O livro Lula na Literatura de Cordel, que lançamos em 1º de agosto de 2008, no Rio de Janeiro, e já em segunda edição em 28 de maio de 2009, em Brasília, abrange um registro muito maior do que apenas a história pessoal e a trajetória política do cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. Traz contribuições preciosas ao entendimento histórico do período político que vai do recrudescimento da ditadura militar, quando a linha dura editou o AI-5 e a esquerda caiu na clandestinidade, ao início do segundo governo Lula. Mas, ao tempo em que tem essa abrangência que extrapola a biografia de Lula, também traz embutido um fato raro na poética brasileira, que é a abordagem diretamente partidária.
Assim como a história política de Lula passa por dentro do PT, mesmo sendo ele anterior ao partido e tendo conseguido uma popularidade e uma expressão política que extrapolaram os limites partidários, a história do PT, seu ideário, seu modus operandi também vão deixando rastros por dentro do livro, visto que seu autor, e da maioria dos poemas nele inseridos, é militante partidário e foi ativista sindical, estudantil e pastoral, inclusive com passagem pela clandestinidade, durante o processo de formação do PT, quando as chamadas "tendências" e/ou correntes cumpriram um papel preponderante na definição dos destinos desse período. Só quem teve presença em todo esse espectro da militância pode conhecer as entranhas da luta popular e contar e cantar com propriedade essa trajetória de tantos fatos e nuances.
É provável que apenas os partidos comunistas tenham sido tão decantados na literatura em geral e na bibliografia política em particular quanto o PT, mas com certeza nenhuma agremiação partidária foi tão explicitamente enfocada na produção artística em geral e na literatura de cordel de modo específico quanto o Partido dos Trabalhadores.
Preparando o terreno político
Na introdução do livro mostramos que os poetas já idealizavam um governante para a Nação cujo perfil pouco depois viria a ser identificado com a figura de Lula. Mas também podemos encontrar registros de uma preparação de terreno para a criação de um partido de perfil popular e democrático.
É o que se pode constatar nos versos do poema "O Pobre Que Vota em Rico", da nossa lavra:
O rico só trata o pobre
No chicote e no trabuco
Eu achei certo, um rapaz
Que me disse em Pernambuco:
Garanto, provo e explico
Que o pobre que vota em rico
Além de pobre é maluco.
(...)
Tem muito pobre que vive
Sem ter um lugar ao sol
Mas vota por mixaria
Chinelo, roupa e lençol.
É como o peixe que arrisca
Saborear uma isca
Mas abocanha um anzol!
(...)
Por isto agora eu convoco
Branco, preto, velho e novo
Pra quando o rico pedir
Responder: Não lhe promovo
Porque me deu um palpite
Que passou a vez da elite
E agora é a vez do povo!
(...)
Já é hora de eleger
Agricultor e operário
Ou mesmo alguém conheça
O nosso sofrer diário
Que vá lutar todo dia
Pra frear a carestia
E aumentar o salário.
O baiano Franklin Maxado, que morava em São Paulo na época das grandes greves, militava em defesa dos trabalhadores.
O seu folheto "O Que o Trabalhador Quer", lançado em abril de 1979, descrevia as lutas contra a carestia, pelo emprego, pelo salário justo, pela reforma agrária e contra a exploração das multinacionais, que precisavam ser enfrentadas pelos sindicatos, mas a pauta não era a dos sindicatos pelegos, era a do sindicalismo combativo e extrapolava os limites da chamada luta trabalhista. Apontava para a necessidade da solução política.
Já no folheto "Lula é o Brasil do Trabalhador", o poeta mostra que aquelas lutas só seriam eficazes se, além do sindicato, existisse o partido político dos trabalhadores. Não bastaria pedir que os políticos mudassem, era necessário mudar de políticos, mudar a forma de fazer política, com os próprios trabalhadores assumindo a política:
Pois nosso sistema injusto
Só agrada aos abastados
Explorando os demais
Os tornando descarados
Aduladores de ricos
Para receber trocados.
E foca diretamente na criação do PT, uma ideia que estava ainda em gestação em meio ao movimento sindical, às Comunidades Eclesiais de Base da Igreja e aos militantes das organizações de esquerda que estavam saindo das prisões ou voltando do exílio.
O poeta já parte desmanchando a ideia de que os partidos socialistas seriam comandados de fora pra dentro, a velha ideia dos tempos em que os PCs tinham um comando internacional, o que dava margem à direita para dizer que os esquerdistas não eram patriotas e estavam a serviço da Cortina de Ferro, ou, como dizia um folclórico comunista de Mossoró, era tudo: "Marxista, leninista, stalinista, estopim de Moscou a serviço de Cuba..."
Maxado prega um partido 100% brasileiro, mas que ia além do socialismo moreno de Brizola, a reencarnação do velho trabalhismo, cujos próceres não vinham da classe trabalhadora:
O PT surgiu pra ser
Uma ideia brasileira,
Um instrumento do povo
Sem a mente estrangeira
Embora socialista
Tem sua própria bandeira.
E segue apontando para a solução política, para a criação do partido como ferramenta de luta:
Além do seu sindicato
O popular deve ter
Seu partido e seus líderes
Para poder se defender
Atacar os tubarões
Que tomam o seu poder.
(...)
Por isso é que o PT
Do povo é a ferramenta
E para o operário
E pro peão que alimenta
O bom tempo pra lutar
Contra os ventos da tormenta.
E sai relacionando diversas categorias de trabalhadores, desconstruindo a ideia de que a classe trabalhadora é formada somente por camponeses de mãos calejadas e operários de macacão:
É pro professor, pro aluno,
Pro camponês, pra bancários,
Pro artista, pro caixeiro,
Pros bedéis funcionários,
Pras domésticas ou pros "boys"
E até pros empresários.
Referia-se, claro, aos pequenos empresários nacionais, que tinham seus espaços achatados pelo grande capital nacional e estrangeiro. Maxado termina mostrando o que a direita brasileira e a grande imprensa, hoje conhecida como PIG Partido da Imprensa Golpista, teimam em não aceitar: que sempre que se fala em Lula também se fala em PT, pois os dois são indissociáveis.
Queria falar de Lula
Terminei falando mais
Do PT e seu programa
Que pra mim está demais
E quando chegar em cima
Não teremos mal jamais.
Para a campanha de 1982, fizemos um poema intitulado "PT Nossa Vez; Nossa Voz", que era cantado por violeiros nordestinos em comícios e reuniões de campanha e foi gravado até por Alceu Valença. As estrofes são montadas sobre um dos estilos de cantoria de viola nordestina, o "martelo alagoano".
Companheiro, o PT é tão sublime
Que com ele um anão vence um gigante
Três formigas são mais que um elefante
Vítimas jogam pra fora quem fez crime
Oprimidos derrotam quem oprime
Dois vassalos derrubam um rei tirano
E por isto precisa um novo plano
Pra seu voto expressar força e verdade
Por TRABALHO, por TERRA e LIBERDADE
Nos dez pés de MARTELO alagoano
(...)
Um partido que nasce do operário
Se firmou no alicerce do país
É um fruto que tem tronco e raiz
Traz a crença e a fé d'um santuário
Em defesa de um mundo igualitário
O PT é o osso e o tutano
É a quebra da casca do engano
Dos que fazem o Brasil feito por nós
É PT nossa VEZ e nossa VOZ
Nos dez pés de Martelo Alagoano
No poema "A Construção do Partido dos Próprios Trabalhadores", de 1980, dávamos o tom do trabalho de educação política voltada para a construção partidária:
E então não passe mais
Manteiga em venta de gado,
Não dê banana a macaco
Nem dê faca e queijo a rato...
Em patrão não vá votar
Pois ele só quer jogar
Sua caçada no mato.
