O processo de abertura democrática foi um momento de grande vitalidade para a organização política da sociedade civil. O período final da ditadura militar favoreceu a entrada na arena política de temas e atores antes estranhos ao espaço da política. É nesse contexto que ocorreram o surgimento do PT e a emergência de movimentos sociais considerados novos, não apenas por suas demandas, mas por questionarem as concepções dominantes sobre a participação popular na política. Entre eles está o que chamamos de movimento social negro. Para guardarmos a diversidade que caracteriza os movimentos sociais, é preciso entender o movimento negro como um campo político-cultural contestatório referenciado ao combate ao racismo e às desigualdades raciais. Nesse campo atuam organizações e entidades diversas em sua origem, em sua estrutura organizacional e em projetos de politização da questão racial no Brasil.
Nesse contexto, o movimento negro e o PT emergiram como forças políticas identificadas com as classes e grupos dominados. O movimento negro preocupado em desvelar o mito da democracia racial e enfatizar a condição do negro na sociedade brasileira; o PT em promover a participação política da classe trabalhadora, apresentando-se na arena política como um veículo de expressão dos interesses dessa classe e de todos os excluídos da política. Esse aspecto fez com que vários setores dos movimentos sociais se sentissem atraídos pela proposta petista. Dessa forma, o partido contou em sua fundação com a presença de setores do movimento sindical, mas também de mulheres, feministas, negros, entre outros.
A militância negra que escolheu o PT como uma expressão partidária de seus interesses políticos gerais e específicos o fez em razão de identificar-se com o projeto político de um partido dos trabalhadores e pelo que ele representava em termos de contestação à ordem e de ruptura com a tradição política brasileira. Essa identificação foi produzida em virtude da presença de mulheres e homens negros nos espaços que estiveram nas bases de formação do PT: a participação no movimento sindical, o envolvimento com o movimento estudantil, a experiência em organizações de esquerda, o intercâmbio com os movimentos sociais diversos.
Apesar de ser possível traçar um conjunto de afinidades eletivas entre esses dois processos a emergência do movimento negro e a formação do Partido dos Trabalhadores , esse encontro foi marcado por uma tensão constante. A politização da questão racial pelo partido e a compreensão do papel que a raça desempenha nos processos de subordinação, particularizando a inserção da população negra nos processos sociais, estão ainda em construção no PT, assim como na sociedade.
Embora seja amplo o leque de movimentos sociais que elegeu o PT como uma expressão partidária de seus interesses, foi com o movimento sindical que o partido manteve uma relação de maior intimidade. O movimento sindical tornou-se um interlocutor privilegiado para o partido em consequência de sua força política no processo de abertura política e pela sustentação que deu à fundação do partido: a maioria dos dirigentes do PT confundia-se com os dirigentes sindicais. Segundo Margaret Keck1, quando a sobrevivência do PT esteve em jogo, na década de 1980, foi da força do movimento sindical que ele se alimentou. O fato de estar umbilicalmente ligado ao movimento sindical condicionou o tipo de recepção que ele ofereceu a outros temas, entre eles o das desigualdades e discriminações com base no suposto pertencimento racial.
Durante a década de 1980, o partido tendeu a classificar as lutas sociais por meio de dois princípios: o da exploração e o da opressão. O primeiro aplicava-se às lutas identificadas com a classe trabalhadora e o segundo àquelas que eram entendidas a partir da exterioridade a esse campo. Ao classificar a luta do movimento negro como uma luta contra a opressão, o partido adotou um discurso de apoio e solidariedade à causa que guiava esse movimento, sem que ela fosse alçada a tema político-partidário.
Essa realidade não impediu que a militância negra, simpática ao projeto de um partido dos trabalhadores, se organizasse nos setoriais de negros e negras, batizado posteriormente de setorial de combate ao racismo, visando conferir visibilidade política à dimensão racial e disputar espaços de poder nas instâncias partidárias.
A militância negra petista casou duas dimensões consideradas, por ela, fundamentais no processo de politização da questão racial no Brasil a raça e a classe para fundamentar sua interlocução com o partido. O objetivo era evidenciar que a clivagem racial influenciava, particularizava e intensificava o processo de exploração da classe trabalhadora.
As Comissões de Negros do PT
As Comissões de Negros do PT foram os primeiros núcleos de organização da militância negra petista, funcionavam como um foro particular à questão racial, pois não tinham vínculos com as instâncias partidárias. A primeira Comissão dos Negros do PT foi criada em 1982 em São Paulo, e se reproduziu em outros estados. Foi a partir delas que ocorreu a estruturação de espaços de combate ao racismo com maior vigor institucional, cujo surgimento derivou do processo de institucionalização do próprio partido e dos momentos conjunturais que promoveram uma maior visibilidade da questão racial no Brasil.
O II Encontro Nacional "O PT e a Questão Racial", realizado em Vitória (ES) nos dias 26, 27 e 28 de agosto de 1988, por exemplo, aprovou a criação da Subsecretaria Nacional de Negros do PT, vinculada à Secretaria de Movimentos Populares, criada em 1986.
Esse encontro teve uma característica interessante. Em virtude do debate promovido pelas atividades do Centenário da Abolição naquele ano, acrescido da iminência da eleição presidencial em 1989, ele deliberou como plano de luta no interior do partido o lançamento da então deputada federal Benedita da Silva como vice na chapa de Lula para a Presidência da República, proposta que reapareceu no documento da Comissão de Negros do Distrito Federal para o II Encontro do Negro do Centro-Oeste, que ocorreria entre 14 e 17 de abril de 1989. Uma candidatura que tivesse Lula e Benedita da Silva concretizaria, segundo a defesa da militância, uma política pautada na raça e na classe.
Os militantes negros produziram esse embate dentro do partido, apesar de a orientação partidária defender a estratégia de que o vice de Lula deveria ser de um dos partidos da frente eleitoral, para ampliar a possibilidade de votos entre outros grupos ou classes, sobretudo a classe média. O documento intitulado "Brilha Brasil: Benedita da Silva, vice do Lula", assinado pelo Comitê de Apoio à Benedita vice de Lula2, colocava em questão essa orientação sob o argumento de que a aliança do partido deveria ser política, histórica e cultural com a totalidade da classe trabalhadora. Nesse caso o nome de Benedita da Silva teria maiores chances de atrair os setores excluídos da classe trabalhadora, favelados, e ainda contar com a simpatia da classe média intelectualizada.
Apesar do engajamento da militância negra e de outros setores dos movimentos sociais pela aprovação do nome de Benedita para compor a chapa petista para as eleições de 1989 (Raça & Classe, 1989)3, José Paulo Bisol, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), foi o escolhido por contemplar os interesses dos demais partidos que compunham a frente (PT, PSB, PCdoB, PV).
O Centenário da Abolição
Não é por acaso que a criação da Subsecretaria Nacional de Negros do PT ocorreu em 1988, assim como a indicação pela militância negra, no ano seguinte, do nome de Benedita da Silva para a composição da chapa do PT à eleição presidencial. Esses eventos foram impulsionados pelo contexto do Centenário da Abolição, em 1988.
O ano foi um marco para a ampliação do debate racial em toda a sociedade e como consequência abriu espaços para a militância negra petista desenvolver uma reflexão crítica sobre o papel que o partido vinha desempenhando na politização do tema. Significou ainda um maior diálogo do movimento negro com outros setores da sociedade.
O que estava em questão nos eventos dedicados ao centenário era a capacidade de o movimento negro inverter a versão romantizada da abolição e produzir um novo senso comum sobre as relações raciais na sociedade brasileira, em direção contrária à ideia de democracia racial. A discussão acerca do centenário perpassou praticamente todos os espaços da sociedade: o Estado, a Igreja, a imprensa, as universidades.
Os militantes negros organizados no PT aproveitaram a ocasião do centenário para veicular, nos espaços de debate do partido, seus posicionamentos sobre a forma como a questão racial era tratada no Brasil e pelo partido em particular. Conseguiram que o tema do centenário fosse incorporado às resoluções do V Encontro Nacional do partido, realizado em 1987. A resolução sobre o centenário, respaldada em dados estatísticos, apresentava o quadro das desigualdades raciais, enfatizando como a condição da classe trabalhadora era também condicionada pela dimensão racial. Dados sobre os postos de trabalho, salário, qualificação, o tratamento jurídico e policial evidenciavam que a raça provoca uma clivagem na forma como a classe trabalhadora vivia os processos de dominação, subordinação, exploração em sua relação com o capital. A população negra é apontada como o setor mais explorado da sociedade brasileira.
Diante desse quadro, o documento se posiciona contra o tom festivo que o governo brasileiro queria dar ao Centenário da Abolição e conclama o PT a transformá-lo em um momento de avaliação das reais condições do trabalho, no Brasil, articulando "por meio de seus militantes a mobilização do Movimento Negro com a mobilização dos trabalhadores em geral"4.
De acordo com Flávio Jorge Rodrigues da Silva, esse foi "um grande momento de estruturação da questão racial, onde pela primeira vez um diretório nacional do PT aprova uma resolução destinada a uma intervenção na questão racial, não só nossa [negros], mas de todo o partido, que é quando o PT, impulsionado por nós, tem uma postura de questionar o Centenário da Abolição"5.
O debate produzido pelos militantes e pelos intelectuais ligados ao PT, comprometidos com o tema da questão racial, nesse momento, esteve centrado nas dificuldades do partido em politizar a questão racial, a partir dos princípios dominantes em seu projeto político-partidário, que interpelavam, sobretudo, a classe trabalhadora.
A radicalização da democracia
Na década de 1990, o PT firmou-se como uma força política, ocupando espaços em várias administrações municipais e algumas estaduais e colocando-se como objetivo político alcançar o governo federal. Esse novo momento, aliado às alterações significativas na esfera política tanto nacional quanto internacional, resultou em reformulações no projeto político partidário. A oposição à ordem, dominante na década de 1980, expressa na centralidade da luta de classes, foi suavizada por um projeto que elegeu a radicalização da democracia como o caminho de interlocução do partido com a sociedade e de oposição ao avanço da ideologia e das políticas neoliberais. É nesse contexto que as lutas contra a opressão se equiparam às lutas contra a exploração em grau de importância no discurso partidário. Estava também em jogo a ampliação dos interlocutores partidários em um quadro de enfraquecimento político das lutas referidas à exploração e de declínio dos projetos políticos socialistas.
Se, na década de 1980, a identificação do partido com as lutas contra a exploração, a partir de uma concepção homogênea de classe trabalhadora, foi apontada pela militância negra como um obstáculo à politização da questão racial, as alterações no projeto político-partidário, a partir do fortalecimento da cidadania, podem levar a crer que houve modificações substanciais no comportamento do partido em relação ao tema. Contudo, não foi bem assim. Embora a militância tenha conseguido ampliar os espaços institucionais no partido por meio da criação da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo em 1995, o tema manteve-se isolado da política partidária mais ampla, o que refletiu na inexistência de políticas de combate ao racismo criadas e sustentadas pelo partido e pelas administrações petistas. Salvo uma ou outra experiência. Podemos dizer que a temática racial ganhou uma maior visibilidade no discurso partidário, as menções ao tema nos documentos tornaram-se mais frequentes, mesmo que acompanhadas de uma autocrítica ao pouco avanço do partido na politização do tema.
Além de modificações nos rumos do partido, a década de 1990 trouxe novidades para o campo do movimento social negro. O movimento inaugurou com a Marcha a Brasília (1995) um novo momento para a politização das relações raciais, ao introduzir na agenda política o tema das ações afirmativas. Nessa acepção, a população negra é apresentada com um grupo social específico que se insere de forma particular nos processos de interação social, cultural, política e econômica em razão dos significados simbólicos atribuídos a sua diferença abordagem que trouxe uma nova interpretação para a questão racial no Brasil, ancorada em uma perspectiva multicultural. Esse encaminhamento, somado a outros fatores, como uma ampliação do papel das ONGs negras no campo do combate ao racismo, alterou as práticas políticas e o tipo de relação do movimento social negro com o Estado e com as demais forças políticas presentes na sociedade.
A participação brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001, concretizaria a direção política que o movimento negro tinha esboçado em 1995. Ela repercutiu no contexto nacional popularizando o tema das ações afirmativas, que passou a ser identificado cada vez mais como política de cotas para negros. Esse passo em direção à política de cotas, como instrumento de promoção de igualdade racial, forçava agora uma tomada de posição, o que teve como efeito transformar a problemática racial em objeto de disputa na sociedade, retirando-a da costumeira invisibilidade.
No bojo da polêmica em torno da política de cotas, produziu-se um quadro no qual foram se definindo e redefinindo os aliados e os adversários desse encaminhamento político, o que forçou também uma reelaboração do discurso e das práticas políticas da militância negra e de suas relações com o poder institucional. Mesmo a militância negra petista que tinha moldado sua prática política por meio da articulação entre raça e classe, inserindo a politização da questão racial em um projeto de transformação da sociedade, viu-se diante da necessidade de redefinir suas concepções de forma que pudesse responder ao novo momento político.
A conversão da militância negra petista às políticas de cotas e as propostas que se desenharam e se reafirmaram por meio da participação do Brasil em Durban eclodiram no processo eleitoral de 2002. As eleições de 2002, desde o XII Encontro Nacional do PT, preparatório para as eleições ao plano de governo, mostraram um engajamento do PT com as demandas do movimento negro por meio da absorção da linguagem predominante em Durban. A implementação de políticas contra o racismo foi inscrita no programa petista como garantia dos direitos humanos e de ampliação da cidadania. Esse engajamento se fez presente durante a campanha e no programa de governo do PT, que teve um caderno temático intitulado "Brasil sem racismo", no qual o partido apresentou sua proposta para a população negra em sintonia com o momento em que se encontrava o debate sobre discriminação e desigualdade racial na sociedade brasileira.
O engajamento do partido com o tema das desigualdades e discriminações raciais em 2002 foi resultado do acúmulo político do movimento negro, que se aproveitou dos vínculos históricos do partido com os movimentos sociais, e da força e visibilidade do movimento na sociedade, no contexto pós-Durban, para introduzir a questão racial no debate político eleitoral. A vitória eleitoral do PT em 2002 possibilitou a conquista de espaços políticos para esse tema no governo, a exemplo da Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país, sancionada pelo presidente Lula em janeiro de 2003. E também a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em março do mesmo ano.
Ao longo desse período é inegável a transformação da questão racial em tema político nacional. Contudo, uma avaliação dos avanços do governo Lula na concretização de políticas para a população negra bem como das práticas administrativas petistas em âmbito local (municipal e estadual) ainda está por ser feita. Só assim poderemos medir o efetivo comprometimento do partido com as questões que tocam de perto a população negra.
Claudete Gomes Soares é professora universitária, formada em Ciências Sociais e doutora em Sociologia pela Unicamp