Internacional

A Concertação levou o país a alcançar novo patamar de desenvolvimento, mas a direita voltou ao poder

A Concertação Democrática realizou importantes avanços e fez o país alcançar outro patamar de desenvolvimento. E mesmo com a alta popularidade da presidenta Bachelet, a direita chilena voltou ao poder, com pouco mais de 51% dos votos

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A direita chilena voltou ao governo por via democrática pela primeira vez em 52 anos, após uma eleição relativamente apertada, na qual obteve pouco mais de 51% dos votos. Para o leitor brasileiro, emergem pelo menos duas interrogações: qual é o balanço de vinte anos de governos da Concertação Democrática e quais foram as causas da derrota eleitoral, considerando a enorme popularidade da presidenta Bachelet?

É necessário não esquecer que essas duas décadas foram precedidas de uma ditadura neoliberal de dezessete anos cujo pretexto era a refundação do capitalismo chileno. Para tanto, essa ditadura impulsionou uma drástica abertura externa, uma rápida liberalização financeira e a privatização generalizada de empresas - incluindo o sistema previdenciário  -, com a única exceção relevante da empresa Codelco, resultado da nacionalização do cobre durante o governo de Allende.

Essas mudanças fizeram surgir uma nova economia exportadora baseada em recursos naturais que, em 1989, já estava consolidada. Paralelamente, permitiram o desenvolvimento acelerado de grandes grupos econômicos nacionais que concorrem no mercado mundial, mas também controlam cadeias de terceirização e são donos das duas ou três grandes empresas que dominam os mercados locais. Todas essas transformações obtiveram sua consolidação mediante a ilegítima Constituição de 1980 e o sem-fim de leis e normas que foi sendo acrescentado.

Os violentos ajustes estruturais, a concentração do poder econômico e a repressão à sociedade civil provocaram um rápido aumento da pobreza, que chegou a representar 45% da população em 1987, acompanhada de uma aguda deterioração da distribuição de renda. De fato, entre 1971 e 1987, o decil mais rico da população aumentou sua participação de 31% para 45% da receita nacional. Todas essas mudanças fi zeram que o Chile perdesse pelo menos quinze anos de crescimento. Em consequência, se em 1970 o PIB per capita do Chile era 48% superior ao do Brasil, em 1989 foi 5% inferior (em dólares de 2005). Somou-se a esse quadro de desigualdade uma extrema fragilidade da economia chilena, que em 1989 apresentava uma inflação anual de 21,4%, assim como uma dívida externa e uma dívida pública equivalentes a 47% e 45% do PIB, respectivamente.

Balanço de duas décadas  

Desde 1990, os governos da Concertação assumiram três grandes objetivos: expandir a democracia, reduzir a pobreza e aumentar a equidade social, sem deixar de impulsionar um crescimento com estabilidade macroeconômica. O propósito era avançar de uma matriz exportadora baseada em baixos salários e depredação do meio ambiente para outra mais sustentável, baseada na inovação tecnológica e numa força de trabalho de qualidade mundial bem remunerada.

Não era um projeto neoliberal, e sim pós-neoliberal. No entanto, não era uma revolução o que havia triunfado no Chile, e sim uma transição democrática, que duraria mais de uma década. Persistiam ainda enclaves autoritários e o governo se confrontava com uma direita defensora da ditadura, que havia conseguido um empate artificial no Senado, mesmo sendo minoritária em votos. Apesar de tudo isso, o balanço do que foi realizado durante suas duas décadas de governo mostra que a Concertação conseguiu realizar importantes avanços, muito embora sua obra tenha sido incompleta e padecido de importantes falhas.

No aspecto político, a Concertação Democrática desmontou progressivamente os componentes autoritários mais acentuados da Constituição de 1980, expandiu os direitos cidadãos, aumentou a transparência pública e modernizou o sistema de justiça penal, que havia permanecido intocado desde o final do século 19. Paralelamente, realizou um importante avanço no campo dos direitos humanos. Não foi por acaso que os governos democráticos chilenos nunca promulgaram leis de "ponto final" nem de "obediência devida". Na atualidade, há uma centena de pessoas condenadas e mais de 600 processadas, a maioria pertencente às Forças Armadas. Nada disso teria sido possível sem a mobilização das organizações de direitos humanos.

