Política

David Harvey, Edgardo Lander, Roberto Regalado e Susan George falam sobre o significado do PT para a esquerda e o mundo nos 30 anos do partido

[nextpage title="p1" ]Governo Lula traz reorientação política e econômica e leva o Brasil a combater a hegemonia neoliberal

O crescimento do PT, para além do Brasil, tem uma importância em âmbito global. Quando se atinge o poder, é preciso fazer alianças com capitalistas, assumindo compromissos políticos e econômicos com esses interesses. Mesmo assim, as lideranças desse processo buscam tomar cuidado porque têm um passado ao qual responder. O programa do presidente Lula combina crescimento econômico com mudanças sociais, mesmo que para isso tenha de se aliar ao capitalismo internacional e à direita em nível local. Mas isso não influencia todas as dimensões do governo, como se nota pela política externa, que é um elemento importante.

Acredito que o papel da esquerda é pressionar para garantir mudanças. Por isso, o PT pode contribuir para levar o governo para a esquerda e contribuir com as mudanças em curso hoje na América Latina.

O contexto de mudanças no qual Lula chega ao poder resultou numa reorientação política e econômica das relações externas brasileiras, aproximando muito o Brasil da linha seguida hoje também por China e Índia e outros países importantes do Sul. Assim, penso que o Brasil tem contribuído para combater a hegemonia neoliberal, escapando do controle político, econômico e militar dos EUA e contrapondo-se a ela a partir de novas alianças regionais que priorizam as relações internas ao continente latino-americano, incluindo o Mercosul.

Parece que tem sido importante para o Brasil diversificar as alianças, propondo, por exemplo, uma reconfiguração política do atual G-8 para um G-20. Uma ambição importante do presidente Lula: liderar uma nova configuração das relações internacionais.

David Harvey
, Estados Unidos. Geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana.[/nextpage]

 

[nextpage title="p2" ]O Brasil não representa uma alternativa diante das tendências globais dominantes, o que não quer dizer que um governo do PT é igual a um de direita

Não posso falar com conhecimento sobre a história do PT, mas acredito que o partido foi um dos processos mais genuínos de constituição de organização política construída desde baixo, a partir do movimento sindical, diferentemente das demais formas de resistência à ditadura, representando uma esperança de transformação extremamente importante, que se tornou referência não só para o Brasil, mas para toda a América Latina.

Lembro quando Lula, recém eleito presidente, chegou em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial, e se via a alegria transbordada entre os brasileiros e também entre todos os latino-americanos. Havia uma grande fé de que se estava iniciando um processo de transformações profundas. Hoje a sociedade brasileira percebe que o programa de Lula mudou a qualidade de vida das pessoas.

Mas, entre as opções básicas, realizar uma verdadeira reforma agrária que garanta soberania alimentar ­ um outro padrão agrícola, de diversidade e compatibilidade com a natureza ­ e o padrão produtivo do monocultivo transgênico da Monsanto, infelizmente o governo tem priorizado a segunda. Isso tem consequências: altera a composição das forças políticas e fortalece os setores agroindustriais e financeiros ligados a elas, o que vai criando uma situação em que um governo de direita poderia perfeitamente seguir em frente e não haveria muito o que mudar.

Uma das coisas que se há obviamente que reconhecer é que o Estado brasileiro é muito forte, com uma democracia institucionalizada. O Itamaraty é uma instituição muito potente em termos de formação de pessoal e em sua ideologia de Estado, de modo que se apresenta como um grande órgão orientado mais por uma política de Estado. Não acredito que a política internacional do governo de Lula represente uma política progressista, nem que vá em direção diferente da institucionalidade global, capitalista, devido à tradição do Estado brasileiro, em que a dimensão burocrática e militar são elementos importantes dessa imagem do país como um subimpério que exerce papel hegemônico na América Latina.

Eu, por exemplo, participei como membro da delegação venezuelana nas negociações da Alca. E obviamente a postura do Brasil foi um dos fatores fundamentais para que não se concluísse o acordo. Por quê? Se a postura do Brasil foi de questionamento ao padrão de livre comércio, ausência de democracia e o conjunto de críticas que os movimentos sociais faziam, ou se, ao contrário, foi a defesa dos interesses dos exportadores brasileiros, fundamentalmente a agroindústria, incluindo a Monsanto. A crítica que faziam era de que os EUA deveriam ser consequentes com seu neoliberalismo, com o livre-comércio. Ou seja, se os EUA tivessem aberto seu mercado aos produtos agrícolas brasileiros, o governo de Lula teria assinado a Alca.

Além disso, podemos observar como o governo Lula reagiu à crise financeira. Vê-se claramente que, longe de representar uma postura de questionamento do padrão de concentração, do padrão neoliberal deste capitalismo de cassino, o que fez foi sustentá-lo, inclusive quando se abraçou ao Fundo Monetário Internacional. Ao invés de apoiar a luta da esquerda contra este que é um instrumento para, através do recurso político da dívida externa, impor políticas aos países, o governo entregou o salva-vidas ao FMI, dando-lhe US$ 100 milhões. O mesmo podemos dizer em relação a Copenhague: hoje o Brasil não está representando a postura dos governos do Sul, a menos que aceitemos que o Sul seja hoje mais bem representado pela China ou pela Índia. Obviamente, essa é uma política que não aponta para mudança alguma e, sobretudo, é uma política que representa no fundamental os interesses do capital internacional que está no Brasil, já que obviamente uma parte dos setores mais dinâmicos da economia brasileira está entregue a ele.

Assim, o Brasil não representa uma alternativa diante das tendências globais dominantes ­ o que não quer dizer que um governo do PT seja igual a um governo da direita. Um exemplo disso foi quando a greve petroleira na Venezuela fez com que o governo brasileiro enviasse um cargueiro com gasolina; um salva-vidas num momento de crise muito profunda que significou, primeiro, gasolina para um país produtor que, depois de muitas décadas, não tinha gasolina, mas sobretudo um apoio político que teve impacto. O mesmo se pode dizer no momento em que foram nacionalizadas as instalações da Petrobras na Bolívia. Se houvesse um governo de direita, a Petrobras talvez o tivesse convencido de que era o caso de sair da Bolívia. E houve pressão, sabemos. Por isso, não diria que são todos iguais, mas em termos geopolíticos a política internacional do Brasil não está fundamentada nem apontando para uma direção de questionamento do sistema global.

Edgardo Lander, Venezuela. Sociólogo, é docente-investigador do Departamento de Estudos Latinoamericanos da Escola de Sociologia, professor na Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais, e integrante do Conselho Editorial da Revista Venezuelana de Economia e Ciências Sociais, na Universidade Central de Venezuela.[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]Nestes 30 anos, o PT fundiu luta social e política, combinando unidade com diversidade. E hoje é crucial para a edificação de novos paradigmas socialistas

O Partido dos Trabalhadores do Brasil é promotor e, ao mesmo tempo, produtor do início de uma nova época na América Latina, caracterizada pela intensidade e efetividade da organização, pela mobilização e luta social e pelos espaços institucionais sem precedentes conquistados por partidos, movimentos e coalizões políticas de esquerda e progressistas.

A capacidade de fundir luta social e luta política e de combinar unidade com diversidade torna o PT, desde seus primeiros anos, referência para amplos setores da esquerda latino-americana ­ e de outros continentes ­, que desde a crise terminal da URSS e do campo socialista europeu e da subsequente avalanche universal do neoliberalismo, sentem a urgência de desenvolver novas estratégias, novas táticas e novas políticas de alianças. Esse foi o cerne do êxito da convocatória feita por Lula para celebrar, de 2 a 4 de julho de 1990, o Encontro de Partidos e Organizações de Esquerda da América Latina e Caribe, que deu origem ao Foro de São Paulo, o primeiro e único agrupamento político do mundo no qual convergem todas as correntes ideológicas da esquerda.

Ao longo de três décadas de existência, dentro do PT, entre o PT e outros partidos e movimentos políticos e sociais da esquerda brasileira, desenvolveu-se, e se desenvolve, um crucial e complexo debate sobre qual nova sociedade construir e como fazê-la, à qual, no resto da América Latina, seguimos com a esperança de somar suas contribuições às nossas para, juntos, edificarmos os novos paradigmas socialistas de que a humanidade necessita.

Roberto Regalado, Cuba. Cientista político e diplomata cubano, editor-chefe da revista Contexto Latinoamericano e da coleção homônima, da editora Ocean Sul[/nextpage]

[nextpage title="p4" ]O Partido dos Trabalhadores amadureceu no poder. Mas o Governo Lula precisa ser mais enfático na defesa da taxação de transações financeiras

Penso que Lula e o Partido dos Trabalhadores surgem como uma inovação. Aliás, o Brasil é celeiro de inúmeras inovações que acompanharam o surgimento e o fortalecimento do PT, como o Orçamento Participativo, o Bolsa Família ou as hortas comunitárias em São Paulo, que tratam de questões que estão na raiz da construção de um novo mundo possível, alterando as relações de poder e influenciando a vida de muitas pessoas. Além disso, outro aspecto muito particular do Partido dos Trabalhadores e de Lula é a capacidade de unir as esquerdas. Na França, onde vivo, isso não acontece. No Brasil, Lula conseguiu unificar quase toda a esquerda, sem para isso precisar construir um partido que substituísse os já existentes, e, quando venceu as eleições, todos se alegraram. Assim, penso que o Partido dos Trabalhadores amadureceu no poder. É claro que quando se disputa o poder é necessário fazer alianças e jogar um jogo já muito antigo, que não foi criado por quem o joga; mesmo assim, vejo um partido maduro que foi, em si, uma inovação e inovou muito na política brasileira.

Em minha avaliação, o governo brasileiro tem tido um papel destacado no contexto internacional, mas, ao mesmo tempo, penso que seria possível enfrentar com maior ênfase alguns temas relevantes. Eu vivo o cenário internacional, minha ação cotidiana leva em conta as relações de poder em âmbito internacional, e por isso percebo que o governo brasileiro ainda trata com timidez algumas questões, como a ambiental, por exemplo. Nesse aspecto, deveria haver um maior compromisso com os pequenos e médios agricultores, fortalecendo um modelo de produção de outro tipo. Outro exemplo é a taxação das transações financeiras em âmbito internacional. O governo brasileiro já taxa essas operações financeiras no Brasil, mas falta defender de forma mais enfática a adoção de medidas que taxem as transações internacionais, o que seria muito importante.

Susan George, França. Licenciada em Filosofia pela Sorbonne e doutora em Política pela École dos Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). É dirigente da Attac-França (Associação pela Taxação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos) e presidente do Conselho de Administração do Transnacional Institute (Amsterdã)

Os depoimentos de Harvey, Lander e George foram concedidos a Juliano Medeiros na 10ª edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre[/nextpage]