Entrevista com Nilcéa Freire, à frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
Entrevista com Nilcéa Freire, à frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
Entrevista com Nilcéa Freire
À frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire fala das ações do governo federal, das candidaturas femininas ao mais alto cargo nas eleições em 2010 e do longo caminho para reduzir as desigualdades de gênero
O fato de termos duas candidatas mulheres à Presidência da República muda o que no debate eleitoral?
A presença de duas mulheres entre as alternativas para a renovação no Palácio do Planalto reposiciona o debate sobre gênero no país. Sem a ilusão de que esse fato signifique a extinção da situação de desvantagem feminina em nossa sociedade, ele desloca a reflexão sobre essa temática para um outro espaço. A primeira coisa a ser considerada é que o “clima” de novidade em torno das candidaturas femininas já é revelador da “estranheza” que elas causam à sociedade. Ainda que cada vez menos admitido, o lugar das mulheres, no imaginário social, não é no poder.
Pesquisa realizada pelo Ibope/Instituto Patrícia Galvão/Cultura Data, com o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em 2009, revelou que 83% dos entrevistados/as acreditam que a presença de mulheres no poder melhora a política e 73% confirmam que a população brasileira ganha com a eleição de um maior número de mulheres. Esses dados, que aparentemente contrastam com a presença minoritária de mulheres nos parlamentos e em postos do Executivo, na verdade evidenciam um processo em curso. Ainda que se reconheça como positiva a presença das mulheres na política e no poder, as condições para que isso aconteça não estão dadas.
Outro dado interessante é perceber como a fala geral a respeito das/os candidatas/os parte de um olhar quase sempre sexista: os mesmos atributos, aplicados a homens ou mulheres, ganham sentidos diferentes. Ser considerados “duros, sérios” no caso dos homens é atributo positivo, enquanto nas mulheres pode ser negativo.
Acredito que o processo eleitoral de 2010 deverá ser objeto de observação de todos que se dedicam aos estudos de gênero. Por isso a SPM lançou edital para financiar pesquisa que acompanhe e analise o processo eleitoral de 2010, incluindo a percepção do eleitorado sobre as candidaturas femininas de um modo geral e o comportamento da mídia com relação a essas mesmas candidaturas.
A senhora acha que esse processo poderá estimular a participação da mulher na política?
Tenho a esperança de que sim. Na verdade, penso que o longo processo de consolidação da democracia brasileira só se completa e se efetiva com a inclusão de mulheres e de representantes de nossa diversidade étnica nos espaços de decisão na mesma proporção de sua representação demográfica na sociedade. Ampliar a participação das mulheres na política é, portanto, uma questão da democracia brasileira.
Não é razoável que em um país onde as mulheres são pouco mais de 50% da população elas sejam menos de 10% nos espaços dos parlamentos, por exemplo. Essa representação desigual torna esses espaços pouco acolhedores às mulheres. Estabelece-se então um círculo vicioso em que as mulheres não são estimuladas a participar e, dessa forma, o “espaço” da política segue subordinado aos códigos de conduta masculinos.
Penso que, à medida que o processo eleitoral avance, as mulheres poderão reconhecer através das candidaturas femininas as próprias possibilidades: “Se uma mulher pode disputar a Presidência de um país, por que eu não posso disputar também o meu espaço?”
A mulher brasileira vota em mulher?
A questão é muito mais complexa que isso e está relacionada aos papéis que ainda hoje são atribuídos a homens e mulheres na sociedade.
É preciso desconstruir definitivamente o paradigma do homem provedor e da mulher cuidadora. Esse paradigma determina campos de atuação masculinos e femininos. Muito embora as mulheres sejam cada vez mais as provedoras “solidárias” ou “solitárias” dos lares, essa lógica ainda contamina suas escolhas. Assim, com uma certa frequência, não há uma identificação automática entre aquela mulher que está presa à lógica dos cuidados com uma mulher que pleiteia dividir/invadir o espaço público com os homens.
Quando cursei a faculdade de Medicina, cansei de ouvir pacientes dizendo que preferiam se tratar com homens, porque eles seriam, em sua opinião, melhores profissionais. Num momento em que ainda havia poucas mulheres exercendo a medicina, e esse era portanto um espaço majoritariamente masculino, parecia razoável ao senso comum que os homens, até por seu peso numérico, fossem melhores médicos. Entretanto, temos hoje muitas médicas – em 2007 elas obtiveram mais de 51% dos registros do Cremesp – e já não se vê aquela discriminação por parte dos pacientes. Penso que essa é uma boa ilustração de como as mulheres ainda se sentem na hora de decidir seu voto. É preciso, entretanto, que haja mulheres candidatas e que essas candidatas tenham condições mínimas para participar das eleições, o que quase nunca acontece.
A “minirreforma” eleitoral aprovada no ano passado criou alguns mecanismos para fortalecer a inclusão das mulheres nos processos políticos formais. Garantir a adequada aplicação dos 5% do Fundo Partidário e de 10% do tempo de propaganda partidária, além da observância do preenchimento das cotas, poderá contribuir para que as mulheres se sintam estimuladas a se candidatar com condições reais de se elegerem. Nesse processo, as instâncias de mulheres dos partidos políticos, assim como a sociedade civil em geral, deverão cumprir o papel fundamental de garantir a observância dessas novas regras.
Em sua opinião, a quais temas o eleitorado feminino é mais sensível? O que esperam as mulheres brasileiras de seus governantes?
As mulheres vivenciam o cotidiano de maneira diversa dos homens. São elas que fazem o supermercado da família, levam as crianças para tomar as vacinas, fazem suas matrículas na escola e têm de se deslocar com frequência, mais de uma vez por dia, entre casa, trabalho, escola dos filhos e filhas, para dar conta das tarefas domésticas e de suas obrigações laborais. Portanto, todos os temas que dizem respeito a esse cotidiano são muito “sensíveis” às mulheres.
Além disso, no Brasil de 2010 quase 50% da força de trabalho é feminina, portanto as questões relativas à conciliação entre trabalho e família ocupam certamente lugar de destaque nas preocupações das mulheres, entre elas a questão das creches públicas e da infraestrutura urbana. O binômio violência-segurança pública, sobretudo nos grandes centros urbanos, é também uma questão muito sensível às mulheres.
Um grande contingente de mulheres chefes de família estará atento às condições que o Estado precisa assegurar para que elas tenham garantia de emprego e geração de renda.
Em nosso entendimento, as candidaturas, para se viabilizarem, deverão estabelecer um diálogo específico com o eleitorado feminino, posto que este cumprirá um papel estratégico nesta eleição.
Qual seria o caminho para aprofundar e radicalizar as políticas voltadas para as mulheres?
Acredito que estamos no caminho. Garantir uma institucionalidade forte para formular, coordenar e implementar políticas para as mulheres e promover a incorporação da perspectiva de gênero em todas as políticas setoriais ainda são requisito fundamental para a consolidação e o aprofundamento das políticas para as mulheres. Nesse sentido, o presidente Lula deu mais um passo com a recente transformação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres em órgão essencial da Presidência da República, tal como a Casa Civil e a Secretaria Geral. Ainda do ponto de vista institucional, é preciso consolidar a existência de organismos governamentais de políticas para as mulheres em estados e municípios, conformando uma rede nacional que ofereça capilaridade às políticas e iniciativas definidas centralmente. Temos hoje no Brasil 24 organismos em nível estadual e cerca de trezentos em nível municipal, enquanto em 2003 contávamos com apenas treze entre estruturas estaduais e municipais. Ampliamos, dessa forma, nossa capacidade de implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. No entanto, é preciso avançar tanto numericamente quanto no fortalecimento político desses organismos.
Por outro lado, é preciso dar escala às iniciativas de maneira que, de fato, elas possam produzir um impacto positivo na qualidade de vida das mulheres brasileiras. Programas como o “Gênero e Diversidade na Escola”, que capacita professores e professoras da rede pública para lidarem com as temáticas de gênero, raça/etnia e orientação sexual, precisam ser massificados para que produzam mudanças reais no cotidiano das escolas.
Tenho mencionado três desafios que considero importantíssimos para agora e para o futuro próximo.
Primeiro, a eliminação das desigualdades existentes entre as próprias mulheres. A intersecção entre racismo e sexismo produziu ao longo dos anos uma perversa exclusão das mulheres negras, colocando-as como um dos segmentos mais vulneráveis na pirâmide social. Em segundo lugar, o estabelecimento de um maior equilíbrio entre as tarefas vinculadas à produção e à reprodução social, hoje praticamente exclusivas das mulheres. A chave é a corresponsabilidade entre Estado, governos, sociedade, homens e mulheres. As mulheres não podem mais arcar sozinhas com todo o custo que a manutenção da vida exige. Esse é um debate que o mundo inteiro está fazendo e sobre o qual o Brasil precisará se debruçar o quanto antes, sob o risco de comprometer seu processo de desenvolvimento. Em terceiro, a ampliação da presença das mulheres nos espaços de poder e tomada de decisão, sem o que temas como os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres seguirão sendo tratados única e exclusivamente na perspectiva da proteção à maternidade.