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A efetivação de direitos já consagrado dependem de uma redefinição do lugar e papel do Estado

A efetivação e a ampliação de direitos sociais dependem hoje não apenas de uma retomada, mas também da expansão da função pública do Estado. Isso significa ir além da sua dimensão distributiva, alcançando os mecanismos de que dispõe para regular e financiar a produção da riqueza. Os direitos sociais devem estar inscritos na própria dinâmica econômica, orientando-a e ao próprio mercado. As fronteiras, até aqui bem definidas, entre o econômico e o social precisam ser subvertidas, sob pena de seguirmos tratando a "riqueza como assunto econômico e a pobreza como assunto social".

A construção do Estado Social no pós-guerra esteve ancorada nas lutas sociais, mais particularmente dos sindicatos pelos direitos dos trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo, esse Estado somente se viabilizou, com variações a depender do país, por um contrato social em que o empresariado reconhecia as vantagens de uma cidadania mais robusta como forma de alavancar o mercado e, portanto, seu processo de acumulação. Esse pacto se desfez pela chamada globalização e pela consequente hipertrofia dos agentes de mercado. As corporações buscam hoje estender seus negócios sobre áreas anteriormente ocupadas pelo Estado na prestação de serviço social, atuando em favor da desregulação pública e redução de direitos.

Certamente esse cenário aponta para uma necessária e intransigente defesa do papel do Estado na promoção de políticas sociais capazes não apenas de assegurar direitos já conquistados, mas de ampliá-los e qualificá-los. No caso brasileiro, a promoção do Sistema Brasileiro de Proteção Social precisa estar no centro das preocupações e do gasto público.

Em estudo recente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) desmistifica a ideia de que o gasto social é o vilão do déficit público. O problema nas contas do governo está, em verdade, na financeirização do gasto público, ou seja, no pagamento de juros altos, que acaba por comprometer as contas públicas e produzir um círculo vicioso. O estudo demonstra que o total do gasto social do governo federal sempre esteve abaixo, na última década, dos gastos com a dívida pública. Além do quê, faz as contas e prova que o orçamento social é superavitário, mesmo quando se desconta a parcela destinada à composição do superávit primário. Portanto, os recursos para a promoção de políticas sociais existem e precisam ser canalizados para essa finalidade.

Sem dúvida, um maior volume de recursos é indispensável para dar conta do grande déficit de cobertura de nossas políticas sociais. Mas há que interrogar sobre como efetivar e qualificar direitos em meio à hipertrofia das corporações, à desorganização da estrutura partidária e sindical e à crescente restrição de uma cidadania ancorada no trabalho assalariado. É inescapável repensarmos o paradigma do Estado Social. Um novo pacto se faz necessário. Como já foi dito, não se trata de abrir mão dos direitos sociais, consagrados em nossa Constituição. Ao contrário, trata-se de reafirmá-los como referência básica de cidadania, mas cuja efetivação e ampliação dependem de uma redefinição do lugar e papel do Estado.

Como e em que direção efetivar e ampliar as políticas sociais? Para responder a essa questão deve-se reconhecer que o paradigma do Estado Social foi também responsável por deslocar para fora do mercado setores importantes da reprodução social e, com isso, serviu para despolitizar os conflitos relacionados à desigualdade ou à concentração da renda e riqueza. Não é por acaso que se confunde desenvolvimento com crescimento econômico e política social com "administração da pobreza".

Não se trata mais de simplesmente fazer crescer as rendas já constituídas para, por meio da ação fiscal do Estado, prover a população de "quase direitos". Não será suficiente para o combate à pobreza alocar de modo socialmente responsável os recursos públicos se a ação do Estado não incidir em favor de um desenvolvimento capaz de superar desigualdades. Com o rompimento do equilíbrio entre Estado Social e Mercado, em benefício deste último, reabre-se a possibilidade de repolitizar as relações econômicas. As políticas econômicas precisam ser pensadas e encaminhadas como políticas sociais, e vice-versa.

Como falar, por exemplo, em direito à segurança alimentar, ao trabalho, ao meio ambiente e ao desenvolvimento sem que a cidadania se projete sobre as relações e instituições tipicamente de mercado? A questão climática atualmente expõe essa necessidade de forma dramática. Nas lutas sociais há uma clara tendência de ampliar a perspectiva dos direitos para o campo da economia. Várias são as experiências que apontam nessa direção e buscam assegurar direitos em pelo menos três campos: do financiamento ao desenvolvimento; do regime de propriedade; e do reconhecimento e regulação das diferentes formas não assalariadas de trabalho.

Em cada um desses campos, muitas são as agendas e iniciativas em curso. No que toca ao financiamento, a agenda cobre um leque amplo de questões que vão da reorientação da política operacional do BNDES em favor de um desenvolvimento socialmente equitativo ao acesso ao fundo público por organizações que promovem trabalho social, passando pela justiça tributária. Já no caso do regime da propriedade, as questões envolvem desde a revisão do índice de produtividade da terra até a regulação sobre a exploração dos recursos naturais, além das concessões de exploração das ondas de rádio e infovias de comunicação. Sobre a questão do trabalho, a agenda compreende da contabilização do trabalho imaterial ao reconhecimento e valorização do trabalho reprodutivo, incluindo a regulação e o fomento ao trabalho associado, cooperativo.

A título de exemplo destacamos algumas dessas agendas. Diferentes organizações e movimentos sociais ­ que incluem CUT, MST, MAB, Contag, Fetraf, Cimi, Ibase, Rede Brasil, entre outros ­ têm atuado em favor de uma agenda comum de incidência sobre o BNDES, intitulada "Plataforma BNDES" . Por meio dela, pretende-se que o banco adote uma postura proativa em termos do estabelecimento de critérios sociais e ambientais em seus financiamentos, bem como do crédito a cadeias produtivas que favoreçam o desenvolvimento local e regional. Reivindica-se, igualmente, o financiamento de tecnologias voltadas a um aproveitamento equilibrado e sustentável dos recursos naturais. Busca-se, enfim, reorientar esse instrumento central do desenvolvimento brasileiro, que tem atuado em favor da concentração econômica e especialização produtiva em setores intensivos em natureza (minério, papel e celulose, petróleo e gás, etanol, pecuária e soja), na direção de uma diversificação da estrutura produtiva e da distribuição da riqueza e da renda.

 No que toca ao regime de propriedade, vale chamar atenção para o fato de que, com a "modernização" do campo brasileiro nas últimas três décadas, não há razão alguma para não rever o índice de produtividade da terra estabelecido nos anos 70, para efeito de reforma agrária. A proposta de revisão do índice encaminhada pelo governo ao Congresso aponta para o debate em torno da questão da finalidade social ou pública da propriedade, seja estatal, seja privada. Essa discussão está igualmente no centro de outras disputas legislativas, como no caso da recente "MP da Grilagem", nas proposições referentes à flexibilização da legislação ambiental, ao zoneamento agroecológico da cana, bem como àquelas sobre exploração mineral em terras indígenas. Na verdade, assiste-se a uma tremenda disputa sobre o modelo de apropriação dos recursos naturais, incluindo os do subsolo, em particular sobre a região amazônica.

O avanço no país de uma estrutura produtiva especializada no setor intensivo em natureza aponta, de um lado, para a desregulamentação do controle e da exploração desses recursos. De outro, as populações que deles vivem e são as primeiras impactadas por grandes projetos extrativos e agropecuários defendem um controle social e público desses recursos. Com o aquecimento global, essa passa a ser uma agenda que extrapola as populações mais diretamente atingidas.

Sobre a regulação das formas não assalariadas de trabalho vale chamar a atenção para a atual composição do mercado de trabalho. Dos ocupados no país, 52% estão na "informalidade". Se retiramos os casos dos assalariados sem carteira, temos algo em torno de 40% de trabalhadores não assalariados. Ou seja, aqueles que estão operando ­ como microempreendedores, cooperativados, conta-própria e produtores rurais familiares ­ uma economia cujo tamanho nos impede de qualificá-la como franja do chamado setor formal. Sua "inclusão" como sujeitos de direitos passa por uma agenda que os reconheça e promova como agentes de desenvolvimento econômico e social. Essas formas de trabalho podem ser vetores de um aumento efetivo da capacidade produtiva e de geração de trabalho, sem cair na concentração de renda típica dos processos de "crescimento sem desenvolvimento".

As políticas de economia solidária voltadas à promoção do direito ao trabalho associado apontam nessa direção. Embora haja diferenças entre tais atividades, existe um aspecto comum a todas, que se refere ao fato de que nelas praticamente não há separação entre capital e trabalho. Ou seja, são atividades que contribuem, com enorme debilidade é certo, para a desconcentração da propriedade e, portanto, da renda. Além disso, como o trabalho não possui a mobilidade característica do capital, a inserção dessas atividades no tecido socioprodutivo demanda estratégias de desenvolvimento local ou regional. Nesse campo, a construção de um marco legal que dê suporte a uma política de fomento vem sendo discutida no Congresso, no âmbito da revisão da lei geral do cooperativismo e do estabelecimento de um estatuto da economia solidária.

Alguém poderia dizer que se trata de uma agenda de resistência. Como produzir esse novo pacto em favor de um Estado Social ampliado, considerando a desproporção hoje do poder alcançado pelos negócios? A conjuntura internacional marcada pelas crises climática e financeira, bem como a conjuntura doméstica, que combina estabilidade monetária, eleições presidenciais e "pré-sal", ambas oferecem um ambiente favorável para travar um amplo debate público sobre que desenvolvimento queremos e que papel deve desempenhar aí o Estado brasileiro. Mas, a considerar as limitações de nossos partidos e lideranças políticas, esse debate somente ganhará a cena pública se resultar de uma demanda da própria sociedade. Com a palavra, as organizações e movimentos da sociedade civil.

João Roberto Lopes Pinto é cientista político, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e professor da PUC-RJ