Sociedade

Em dez anos, debates e mobilizações espalhadas por todos os continentes mostram que o Fórum Social Mundial está mundializado

Em dez anos, debates e mobilizações espalhadas por todos os continentes mostram que o Fórum Social Mundial está mundializado e continua ampliando sua conexão pluralista e diversa com agendas e temáticas formuladas para a construção de outro mundo possível

A vontade brasileira de demarcar, em Porto Alegre, a passagem dos dez anos do Fórum Social Mundial em 2010, quando se completam dez janeiros anti-Davos, ajudou a inspirar o formato que o processo terá a partir desse ano. Começará na capital gaúcha, com um balanço político do FSM na virada de década e seguirá por uma trilha de Fóruns, de evento em evento, rumo à África.

Contados de outra forma, os dez anos de vida do FSM, nascido em 2001, levam a festa de aniversário para janeiro de 2011 na cidade Dacar, onde está programada a próxima edição mundial. Ela concretizará no Senegal a vontade africana de organizar novamente um FSM no continente.

Entre um evento e outro, o FSM terá a jornada mais longa de sua história. A diversidade de encontros já agendados pelo mundo nesse intervalo não foi pensada para celebrar, mas para participar de uma edição histórica do Fórum em movimento, acrescentando contribuições de processos e culturas distintos para um futuro que comporte saídas para as várias crises que agora se sobrepõem, financeira, ambiental, energética, alimentar, de modelos de sociedade, ou mesmo uma só crise civilizatória.

A agenda capaz de conectar em um ano atividades por toda a América com eventos no Oriente Médio, intercalados a outros na Europa, na Ásia ou na África, demonstra que o Fórum se "mundializou" de fato nesses dez anos e continua se alargando. Desde que saiu de Porto Alegre para realizar-se em Mumbai, em 2004, já teve edições em Caracas, Bamako e Karachi (na edição policêntrica de 2006), além de Nairóbi, em 2007. Experimentou um dia de Ação Global em 2008 e uma edição mundial em Belém, na Amazônia, em 2009.

Se os eventos mundiais demarcam a continuidade do processo FSM, são especialmente os continentais, nacionais e locais que antecipam sua ampliação e diversidade. Antes de Mumbai, a Ásia realizou seu primeiro Fórum continental em Hyderabad. Antes de Nairóbi houve Bamako e Fóruns Sociais regionais na África. Antes de Belém 2009, os Fóruns Sociais PanAmazônicos.

Para integrantes do Grupo Brasileiro de Reflexão e Apoio ao processo FSM, formado por ativistas do evento desde sua formação, o Fórum foi incorporando, por onde passou, novas temáticas e reflexões, sem perder seu pluralismo, e conseguiu construir de forma colaborativa uma agenda política "vigorosa, inovadora e indispensável para enfrentar os dilemas de civilização do mundo em que vivemos".

Mundializado e diverso

Quando o FSM nasceu, advogando por um Outro Mundo Possível, atraía ideias mobilizadoras contra o que foi chamado de pensamento único. Surgiu reunindo vozes contra as patentes, enquanto a África era flagelada pelaAids. Seus participantes encampavam as lutas pela terra e pelo acesso aos bens comuns da humanidade, e o mundo se armava na disputa por negócios com água e petróleo. Exibia experiências singelas de economia solidária em tempos dominados pela ditadura das finanças globais. Defendia o ir e vir de pessoas barradas por fronteiras que, no entanto, se escancaravam para o livre transitar de mercadorias.

O pensamento único que o FSM ajudou a quebrar se reproduzia em todas as estruturas hegemônicas de dominação, mas particularmente aquelas armadas para promover e comandar a globalização neoliberal: o Fórum Econômico de Davos, as reuniões da OMC, os encontros do G-8. Sintetizava a cultura branca, patriarcal, imperialista, machista, racista, homofóbica e belicista que orientava e orienta as relações de poder predominantes.

O FSM foi, em contraste, uma convocatória inédita à diversidade humana ­ cultural, geográfica, étnica, de gênero ­, a debater seu futuro conjuntamente, sob uma perspectiva de sociedade civil mundial horizontalmente mobilizada, ampla o bastante para abranger povos e comunidades, movimentos sociais e populares, organizações e redes. Outro Mundo Possível já seria esse, diverso e mobilizado pela tarefa de se recriar.

O que estaria em discussão nos anos seguintes, e não deixou de sê-lo até hoje, foi o próprio papel do Fórum nessa recriação, se deveria ou não ser algo mais do que o espaço de encontro e de articulações entre experiências e propostas para um mundo melhor. O FSM se manteve como tal. Mas nunca sua afirmação utópica de que um outro mundo é possível e está em processo foi posta em dúvida, em que pesem as turbulências que cercaram o Fórum nesses dez anos de existência.

O mundo mais cruel

A última década foi perversa contra as chances de derrubar em curto prazo, com ideias e pactos coletivos de resistência, os totens da globalização em vigor, principal aposta do nascente movimento altermundista que conseguira fazer estremecer a OMC em Seattle, em 1999. O terror antecipouse aos sonhos de mudança criativa. Menos de um ano após o nascimento do FSM, ruíam as torres gêmeas por ações terroristas, e o 11 de Setembro deu novo verniz aos argumentos para o controle do mundo pelas armas, a supremacia ocidental e o poder econômico das empresas transnacionais.

Guerras sem sentido e xenofobias de todo tipo foram apoiadas na propagação do medo e fizeram do FSM um espelho da resistência aos terrorismos de Estado usados contra o terror. Um chamado feito no Fórum pela Assembleia dos Movimentos sociais levou milhões às ruas contra a invasão do Iraque, em março de 2003. O universo FSM prosseguiu firme desafiando Davos, OMC, G-8. Mas o inimigo, desconhecendo limites, estava ainda mais feroz.