(...)
Existe agora o PT
Que é dos trabalhadores,
Nasceu do ventre das lutas
De operários sofredores
Pra ver se nossa política
Que agora está paralítica
Sai das mãos de exploradores.
(...)
A ação nova que falo
Pra qual convido você
É um Brasil onde o povo
Come bem, trabalha e lê...
Brasil de luta e de flores
Frutos dos trabalhadores
Que estão plantando o PT.
No folheto "A Peleja de Lula com Maluf", feito também durante o processo de formação do PT, num dos gêneros de cantoria chamado "quadrão perguntado", que é um estilo de perguntas e respostas, Lula e Maluf discutem sobre o PT:
MALUF - Para que serve o PT?
LULA - Pra massa se organizar
MALUF - E pra que nele votar?
LULA - Para derrotar você?
MALUF - E pra que serve a TV?
LULA - Para nada com a Lei Falcão
MALUF - E as verbas da educação?
LULA - Vocês roubaram um bocado...
MALUF e LULA Isso é Quadrão Perguntado/Isso é Responder Quadrão.
Num "martelo malcriado" na mesma peleja, Maluf mostra a forma como a burguesia brasileira reagiu ao aparecimento do PT.
Operários pra mim são salafrários
E não devem meter-se a dar palpites,
Pois política é somente pra elites,
Generais, estrangeiros e empresários;
Pois partidos burgueses temos vários;
Mas, partido de pobre, isso é loucura.
Pois partido de pobre na "abertura"
É parti-lo em cabeça, tronco e membro,
Quero antes de 15 de novembro
O PT numa câmara de tortura.
Na campanha de 1982, quando Lula foi candidato ao governo de São Paulo, o poeta João José de Piripiti, provavelmente um pseudônimo, no folheto "A Hora e a Vez do Trabalhador", assim como Franklin Maxado, falou mais do partido que do candidato, com versos como estes:
Já temos nosso partido,
Sem lugar pra explorador
Feito de baixo pra cima,
Onde só conta o labor,
Um partido brasileiro,
A Voz do trabalhador.
O poeta, deslocado do Nordeste, deixa de lado a exigência de rima do cordel que não permite rimar "Ê" com "ER" e diz:
Você já tem seu partido
Ele acredita em você.
É o partido do povo
Contra os donos do poder.
Vote no trabalhador,
Vote certo no PT.
Na campanha de 2002, no folheto "Projeto Lula Brasil A Ruptura", cantávamos o estilo "o que é que nos falta mais?", no qual perguntávamos:
Desde quando, lutando no ABC,
Derrubando mentiras militares,
Resgatando conquistas populares
E essa democracia que se vê;
Desde quando criamos o PT
Com quem vinha das lutas sociais,
Refizemos os rumos sindicais
Que estamos forjando este projeto.
Mas pra o nosso Brasil ser mais completo...
O que é que nos falta mais?
REFRÃO
O que é que nos falta mais,
Pra o Brasil ter justiça, pão e paz?
Uma prova cabal de que, mesmo sendo Lula um fenômeno da literatura de cordel, o PT não deixa por menos, sendo o partido mais decantado nesse estilo poético. É que, em campanhas políticas de vários estados, candidatos apelam para os préstimos dos poetas cordelistas, como podemos constatar nas várias capas de folhetos publicitários e de homenagens a militantes do PT de várias regiões.
O PT continua sendo tema de versos de Cordel e também das cantorias de repente. Mais a favor do que contra, mas é o único partido que tem sido cantado pelos poetas populares, mesmo quando não estão falando diretamente de Lula, personagem que hoje se coloca entre as mais enfocadas na literatura de cordel, ao lado de Lampião, Padre Cícero, Frei Damião e Getúlio Vargas.
Joaquim Crispiniano Neto, jornalista, poeta, cordelista e dramaturgo, é presidente da Fundação José Augusto (RN) e membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel