Política

Trinta anos depois, é necessário voltar olhos aos passos que cumprimos e detê-los sobre mãos que teceram os sonhos que nutriram nossa paixão

Invisíveis dentro do uniforme azul. Os metalúrgicos do ABC só foram percebidos pelo Estado e pela sociedade quando cruzaram os braços, pararam as máquinas na Scania, puseram sua pauta sobre a mesa de negociações e ocuparam o estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, com suas assembleias, para mostrar sua cara e torná-la conhecida pelo conjunto do país.

Emergia ali, depois de dez anos de silêncio, a voz da nova classe operária brasileira. Ela crescera ao longo dos anos sombrios da repressão, do arrocho salarial, das intervenções nos sindicatos, da lei antigreve, da Lei de Segurança Nacional. Converteu-se rapidamente no polo de referência dos setores populares que se opunham de maneira radical à ditadura militar. Uma extensa rede foi-se atando aos pontos de apoio onde trabalhadores, de outras categorias, em todas as regiões do Brasil, resistiam à opressão política da ditadura e à exploração econômica dos patrões.

A nova classe operária brasileira pôs na agenda do país a necessidade urgente de resolver sua principal contradição: ela se encontrava incluída no setor de ponta da economia ­ as montadoras de automóveis ­ e se encontrava excluída de qualquer possibilidade de ação política, em razão do caráter repressivo do regime. Ao buscar resolver essa contradição, com expressivas mobilizações de massa, o movimento operário desenhou um espaço político generoso, que incorporava amplos setores populares: inicialmente de assalariados das fábricas, mas, logo em seguida, os setores pobres do campo: assalariados agrícolas, posseiros, pequenos proprietários rurais ou "colonos" do sul do país; assalariados de classes médias dos grandes centros urbanos; gente das universidades e ligada ao mundo da cultura.

Ao mobilizar forças contra o arrocho, falava para o mundo dos assalariados. Quando se batia contra a repressão e o arbítrio do regime, sensibilizava amplos setores e organizações sociais empenhados nas lutas contra as prisões arbitrárias, contra a violência no campo, contra a carestia, contra a censura à imprensa e às artes, pela anistia, pela volta dos exilados.

O 10 de fevereiro de 1980 realizou um momento de síntese. À medida que se afasta no tempo, vai adquirindo uma dimensão histórica mais precisa aos olhos de quem acompanha a reconstrução democrática da sociedade brasileira. A fundação formal do Partido dos Trabalhadores, no Colégio Sion, produziu algo além do encontro de diferentes vertentes do pensamento e das lutas das esquerdas e de diferentes gerações de militantes socialistas: formulou um pacto político capaz de unificar a ação dessas distintas vertentes e distintas gerações e deu corpo a um instrumento que contribuiu ­ em grande medida ­ para definir os rumos do país nos anos seguintes: o PT.

Trinta anos depois, por um momento, é necessário voltar os olhos para os passos que cumprimos e detêlos sobre as mãos que teceram os sonhos que nutriram nossa paixão até aqui. E deixar a palavra ao poeta para o seu testemunho:

Os invisíveis

Anoitecera o país. E a noite nos reuniu em volta da forja. Por anos, atados ao ritmo seco das máquinas. E já não éramos apenas os ferreiros que manejavam o fole; nem os artesãos de obscuras oficinas: fomos multiplicados pela noite aos milhares dentro do uniforme azul.

Anoitecera o país. E a noite nos dispersou como sementes no bico dos pássaros migradores ­ envenenados por esse doce travo de esperança ­ lançadas ao lombo de ventos e tempestades. E, noturnamente, germinamos em terra alheia...

Anoitecera o país. E a noite dissolveu os versos que cantávamos, denunciando a dor e a sombra, para nos reduzir a uma nação de mudos. Mas tecemos com as pontas dos dedos a rede de rendas que sustentou a vertigem dos sonhos e converteu em gesto a canção ao ouvido sussurrada...

Amanhecemos o país. E porque amanhecemos o país é possível distinguir as cicatrizes e sombras que carregamos no corpo e na alma marcada a ferro pela força ou pela sutil habilidade de quem nos coube combater.

Amanhecemos o país. Recriamos o espaço das ruas ainda sitiados pelo silêncio, escrevemos no muro a palavra que sangrava em nossa boca. Das línguas de terra que cultivamos entre a cerca e a morte no asfalto, ocupamos a terra ociosa e sentamos à mesa dos palácios e perdemos a inocência.

Quem, a essa hora, pode alumiar a pedra que guarda a memória dos nomes em nome de quem desembarcamos aqui? O poeta liberte a luz espantada do verso sobre as mãos e os sonhos de Apolônio de Carvalho, Chico Mendes, Dorcelina Folador, Josimo Tavares, Beth Lobo, Florestan Fernandes, Penha, Nativo da Natividade, Augusto Boal, Lélia Abramo, Carlito Maia, Celso Daniel, Adão Pretto. E a multidão inumerável dos Filhos da Paixão. Trinta anos depois: Partido dos Trabalhadores ­ PRESENTE.

10 de fevereiro, trinta anos depois.

Pedro Tierra (Hamilton Pereira), poeta e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo