Sociedade

A exclusão e outras consequências nefastas da escravidão no Brasil não deixarão de existir com o passar do tempo

O governo Lula tem várias iniciativas voltadas ao combate das desigualdades, mas o conservadorismo da Câmara dos Deputados impediu que maiores avanços fossem consolidados

Senador Paulo Paim e deputados durante aprovação do Estatuto da Igualdade Racial

Roberto Stuckert Filho/O Globo

Durante séculos o desenvolvimento do Brasil, primeiro como colônia, depois como país independente, baseou-se no trabalho escravo, que, assim, marcou a maior parte da nossa história. Ele implicou o sacrifício de milhões de vidas que pereceram na travessia do Atlântico ou nas árduas condições de trabalho e de opressão. Foram quase 400 anos de história sob o regime da escravidão, que se seguiram de já 121 anos de abolição incompleta.

A Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, foi tão expressiva quanto lacônica. Trazia somente dois artigos: “Art. 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário”.

Não há como negar a importância da lei que constitui o marco legal da extinção do trabalho escravo no Brasil. Ela foi importante, mas ficou faltando à abolição a formulação de políticas públicas que revertessem os efeitos nocivos do regime escravista. Não se ofereceram educação, acesso à terra ou condições de inserção no mercado de trabalho. Assim, construíram-se as desigualdades raciais por um lado e por outro todo um conjunto de imagens negativas e estereótipos que afetaram profundamente a vida dos afro-brasileiros. Apesar dessas condições adversas, é inegável a contribuição dos negros para a formação econômica, social e cultural da Nação.

O Estatuto da Igualdade Racial, Projeto de Lei nº 6.264 de 2005, será um marco para o futuro com um profundo olhar no passado e no presente. Ele foi aprovado na Câmara dos Deputados, em 9 de setembro de 2009, e, em face das modificações ocorridas na Câmara, voltou para análise e votação no Senado Federal, onde começou sua tramitação por iniciativa do senador Paulo Paim (PT-RS). Há uma tendência a não sofrer novas alterações, em face das conversações havidas entre o autor e os vários representantes dos partidos enquanto tramitava na Comissão Especial da Câmara. Uma avaliação do texto aprovado implica apontar seus avanços, bem como os temas que não foram devidamente contemplados.

O Estatuto tem 70 artigos distribuídos em 6 títulos. Reafirma direitos e proclama o compromisso do Estado brasileiro com a promoção da igualdade. Ele define o que é discriminação racial ou étnico-racial, o que é desigualdade racial, desigualdade de gênero e raça, e define que população negra é “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas, conforme o quesito cor ou raça, usado pelo IBGE”. O Artigo 2º estabelece que “é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia, da raça, ou cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais”.

O Estatuto define como direitos fundamentais: o direito à saúde (destacando-se políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e outros agravos na população negra, redução das mortes violentas entre jovens negros, o diagnóstico precoce de doenças típicas, atendimento às comunidades quilombolas etc.); o direito à educação, no qual se situa o tema polêmico das cotas, que terminou aprovado apenas de forma genérica e somente para as instituições públicas e federais: “O Poder Público adotará programas de ação afirmativa destinados a assegurar o preenchimento de vagas, pela população negra, nos cursos oferecidos pelas instituições públicas federais de educação superior e nas instituições públicas federais de ensino técnico de nível médio”; o direito à cultura, ao esporte e ao lazer.

O Estatuto procura dar um novo olhar sobre as religiões de matriz africana. Com razão, detém-se sobre um tema já abordado na Constituição, mas problemático em sua aplicação real: a liberdade de consciência, de crença e de livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana, de suas liturgias, de suas festividades, da assistência religiosa em hospitais, instituições de internação coletiva e prisões, nos meios de comunicação. E assegura a participação de religiões de matriz africana em conselhos e outras instâncias em que participem outras religiões.

Ainda é destacável no Estatuto a questão do acesso à terra, que, por pressão dos setores conservadores, ficou sem a definição do conceito de quilombolas e terras quilombolas. No topo das provisões mais contestadas do Estatuto, provavelmente estão aquelas destinadas a garantir a posse da terra das comunidades remanescentes dos quilombos. Esse capítulo foi alvo de ferrenhos ataques da muito bem articulada bancada ruralista, que impediu uma formulação mais precisa. Essa contestação não é um ato isolado. Trata-se dos mesmos setores que trabalham incessantemente pela criminalização dos movimentos sociais agrários. O então PFL, hoje DEM, ingressou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, contra o Decreto nº 4.887, assinado pelo presidente Lula em 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição. Alega que o decreto não tem base legal que o sustente, questionando suas principais disposições, entre elas o critério para a identificação de uma comunidade quilombola e para a delimitação do território a ser titulado e a necessidade de desapropriação de terras particulares, de titularidade de não quilombolas, que estiverem dentro dos territórios a serem titulados.

