Política

A liderança de Lula incentiva a desconstrução de mitos liberais do passado e estimula nova narrativa com base no socialismo democrático

A consolidação de Lula como o presidente mais popular da República brasileira, além de ser central para a disputa do futuro que está sendo travada nas eleições de 2010, incentiva a desconstruir os mitos liberais sobre o passado e a pensar uma narrativa histórica tendo por base os valores do socialismo democrático

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Ao tomar posse como presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, em um discurso justamente famoso, colocou-se como missão destruir o legado da Era Vargas. Ao repor Vargas assim no centro da história presente, um forte simbolismo foi criado: tratava-se de erradicar da vida e da imaginação brasileiras uma certa tradição dos direitos sociais das classes trabalhadoras, a potência desenvolvimentista do Estado brasileiro, além de uma cultura que vinculava nação, soberania e desenvolvimento.

O alvo central, sabemos, eram o PT, a liderança pública de Lula, os partidos de esquerda e centro-esquerda, a CUT e os movimentos sociais. Mas era como se, através do ataque à herança de Vargas, o neoliberalismo propusesse trocar o tripé democracia, direitos e Nação pela outra combinação entre democracia, mercado e globalização como solução para o impasse brasileiro.

No dia 22 de janeiro de 2010, ao inaugurar a sede do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, em São Paulo, falando em um auditório que ganhou o nome de Vargas, o presidente Lula afirmou: "Muitas das coisas boas que temos (devemos) à coragem de Getúlio Vargas, à visão de Estado que tinha Getúlio Vargas. Estamos convencidos de que Getúlio prestou esse serviço ao Brasil. Lamentavelmente, uma parte da elite brasileira, inclusive uma parte da elite intelectual, (vive) inconformada porque não conseguiu ganhar o golpe de 32 que chamam de revolução. Aquilo foi uma tentativa de golpe. Não se conformam. É muito triste aqui em São Paulo a gente não encontrar uma rua com o nome de Getúlio Vargas" (Carta Capital, 10 de fevereiro de 2010). E mais adiante completou: "Eu tenho divergências com Vargas na questão da estrutura sindical (...) mas eu sou capaz de ter divergências com um companheiro e não ver só defeito, ver as virtudes que a pessoa tem. Eu acho que Getúlio foi um excepcional presidente deste país".

Não é casual, nesse sentido, que o ensaio histórico do companheiro Emir Sader que abre o belo livro Entre o Passado e o Futuro, organizado por ele e pelo companheiro Marco Aurélio Garcia, tenha o nome de "Brasil, de Vargas a Lula". É como se a nova cultura da esquerda brasileira procurasse reposicionar Vargas, a derrota nacional-desenvolvimentista em 1964 em uma narrativa de sentido que criasse um elo entre as esperanças de transformação alimentadas no passado e as tradições que se inscrevem na nossa imaginação de futuro.

De fato, as agendas, os símbolos e até "os fantasmas da Era Vargas" estão bem vivos na conjuntura brasileira, que opõe novamente a forte retórica liberal do PSDB e dos conservadores brasileiros ao mundo político nacional, popular e democrático. Se Lula é "populista" (uma liderança personalista de tipo carismático, como diagnostica FHC), como explicar, então, esse fenômeno da passagem de sua liderança pública para Dilma Rousseff ? Não é exatamente pela razão contrária, pela força das mediações políticas, sociais e culturais que sustentam a liderança pública de Lula? Os liberais acusam Dilma e o PT de ressuscitarem o Estado forte e interventor do nacional-desenvolvimentismo em seu programa. Ora, o programa neoliberal não se baseava justamente em uma hiperconcentração autoritária de poder e em uma fortíssima intervenção beneficiando os capitais, em particular os financeiros?

Não se fazem representar no centro da coalizão do governo Lula o PCdoB (com sua tradição de um socialismo nacional e popular), o PDT (que cultiva legitimamente a tradição de Leonel Brizola e de Vargas), o PSB (que tem na herança de Arraes em Pernambuco uma das suas lideranças mais prestigiosas)? Os direitos do trabalho ­ o emprego, a carteira de trabalho, a valorização do salário mínimo, da cobertura previdenciária ­ não estão no centro da popularidade do governo Lula e do apoio maciço das centrais sindicais de diferentes coloridos e tradições?

A política externa soberana e a retomada do latino-americanismo não faziam parte também da tradição nacional-desenvolvimentista? E por fim: será mero acaso que a identidade político-intelectual de Dilma Rousseff tenha se dado em estreito contato com a tradição acadêmica da Economia da Unicamp, formada através do diálogo crítico de Maria da Conceição Tavares com a grande tradição cepalina de Celso Furtado?