Internacional

Em 30 anos, o protagonismo global do PT está ligado aos êxitos do projeto democrático-popular latino e sul-americano. Por Valter Pomar

Felizmente, o debate internacional deixou de ser patrimônio de uma minoria e virou tema popular, como vimos na disputa presidencial de 2006 e já estamos vendo nas prévias de 2010. Quem não se lembra de Alckmin atacando a Bolívia? Ou, recentemente, de Serra dando apoio implícito ao golpismo em Honduras?

A política externa do governo Lula ajudou nessa internacionalização do debate político, à medida que recusamos a postura intimidada dos tucanos e percebemos que o Brasil pode e deve jogar um papel destacado nos grandes temas internacionais, inclusive quando se trata de enfrentar os Estados Unidos. A recente visita do presidente do Irã ao Brasil e até mesmo a postura de nosso governo na conferência de Copenhague constituem uma confirmação disso.

Nossa política externa é potencializada por dois fatores "objetivos" e dois fatores "subjetivos". Os primeiros são: o peso geopolítico do Brasil e a crise internacional. Os demais: a tradição nacionalista existente no Itamaraty e a tradição internacionalista do Partido dos Trabalhadores. A isso se agrega a desenvoltura com que lançamos mão da diplomacia presidencial.

Desde sua fundação, o PT vem acompanhando, opinando e atuando na esfera internacional, diretamente ou através dos petistas presentes em governos, parlamentos, movimentos sociais e variadas instituições. Ao longo dos 30 anos de vida do partido, houve mudanças de linha, de ênfase, de métodos e de estilo, cuja análise demandaria mais tempo de pesquisa e um artigo maior do que este. Entretanto, há dois traços de nossa atuação que devem ser destacados.

Um deles é a pluralidade que mantemos na interlocução internacional. Isso deriva, em parte, da pluralidade política e ideológica do partido, que reuniu desde sua fundação, e reúne até hoje, militantes identificados com as mais variadas famílias da esquerda internacional.

A pluralidade de nossa atuação internacional foi acentuada a partir de 2003, quando o PT passou a ter influência na política externa do governo brasileiro. De lá para cá e crescentemente, o leque de nossas relações enquanto partido inclui, também, partidos e lideranças com os quais nosso governo possui algum grau de identidade.

Portanto, não mantemos relações apenas com os que "pensam como nós", mas também com os que, apesar de maiores ou menores diferenças ideológicas, enfrentam na arena internacional problemas políticos similares aos nossos, seja como partido, seja como governo.

Essa pluralidade não implica silêncio acerca de questões espinhosas, tampouco subordinação das posições partidárias aos interesses "de Estado". Ao contrário, há coisas que nosso governo pode fazer (como receber o presidente dos EUA ou o chanceler de Israel) que não impedem o partido de manifestar sua opinião política sobre tais convidados e suas respectivas administrações. Ou questões sobre as quais o partido tem posição há tempos e faz pressão sobre nosso governo, como é o caso do Saara Ocidental e da luta da Frente Polisário. Assim como há temas em que o governo tomou a iniciativa e o partido não tem conseguido acompanhar adequadamente, como é o caso do Haiti.

Outro traço de nossa política internacional é a ênfase latino-americana. Embora tal tradição já estivesse presente antes, o latino-americanismo ganhou mais força e organicidade a partir da fundação, em 1990, do Foro de São Paulo.

Claro que o PT assiste às mais variadas reuniões partidárias, em todo o mundo, como as convocadas pela Conferência Permanente de Partidos Políticos Progressistas da América Latina (Copppal) e pela Internacional Socialista (da qual não somos membros, nem mesmo observadores oficiais). Mas nossa prioridade regional é a América Latina e nosso espaço privilegiado de debate e articulação é o leque de partidos que integram o Foro de São Paulo, no qual somos encarregados da Secretaria Executiva.

Além das relações mantidas pelo próprio partido, o PT tem estimulado relações bilaterais e multilaterais através do Foro de São Paulo, como é o caso do intercâmbio com o Partido da Esquerda Europeia, o Grupo Parlamentar da Esquerda Europeia e os integrantes da Autoridade Nacional Palestina. Achamos que esse método potencializa a região (e não apenas nosso partido e governo) e acreditamos que o aprofundamento de relações interregionais é mais realista e produtivo do que a tentativa de criar organizações que sejam ou se pretendam mundiais.

A experiência recente tem demonstrado o potencial da esquerda na América Latina, que no conjunto conseguiu preservar parte importante de suas forças, num momento em que o socialismo declinava noutras regiões do planeta. A resistência que Cuba oferece, depois do desmanche do chamado bloco soviético, é um exemplo disto.

O potencial da esquerda latinoamericana é confirmado, ao longo dos anos 1990 e adiante, com o surgimento do Foro de São Paulo, a gestação do Fórum Social Mundial e a eleição de uma onda de presidentes progressistas e de esquerda, desde 1998 (Hugo Chávez) até 2009 (Mauricio Funes).

Olhando para trás, podemos ver que em nossa região a luta social, a luta eleitoral, a ação de governo e a atuação partidária interagiram na luta contra o neoliberalismo, de maneira muito mais intensa e eficaz do que em outras regiões do mundo. O PT deu importante contribuição para isso, tanto prática quanto teórica.

Evidentemente, nada ocorreu de maneira linear, uniforme, sem contradições e limitações. Isso fica ainda mais claro agora, em que se trata de coordenar estrategicamente não apenas partidos e movimentos sociais, mas também a ação de governos nacionais e instituições regionais. Para dar conta dessas novas tarefas, num cenário marcado pela crise internacional e por uma contraofensiva da direita, o PT está chamado a ampliar sua incidência em pelo menos dois processos interligados: o debate estratégico e a integração continental.

