos de homens e mulheres deixam claros os efeitos negativos dessa separação, sobretudo no tocante à criação dos filhos, ao estranhamento das crianças em relação aos pais. "A minha maior tristeza era chegar em casa e a criança correr de mim, achar que eu era um estranho, não saber que era seu pai." "Toda vez que falo com meu marido ao telefone, levo as crianças para que escutem a voz do pai, assim elas não vão estranhar quando ele voltar."

Todas essas evidências ­ além da imposição da média, ou seja, do corte de, no mínimo, 10 toneladas de cana diárias, para assegurar a continuidade do emprego, do contrário há o risco de dispensa antes do término da safra ­ não foram celebradas no Palácio do Buriti, porém fazem parte da vida daqueles que estão no eito dos canaviais, onde não mais cantam os juritis.

Maria Aparecida de Moraes Silva é professora livre-docente da Unesp; pesquisadora do CNPq e colaboradora dos Programas de Pós-Graduação de Geografia/Unesp/PP e de Sociologia/UFSCar, autora dos livros Errantes do Fim do Século e A Luta pela Terra: Experiência e Memória, pela Edunesp