Sociedade

Setores sociais e combativos da Igreja Católica ampliaram e reforçaram suas lutas atuando também na construção do PT. Por Gilberto Carvalho

"O Episcopado Latino-Americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria humana(...) para nossa verdadeira libertação, todos os homens necessitam de profunda conversão para que chegue a nós o `Reino de justiça, de amor e de paz'".
Documento da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Medellín, 1968

A participação de religiosos nas lutas sociais é uma característica marcante do Brasil. Seja na luta pela melhoria de vida da população, seja lutando contra a opressão de regimes políticos, nomes como Frei Caneca, dom Hélder Câmara, dom Paulo Evaristo Arns, dom Cláudio Hummes, dom Angélico Sândalo Bernardino, dom Luciano Mendes de Almeida, dom Pedro Casaldáliga, dom José Maria Pires e dom Tomás Balduíno são referências entre aqueles que lutaram por um país mais digno.

Essa característica foi fundamental para a formação do PT, uma vez que sua construção foi marcada por uma intensa relação com a população mais pobre do Brasil. O PT nasce quebrando paradigmas dos partidos de esquerda alinhados com o Leste Europeu. Questionando o alinhamento automático com os regimes políticos do socialismo real, optou pela via democrática como forma de luta. Questionando a teoria das "vanguardas", definiu que os próprios trabalhadores seriam os responsáveis pela definição de sua estratégia política. Questionando o dogma da religião como o "ópio do povo", foi formado em grande parte por militantes oriundos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

As disposições do Concílio Vaticano II estimularam um movimento da Igreja Católica em direção aos pobres. Na América Latina teve muita importância no Encontro de Medellín (1968), no qual foi reafirmada a posição de que a construção de um mundo mais justo envolve a reflexão sobre as condições de vida da população mais sofrida. Religiosos e religiosas passaram a viver em comunidades pobres urbanas e rurais, com a ideia de viver concretamente a fé religiosa e compartilhar do destino dos marginalizados. Essas primeiras comunidades se espalharam, formaram grupos de reflexão bíblica, nos quais se comparava o Evangelho com a vida e se planejavam e praticavam ações concretas.

Assim, em cada cidade, bairro ou comunidade do Brasil surgiam lutadores do povo reivindicando melhorias nas condições de vida. Daí emergiram os primeiros movimentos locais, de luta por transporte, água, luz, escolas, creches, que se consolidaram nas CEBs. Nas fábricas surgiram também comissões de trabalhadores, que se reuniam nos fins de semana em paróquias para a discussão de suas reivindicações. Essa extensa rede de entidades e de organizações sociais foi responsável pela construção de uma imensa rede de apoio à atividade sindical e à resistência à ditadura militar. Durante as paralisações do final dos anos 1970 e início dos 1980, o trabalho dessas entidades no recolhimento de doações aos trabalhadores ajudou a sustentar os "fundos de greve", àquela altura essenciais para a continuidade da luta.

As CEBs constituíram também a base para o surgimento das Pastorais Sociais, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as Pastorais da Terra, da Criança, Operária, entre outras. Durante os anos 1970 surgem inúmeros centros de formação e educação popular, que constituem uma rede importante para a articulação e formação política. Tais grupos vão se articulando e concebendo movimentos sociais, urbanos e rurais, e movimentos sindicais de base, que dão origem a oposições sindicais, impulsionando uma renovação política dos sindicatos, na época, controlados por representantes patronais ou governamentais.

A conjuntura, com a "distensão lenta, gradual e segura", com a conquista da anistia, com o crescimento das lutas operárias no ABC e em todo o país, abriu as possibilidades de ação política organizada para todo esse setor popular que cresceu a partir das CEBs e dos movimentos sociais e sindicais.

Esse conjunto de ideias e princípios encontrava eco em um país no qual imperavam as injustiças geradas pela combinação entre o regime político autoritário e uma política econômica excludente. O Brasil era um verdadeiro barril de pólvora. O ritmo médio de crescimento da economia despencou de 8,6% no período 1971-1980 para 1,6% entre 1981-1990, o processo de urbanização continuava acelerado e era combinado a uma migração intensa sem nenhum planejamento urbano; a inflação e o custo de vida disparavam, ao mesmo tempo em que a oferta de emprego diminuía por conta da crise econômica; e a ditadura militar, mesmo com o domínio do Congresso e a censura, perdia força política a cada dia.

No entanto, essa ação política não tinha como se expressar nos antigos partidos organizados pela ditadura, Arena e MDB, nem se identificava com os partidos tradicionais da esquerda, marcados pela hegemonia histórica do PCB. Estes últimos ainda viviam em semiclandestinidade e tinham uma visão de mundo caracterizada por uma visão antirreligiosa e muitas vezes sectária.

A proposta do PT surge como uma luva para todo esse conjunto de setores com origem nas CEBs. A visão de ampla democracia, de construir de baixo para cima, de nova sociedade, de abertura para a construção de um novo projeto político, um partido "dos trabalhadores" para os trabalhadores, tudo isso tinha muita sintonia com o que pensavam e aspiravam os militantes de CEBs, Pastorais Sociais e movimentos sociais e sindicais recentemente organizados.

Passou a fazer parte dos processos de formação política de toda essa militância a discussão sobre as "ferramentas de luta dos trabalhadores", em que se destacavam a ferramenta econômica (sindicatos e movimentos populares) e a ferramenta política (partido político). Todas essas novas organizações populares, marcadamente formadas a partir dos grupos de base da Igreja, e sua militância, exigiam a criação de sua ferramenta própria, pois não se identificavam com as que existiam naquele momento, e aderiam à formação do Partido dos Trabalhadores. Era muito comum, nas reuniões que então se faziam país afora, quando da apresentação dos participantes, alguém dizer: "Sou fulano de tal, do PT, do sindicato, da Igreja".

Esse movimento registrou uma trajetória ascendente durante toda a década de 1980 e se refletiu na campanha das Diretas Já, na eleição de prefeitos, vereadores e parlamentares por todo o Brasil, na construção de grandes entidades nacionais de luta por direitos, como o MST, a CUT, o Fórum Nacional pela Reforma Urbana, e teve como auge a organização popular para exigir direitos na Constituição de 1988, na qual o PT, apesar de uma representação proporcionalmente pequena, demonstrou um enorme potencial de intervenção política, pois conseguia mobilizar milhares de pessoas em defesa de propostas de cunho popular.

A candidatura de Lula, em 1989, só teve êxito por conta dessa mobilização. Nas eleições presidenciais, grande parte da militância que levava o candidato do PT aos mais longínquos lugares do interior e das periferias de nossas cidades era originária ou ainda participante ativa das CEBs ou de outros espaços originados na Igreja Católica.

A queda do Muro de Berlim, a eleição de Collor, o fim da União Soviética e o lançamento do Consenso de Washington abriram a década de 1990. Em nome de uma suposta eficiência foram desmontadas, em maior ou menor grau, as redes de proteção social que atendiam a população mais desprotegida. A hegemonia do pensamento neoliberal e a ofensiva conservadora no interior da Igreja Católica significaram um arrefecimento no pensamento utópico, próprio das CEBs.

Ao mesmo tempo, foi um período de aprofundamento da opção do PT de atuar em todos os níveis da vida política e institucional do país, tecendo as alianças necessárias e vivendo o jogo da democracia representativa em sua plenitude, sem, no entanto, abandonar espaços importantes de debate como o "Fé e Política", ou nos encontros de CEBs, que existem até os dias de hoje.

Com a vitória de Lula nas eleições de 2002, conseguimos dar início às transformações sonhadas por milhares de militantes de todo o Brasil. Combinar crescimento econômico, distribuição de renda, investimentos em educação, saúde e infraestrutura foi o caminho correto para a concretização da promessa de um país mais justo.

Para o futuro, esperamos que a relação de autonomia e respeito que o partido e o governo desenvolveram com os militantes oriundos de movimentos religiosos, seja da Igreja Católica, seja de outras confissões religiosas (Comunidade Judaica, Comunidade Árabe, Comunidades de Terreiro, Evangélicos), continue gerando utopias e sonhos para o Brasil.

Gilberto Carvalho é filósofo e chefe do Gabinete Pessoal da Presidência da República