A onda de governos de esquerda na América Latina e a crise internacional não foram capazes de modificar a natureza do período aberto, ainda nos anos 1980, pela ofensiva neoliberal e pela crise do socialismo. O movimento socialista continua, em termos planetários, num período de "defensiva estratégica".

Um sinal disso é o contraste entre a profundidade da crise internacional e a capacidade que os grandes Estados capitalistas tiveram para evitar, até agora pelo menos, seu transbordamento político-social. Outro sinal é a existência de uma contraofensiva da direita latino-americana, de que fazem parte as bases militares na Colômbia, o golpe de Estado em Honduras, a eleição de Piñera no Chile e a atitude militares estadunidenses frente à catástrofe no Haiti.

Nesse contexto, a esquerda latino-americana busca não perder nenhum governo para a direita, acelerar o processo de integração regional e ao mesmo tempo persistir no caminho  das mudanças estruturais. A questão está em como fazer isso, evitando dois erros: ir além da nossa capacidade de sustentar politicamente os processos e ficar aquém do necessário para que sigamos acumulando forças. Ao revés da famosa imagem: não tão devagar que pareça medo, não rápido que pareça provocação.

Evitar esses erros exige debater a estratégia de luta pelo socialismo na América Latina, ou seja, discutir como passar da condição de governo para a condição de poder e da situação atual, em que estamos melhorando a vida do povo nos marcos do capitalismo, para uma nova situação, em que possamos melhorar a vida do povo nos marcos de uma transição socialista. Um debate que deve levar em conta a experiência do governo da Unidade Popular no Chile de 1970-1973, assim como exige compreender o caráter estratégico da integração continental.

Esse debate já está em curso e nele aparecem todas as diferenças programáticas, estratégicas, táticas, organizativas, históricas e sociológicas existentes na esquerda latino-americana, que algumas vezes se traduzem  debate, sempre recusando qualquer tipo de interpretação reducionista, dicotômica e divisionista.

O reducionismo (dizer que há “duas esquerdas” na América Latina) ajuda politicamente a direita, porque traz implícita a seguinte conclusão: o crescimento de “uma esquerda” depende do enfraquecimento da “outra esquerda”, numa equação perversa que convenientemente tira de cena os inimigos comuns.

Fosse homogênea e uniforme, ou expressa somente em duas correntes, a esquerda latino-americana não apresentaria a fortaleza atual. A continuidade dessa fortaleza dependerá, em boa medida, da articulação entre as diferentes esquerdas. Tal cooperação não exclui a luta ideológica e política, mas essa luta precisa ocorrer nos marcos de uma máxima cooperação estratégica.

A superação do neoliberalismo e também do capitalismo exigirá diferentes estratégias de resistência, de conquista do poder e de construção do socialismo. Não significa dizer que todas as estratégias são válidas, mas significa que o movimento socialista deve recusar a ideia de que exista uma única estratégia válida para todos os locais e tempos. Mas, ao mesmo tempo, os processos nacionais terão fôlego curto se não estiverem articulados numa estratégia continental.

Tanto o PT quanto o governo Lula consideram que a integração regional é um objetivo central de nossa política externa. Nesse sentido, o governo tem buscado acelerar a institucionalização da integração regional, reduzindo a ingerência externa, as desigualdades & assimetrias, seja para atuar internacionalmente como bloco, seja para aproveitar melhor as potencialidades da América do Sul. Essa compreensão de uma integração de amplo escopo constitui o pano de fundo da criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (2004), cujo nome foi posteriormente alterado para Unasul (2007).

O sucesso na luta contra a ingerência externa e a constituição de um bloco fortemente ativo no cenário internacional dependem, no limite, de uma política sustentável e continuada de redução das desigualdades & assimetrias regionais. O que supõe forte investimento brasileiro, nos marcos de uma política mais ampla de "desenvolvimentismo regional" de tipo democrático-popular.

Para que essa política seja bem-sucedida, é necessário afastar o temor de que esteja em marcha algum tipo de "subimperialismo brasileiro" (temor muitas vezes reforçado pela atitude arrogante e predatória de grandes empresas brasileiras). Além disso, o crescente protagonismo global do Brasil deve ser combinado com a reafirmação e ampliação de seu compromisso com a integração regional.

Devemos assumir, portanto, parte importante dos investimentos necessários para a integração, especialmente no âmbito da infraestrutura. Para isso, é preciso que exista no Brasil uma maioria política que perceba as vantagens que o desenvolvimento da América do Sul traz para o desenvolvimento brasileiro. Sem essa maioria, teremos um prejuízo enorme para os processos de integração e uma provável interrupção do reformismo democrático-popular que desde 1998 ganhou espaço na região.

Trata-se de demonstrar, entre outras coisas, que nosso protagonismo global está fortemente vinculado aos sucessos latino e sul-americano; que a integração regional é importante para o êxito do projeto democrático-popular em âmbito nacional; que especialmente no presente cenário de instabilidade mundial os blocos regionais são essenciais.

Além de incidir no debate estratégico e na prática da integração continental, o Partido dos Trabalhadores é chamado a ampliar sua presença em outras regiões do mundo, notadamente a Ásia, a África e os Estados Unidos. Diversas iniciativas já foram adotadas nesse sentido e devem ser objeto de debate e no IV Congresso do partido, convocado a atualizar o documento, aprovado por unanimidade no III Congresso, que orienta atualmente a atuação da Secretaria de Relações Internacionais do PT.

Valter Pomar foi secretário de Relações Internacionais do PT, de 2005 a fevereiro de 2010