O FSM também foi uma caixa de ressonância à constatação de que os recursos naturais do planeta minguavam na mesma velocidade de um aquecimento global já em curso. Tsunamis, furacões, polos derretidos, oceanos acidificados. Todo esse assombro concorreu com as esperanças de jovens ativistas saíam às ruas e se reuniam nos Fóruns para mudar o mundo. Herdaram missões quase impossíveis: frear o consumismo que se transformou em "modo de vida" no Ocidente, mudar a matriz energética sobre a qual toda a globalização se move, alterar a relação seres humanos e o planeta, o cotidiano e o conceito de viver bem. Foi um dos motivos para aprovar a realização do espaço da sociedade civil, todos esses FSM, em 2009, na Amazônia, em Belém do Pará, para um contato direto de seus grantes nas ruas e campanhas e reperintegrantes com as vozes dos povos da floresta, que esbanjaram lições sobre o Bom Viver, mas pouco podem sozinhos contra a devastação de seu habitat.

Esse conjunto de crises, somado à explosão da crise financeira mundial, que escancarou os limites do modelo econômico, determinou a agenda múltipla que o FSM hoje se coloca.

O poder das ruas e da comunicação

O FSM tem sido particularmente importante para o Brasil e para a América Latina, por ter nascido aqui e contribuído, com propostas, mobilizações e redes de resistência, para a mudança da vida política na região. Sua história testemunhou relevantes vitórias da sociedade contra as opções de governo impostas pelo poder econômico e pelas elites no continente. Foi assim com a chegada de Lula à Presidência do Brasil e sua reeleição, com a recondução de Hugo Chávez ao governo da Venezuela, depois do golpe, e a vitória do cocaleiro Evo Morales para o governo da Bolívia. Aos poucos a região foi sentindo mudar sua correlação de forças e seus governos, a ponto de não mais reconhecer lideranças golpistas, como no recente caso de Honduras.

Ainda que governos não sejam parte do FSM, preservada sua autonomia de espaço da sociedade civil, todos esses acontecimentos mobilizaram seus integrantes nas ruas e campanha e repercutiram nas edições do Fórum no Brasil. Foram também vitórias da novas formas de comunicação encampadas pelos seus ativistas, mídias e movimentos contra a hegemonia dos grandes meios de comunicação, que estiveram ativos em todos esses momentos, defendendo interesses do poder político e econômico que os controla. Muito da resistência a esses aparatos se deu por meio das rádios comunitárias e também do uso de recursos midiáticos mais acessíveis, como a internet, e ferramentas audiovisuais para a produção coletiva e compartilhada de atividades midiáticas, práticas que são caras ao FSM desde a sua primeira edição.

Se no mundo a comunicação entre pessoas foi facilitada na última década pelo acesso às novas tecnologias, no Fórum Social, e em particular na América Latina, as possibilidades colaborativas se transformaram em ferramentas deliberadamente compartilhadas como exercícios de resistência política e social.

Uma agenda para 2010

Aperfeiçoar o FSM como espaço aberto ao encontro e articulação de alternativas, nos seus territórios planetários, geográficos ou virtuais, pode ser a tarefa da década que virá. Por isso alguns fóruns serão focados em determinados aspectos das crises mundiais e precisarão conectar-se, com práticas de comunicação compartilhada, com outros fóruns, outros temas, outras reflexões.

Como exemplo, em Detroit, um II Fórum Social dos Estados Unidos debaterá saídas não-capitalistas para a crise econômica, do ponto de vista de quem nunca foi incluído nas riquezas acumuladas pelo império, mesmo vivendo nele. Esse Forum regional teve início em Atlanta em 2008, após os desastres do furacão Katrina e o abandono dos flagelados quase à própria sorte, vítimas de um modelo de país que não se ocupa em socorrer igualmente a todos os seus.

Na Palestina, outro exemplo, o Fórum Mundial de Educação debaterá a formação das gerações que nasceram cercadas por guerras e muros e têm nas mãos a tarefa de concretizar um mundo livre de invasões e ocupações. Será um acontecimento novo, especialmente porque pretende levar o espaço livre, rebelde e aberto do FSM para dentro das cercas erguidas e controladas por Israel. A ousadia de hoje é produto dos esforços anteriores pela expansão do fórum pelo mundo árabe.

Só no Brasil haverá pelo menos três fóruns em 2010, com vocações distintas: em Porto Alegre e cidades do entorno, o evento se guiará especialmente pela história e pespectivas de seu processo. Em Salvador, na Bahia, a mais negra das cidades brasileiras, participantes querem debater o processo rumo a Dacar a partira de sua identidade como parte da África na diáspora. E, em Santarém, no Pará, organizações, comunidades e movimentos do Equador, Colômbia, Peru, Bolívia, Venezuela, Suriname, Guiana, Guiana Francesa e Brasil vão se debruçar em propostas para proteger recursos da natureza, territórios e culturas tradicionais durante o seu V Fórum Social Pan-Amazônico.

Ampliando processos regionais, haverá fóruns se deslocando pelos continentes onde as edições anuais já se tornaram tradição: o Europeu, que passou por Itália, França, Londres, Grécia, Suécia, vai para a Turquia; o das Américas, que já percorreu Equador, Venezuela e Guatemala, segue agora para o Paraguai.

A agenda rumo à África continua aberta, incluindo propostas ousadas como a de um Fórum sobre a Crise da Civilização e outras de delicada construção, como a dos indianos e paquistaneses, que querem fazer um fórum no Nepal.

Rita Freire é jornalista e representa a Ciranda Internacional de Informação Independente na Comissão de Comunicação do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial