Mundo do Trabalho

A história do movimento de catadores de materiais recicláveis prova que é possível unir desenvolvimento econômico, organização solidária e defesa do meio ambiente. Há dez anos cultiva extensa rede de relações econômicas na sociedade

A vitalidade dos movimentos sociais no Brasil foi responsável por grandes conquistas do ponto de vista da ampliação dos direitos de cidadania. Desde a década de 1980 os movimentos vêm contribuindo, não apenas com sua luta cotidiana, mas também com proposições objetivas e experiências autogestionárias concretas, para a ampliação dos horizontes de nossa democracia.

Essa constante vibração respeita um mesmo roteiro. No mais das vezes, parte da luta contra um problema objetivo, como a falta de esgotamento sanitário, de escolas ou de habitação digna, passa pelo reconhecimento dessa situação com a criação de leis e programas que determinam a reversão dessa injustiça e continua, em um processo constante de aperfeiçoamento, remexendo e provocando mudanças na estrutura do Estado e da sociedade.

Um exemplo bastante concreto é o do movimento de moradia. Recentemente, o governo federal assinou a liberação de R$ 1,2 bilhão para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), destinados à construção de novas moradias e obras de urbanização de favelas. A concretização desse ato, porém, só foi possível porque em cada luta contra despejo, em cada comunidade, loteamento ou favela se somou energia, amplificada pela força das entidades nacionais do movimento de moradia, que permitiu a aprovação do capítulo sobre política urbana da Constituição de 1988, do Estatuto da Cidade, do Conselho Nacional de Habitação, das leis em cada município ou estado instituindo áreas para habitação de interesse social, entre muitas outras que ajudaram a incorporar a questão da moradia na agenda dos governos.

Há ainda outros exemplos, como o Movimento LGBT, o de pessoas com deficiência ou hansenianos, nos quais os direitos envolvidos estão relacionados à própria condição individual e a cobrança é pela ampliação e aperfeiçoamento de políticas que garantam respeito, equidade e igualdade de oportunidades. Também nesse campo a contribuição dos movimentos foi fundamental para a criação da "rede de direitos" existente hoje no Brasil.

Conjugar desenvolvimento econômico, uma forma de organização solidária e respeito ao meio ambiente parece ser a utopia política do início do século 21. A história do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que acaba de completar dez anos, tem demonstrado que essa utopia é realizável.

A organização dos catadores os tirou da invisibilidade e os transformou em um dos movimentos que mais crescem no país. São cerca de 800 mil catadores e 35 mil estão organizados em cerca de 500 cooperativas. Mobilizado para exigir dos diferentes níveis de governo políticas públicas de incentivo à reciclagem, o movimento tem desenvolvido uma extensa rede de relações econômicas na sociedade, com bons frutos em termos de renda (a média do catador organizado é estimada em R$ 600,00).

O ponto de partida das reivindicações do movimento contempla ao menos três dimensões: a valorização da profissão de catador como uma profissão digna, envolvendo o reconhecimento da profissão, a permissão de circulação nos espaços públicos e investimentos na estrutura de trabalho, principalmente em esteiras de seleção, equipamentos de segurança, caminhões e prensas; uma forma de organização que permita uma distribuição equitativa dos benefícios do trabalho, por meio de um tipo de organização solidária; e a promoção da agenda ambiental. Atualmente, o Brasil produz cerca de 160 mil toneladas de lixo todos os dias e o trabalho dos catadores ajuda a tirá-lo das ruas, reduzir o volume dos lixões e aumentar a vida útil dos aterros sanitários. Os altos índices de reciclagem de produtos como latas de alumínio, por exemplo, se devem mais à atividade de catação do que à organização por parte do Estado de políticas de coleta seletiva.

Quando, de maneira inédita, o presidente Lula recebeu os catadores no Palácio do Planalto para a assinatura do Decreto nº 5.940/2006 (que determina a separação e destinação às cooperativas do material reciclável gerado pelo Poder Executivo federal), consolidou-se um trabalho em conjunto com o movimento para ampliar e organizar as ações do governo federal em apoio aos catadores.

A expectativa em relação a essa parceria foi amplamente superada e os recursos investidos nas cooperativas e em programas de capacitação já atingiram R$ 170 milhões. O foco dos programas varia de acordo com a entidade patrocinadora e as ações são orientadas pelo Comitê Interministerial de Inclusão Social e Econômica dos Catadores de Materiais Recicláveis (CIISC), coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). São destaques do trabalho do comitê os investimentos da ordem de R$ 50 as ações e permitir que os recursos milhões, provenientes do Ministério do Trabalho, da Fundação Banco do Brasil, do MDS e da Funasa, em capacitação e desenvolvimento institucional das cooperativas; os R$ 47 milhões, do Ministério das Cidades, para a construção e reforma de galpões (PAC-Resíduos Sólidos);  os R$ 33 milhões, do BNDES, para compra de equipamentos; e os cerca de R$ 40 milhões em parcerias da Petrobras, de Itaipu e da Caixa Econômica Federal com as cooperativas. Em uma próxima etapa, estão previstos investimentos de cerca de R$ 225 milhões concentrados para ampliar a infraestrutura de separação e o transporte do material reciclado pelas cooperativas.

Apesar dos bons resultados, há ainda um longo caminho a percorrer. O empenho do governo federal se concentra agora na criação de incentivos que sustentem a reciclagem como uma atividade permanente para os catadores. Assim, o primeiro desafio é contribuir para  a organização institucional das cooperativas. Não são raros os casos nos quais elas deixam de existir por ou reaproveitados em novos produtos), falta de um apoio mínimo em termos jurídicos, contábeis e de distribuição e venda dos materiais recolhidos. Essa fase inicial é indispensável e a criação de redes de cooperativas pode contribuir para a superação desse estágio.

Um segundo desafio é coordenar as ações e permitir que os recursos aplicados potencializem a organização e a renda dos cooperados. Muitas vezes, por armadilhas burocráticas ou desencontros de calendários, corre-se o risco de destinar verbas de capacitação a uma cooperativa e a verda de investimento a outra, fazendo com que as ações de estruturação percam uma parcela de seu impacto.

Um terceiro desafio é aprimorar a relação federativa. Sem o apoio nas ruas o preconceito se amplia e o trabalho fica muito prejudicado pelos constantes ataques realizados contra os carrinhos dos catadores. Por isso, é preciso uma mobilização cada vez maior de prefeitos e secretários municipais em apoio à atividade de catação.

Duas propostas de caráter estrutural estão em discussão. No Congresso Nacional, o governo apresentou um substitutivo à Lei de Resíduos Sólidos (PL 1991/2007) que prevê instrumentos revolucionários no apoio à reciclagem. A instituição da logística reversa (mecanismo destinado a facilitar a coleta e a restituição  dos resíduos sólidos a seus geradores para que sejam tratados ou reaproveitados em novos produtos), a possibilidade de criação do crédito-prêmio de IPI para as empresas que adquirirem matéria-prima reciclada e a incorporação definitiva das cooperativas de catadores nos sistemas de coleta de lixo são medidas que representariam um enorme salto do ponto de vista tanto ambiental como econômico.

A segunda proposta estruturante é a criação do Pagamento dos Serviços Ambientais Urbanos (Psau). A ideia seria incorporar a mesma concepção em debate à preservação das florestas e estruturar, em termos monetários, uma tabela que refletisse o benefício para a sociedade do trabalho do catador, uma vez que a reciclagem  é, sem dúvida, um meio eficiente de redução de carbono na atmosfera. A proposta, ainda em estágio preliminar, vem sendo estudada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Ministério do Meio Ambiente.

Certa vez, em uma das celebrações de Natal entre o presidente e os catadores, dom Cláudio Humes afirmou que o viaduto sob o qual era realizada a cerimônia havia se transformado em sua Catedral, e ao mesmo tempo, no palácio do Presidente da República. Neste final de ano, serão celebradas as conquistas já alcançadas e mais uma vez se reforçará o compromisso deste governo com a população mais pobre do país.

A luta pelo direito tem idas e vindas, derrotas e vitórias, sucessos e fracassos que vão se acumulando ao longo do tempo. Não faz muito os problemas dos catadores eram vistos como residuais e mera decorrência da situação de pobreza em que vive uma parcela da população brasileira. Mas a trajetória do movimento está demonstrando que a organização e a construção de redes solidárias é um caminho que pode render muitos frutos sociais, econômicos e ambientais para o povo brasileiro.

Diogo de Sant'ana é advogado e assessor do Gabinete Pessoal da Presidência da República

Gilberto Carvalho é filósofo e Chefe do Gabinete Pessoal da Presidência da República