Contudo, a Concertação Democrática não eliminou o sistema eleitoral binominal que distorce a expressão democrática do povo nem mobilizou a cidadania para substituir ou reformar a Constituição de 1980 com disposições mais democráticas. Do mesmo modo, a coalizão de centro-esquerda não conseguiu modificar a legislação para equilibrar as relações de poder entre empresários e trabalhadores,  entre grandes e pequenas empresas, ou entre estas e os consumidores. Isso teve profundas consequências econômicas, sociais e políticas.

No aspecto econômico, a coalizão conseguiu - entre 1989 e 2009 - que o PIB per capita se multiplicasse por 2,2. Embora não seja asiático, o crescimento médio dos últimos vinte anos foi o mais elevado em toda a história independente do Chile. O resultado foi que, se em 1989 o PIB per capita do Chile era 5% inferior ao do Brasil, em 2009 chegou a ser 87% superior (em dólares de 2005). Nesse período, a taxa de investimento passou de 18% para 29% do PIB e a dívida pública decresceu de 45% para 7% do PIB. Da mesma forma, a inflação caiu de 27% em 1990 para uma média de 3,2% nos últimos dez anos. Tudo quanto foi exposto aumentou a robustez da economia chilena, reforçada ainda pela criação do fundo soberano com os excedentes do cobre, uma iniciativa desconhecida na história do Chile.

Por que o Chile não se integrou ao Mercosul e quais as consequências do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos? Há muitos aspectos a esclarecer. Em primeiro lugar, pelo fato de já ser uma economia aberta em 1990, sua integração ao Mercosul significava duplicar as tarifas, o que traria consequências inflacionárias sem estimular um desenvolvimento industrial sustentável. Em segundo lugar, a "associação" com o Mercosul foi plenamente bem-sucedida, dado que entre 1989 e 2009 sua participação no comércio exterior do Chile aumentou de 12% para 16%, enquanto com os EUA caiu de 19% para 14%. Em terceiro lugar, o Chile fez acordos com a União Europeia, com a China e com numerosos países latino-americanos, entre os quais Venezuela, Bolívia, Equador e da América Central. Nenhum desses acordos impõe restrições que impeçam o país de construir um Estado de Bem-Estar, impulsionar uma política tecnológica de grande escala, um papel proativo do setor público nem de se integrar política e economicamente com a América Latina e a América do Sul. A participação ativa do Chile na constituição da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) demonstrou isso.

Não obstante esses avanços econômicos, a Concertação não reduziu a heterogeneidade produtiva, não pôde expandir o papel das pequenas e médias empresas nem atenuar a influência dos grupos econômicos. Da mesma forma, não foi possível desenvolver uma política tecnológico-industrial que compensasse a tendência à valorização cambial provocada pelas volumosas exportações de cobre (a chamada "síndrome holandesa").

No plano social, os governos de centro-esquerda alcançaram impressionantes avanços na redução da pobreza e no aumento do bem-estar. Entre 1989 e 2009, o salário mínimo real se multiplicou 2,3 vezes, reduzindo a distância em relação ao salário médio. Por outro lado, o gasto social per capita real aumentou 2,7 vezes, o que expandiu a função de proteção do Estado em uma escala sem precedentes na história do Chile. Junto com a expansão do emprego, esses dados explicam que a população abaixo da linha de pobreza tenha diminuído de 45% para 13% entre 1989 e 2006. Isso se refletiu no Índice de Desenvolvimento Humano elaborado pelo Pnud: entre 1989 e 2009, o Chile passou do 7° para o 1º lugar na América Latina e Caribe.

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No entanto, os governos democráticos não tiveram o mesmo desempenho em matéria de distribuição de renda. Na verdade, entre 1990 e 2006, os 10% mais ricos reduziram sua participação na receita nacional de 43% para 39%. Isso representa um avanço, mas é evidente que o Chile continua sendo um dos países mais desiguais da América Latina e do mundo. Essa foi uma das grandes deficiências da Concertação Democrática. Embora tenha aumentado a proteção social, não foi capaz de equilibrar as relações de poder a favor de trabalhadores, consumidores e pequenos empresários. Assim como não houve uma reforma tributária que reduzisse a regressividade dos impostos no país, elevando ao mesmo tempo a carga tributária em relação ao PIB.