No aspecto da moradia, o Estatuto apresenta disposições genéricas no sentido de facilitar o acesso da população negra à moradia, ao financiamento habitacional, à participação nos conselhos etc. Na parte do trabalho, reitera os compromissos assumidos pelo Brasil, em convenções internacionais, de eliminação de toda forma de racismo e discriminação no trabalho, para promover a igualdade de oportunidades no setor privado e no setor público, na escolaridade e na formação profissional, no financiamento de pequenas e médias empresas de empresários negros, na concessão de incentivos fiscais às empresas (acima de 20 empregados) que adotem cota mínima de 20% de trabalhadores negros. A participação de artistas e técnicos negros na televisão e no cinema foi afirmada, porém excluída a porcentagem mínima, também de 20%, que era proposta. O setor público deverá incluir cláusulas de participação de artistas negros em contratos.

Nas disposições finais institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), com a participação facultativa de estados e municípios, para auxiliar na realização dos objetivos do Estatuto. O governo federal deverá elaborar e acompanhar a execução de um plano nacional de promoção da igualdade racial, no qual a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) terá papel fundamental, com a participação da sociedade civil. O Estatuto ainda avançou na disposição de criar ouvidorias permanentes para as vítimas de discriminação racial.

Após a aprovação do Estatuto, os orçamentos federais deverão destinar recursos à promoção da igualdade racial. Em sua versão inicial, porém, o projeto incluía a criação de um fundo, que significaria um aporte financeiro específico para a promoção da igualdade. A criação do Fundo de Promoção da Igualdade Racial contribuiria para melhor implementar as políticas afirmativas. Apesar dos esforços, com a impossibilidade de aprovação do fundo, concordou-se em levar o debate sobre sua criação para outra proposição parlamentar, a PEC 536 de 2006.

Outro ponto bastante discutido foi a adoção de cotas para ingresso nas universidades públicas, que desde 2002 vem ganhando espaço em algumas universidades em seus exames de seleção: a do Estado da Bahia, as estaduais no Rio de Janeiro, pioneiras entre as universidades públicas estaduais, a de Brasília, pioneira entre as públicas federais; atualmente já são mais de 40 universidades que adotam algum mecanismo de inclusão em seus processos seletivos.

Nenhuma das previsões sobre as possíveis consequências negativas uma vez adotadas as cotas se confirmou. Não se verificam conflitos nos campi universitários no Brasil em função das cotas, os estudantes cotistas não se sentem inferiorizados em relação a seus colegas e, principalmente, não houve o tão temido declínio da qualidade acadêmica. E há uma razão muito concreta para isso: o desempenho dos estudantes cotistas é, em grande medida, similar ao dos demais estudantes.

Havia também, em versões anteriores do Estatuto, a provisão de cotas nos meios de comunicação. O esforço para tornar presente a imagem de homens e mulheres afrodescendentes na mídia, parte da constatação de que no mundo contemporâneo uma das formas mais poderosas de visibilidade social se dá através da mídia e outros meios de publicidade que não refletem a diversidade de nossa população.

O governo do presidente Lula tomou várias iniciativas no sentido de fortalecer o combate às desigualdades raciais, sancionando a Lei nº 10.639 de janeiro de 2003, que inclui no currículo da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e logo após, em março, criando a Seppir, além de instituir as conferências de igualdade racial.

A adoção de um Estatuto da Igualdade Racial dotado de mecanismos incisivos para promoção da igualdade teria caminhado de forma mais decisiva para a consolidação dos avanços já obtidos. Entretanto, faltou a pressão necessária para que isso acontecesse, e faltou uma Câmara de Deputados menos conservadora.

É fundamental a compreensão de que a exclusão que se produziu, em um longo processo histórico, através de mecanismos e dinâmicas econômicos, sociais e culturais que garantiram sua reprodução, não desaparecerá por ação natural do tempo. A maneira de corrigir esse quadro é a adoção de políticas públicas de promoção da igualdade que criem uma sociedade na qual a igualdade de oportunidade seja uma realidade. Para isso ainda tem muita luta pela frente.

Janete Rocha Pietá é deputada federal (PT-SP) e coordenadora do Núcleo de Parlamentares Negros do PT no Congresso Nacional (Nupan)