Causas da derrota  

A causa imediata da derrota de 2010 foi a desastrosa campanha eleitoral que não aproveitou a enorme popularidade da presidenta Bachelet. Cometeram-se erros de todo tipo, entre os quais sobressai a decisão de não realizar eleições primárias, o que provocou o auto-afastamento de três candidatos presidenciais de origem socialista. Além disso, a Concertação não impulsionou - como fizera outras vezes - um programa progressista baseado na participação cidadã, que teria servido para articular melhor seu posicionamento nas eleições. Apesar de tudo, a Concertação perdeu por muito pouco.

É evidente, porém, que os problemas não se limitaram aos erros de uma campanha eleitoral. O certo é que, desde o final dos anos 1990, a Concertação Democrática foi reduzindo sua capacidade transformadora, sofreu uma crescente dispersão política e foi perdendo potencial de atração do eleitorado, especialmente de uma massa de jovens maiores de 18 anos que optaram por não se inscrever nos registros eleitorais por não verem na política um espaço de cidadania e participação.

A causa de fundo reside em três problemas estratégicos que foram se acumulando ao longo de duas décadas. Primeiro, os partidos políticos tenderam a se acomodar dentro dos confins do Estado, perdendo progressivamente o contato com a sociedade civil. Por um lado, muitos dos militantes se tornaram funcionários públicos, os quadros se transformaram em autoridades e os intelectuais se profissionalizaram. Por outro lado, a Concertação não soube recuperar a liderança das universidades públicas nem restabelecer meios de comunicação alternativos que representassem o pensamento do centro e da esquerda. A direita, ao contrário, aproveitou sua oportunidade. Construiu partidos ideológicos com quadros eficientes na ação política. Isso foi possível porque criou uma importante rede de universidades particulares e manteve o controle dos principais meios de comunicação.

Segundo, os partidos do centro e da esquerda não encontraram uma estratégia adequada para combinar governabilidade com a mobilização social de setores populares de modo a representar e defender seus interesses. Em particular, para o Partido Socialista, pesou muito a percepção de que entre 1970 e 1973 a mobilização popular desbordou o governo de Allende, gerando condições para um clima de ingovernabilidade.

E, terceiro, a complexidade das tarefas governamentais requereu uma tecnocracia, no seio da qual ganhou peso crescente um pensamento de tipo social-liberal, que sempre privilegiou políticas públicas amistosas com o mercado, subestimando a capacidade do Estado de realizar uma gestão eficiente. Ainda que com uma influência desigual no setor público, o liberalismo teve sua máxima expressão na hegemonia do Ministério da Fazenda, que, no último período, não teve contrapeso. O grande problema foi que os partidos não puderam articular opções alternativas de inspiração socialista, social-democrata e social-cristã. Em vez disso, estabeleceram alianças instrumentais com essa tecnocracia liberal, transformando às vezes a necessidade em virtude.

Vinte anos de governos democráticos mudaram radicalmente a cara do Chile. Mas, mesmo tendo realizado importantes avanços econômicos e sociais - especialmente na última década -, a soma desses três erros estratégicos fez com que a coalizão perdesse força e consistência, debilitando sua capacidade de superar diferenças e chegar a novos acordos. Tudo isso reduziu seu potencial para impulsionar uma segunda geração de mudanças democráticas e uma nova onda de políticas públicas para a mudança social e o desenvolvimento produtivo.

Agora, do lado da oposição, as forças de esquerda e de centro terão de aprender a reconstruir seus partidos, enriquecer suas raízes ideológicas sem esquecer sua herança histórica, promover uma nova geração de lideranças e quadros, assim como reconstruir uma aliança de centro-esquerda mais progressista para conquistar o governo em 2014. As derrotas são amargas, mas são também uma fonte de aprendizagem e de reconstrução de liderança. A esquerda e os progressistas do Chile saberão encontrar seu caminho.

Alvaro Díaz é economista, ex-embaixador do Chile no Brasil

Tradução: Celina Lagrutta

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