Sociedade

Entrevista com Rafaela Leuchtenberger, diretora do Fundo Deops do Centro de Acervo Permanente do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Além de preservar a história, Acervo público tem tido também a função de auxiliar nos processos de reparação pela perseguição que sofreram cidadãos e cidadãs durante os anos duros da ditadura militar.

Foto: Marcelo Lopes

Na zona norte da capital paulista, o Centro de Acervo Permanente do Arquivo Público do Estado de São Paulo conta com cerca de 7 mil metros lineares de documentação proveniente do Poder Executivo paulista, de arquivos privados, cartoriais, municipais e do Poder Judiciário.

Além de preservar a história, tem tido também a função de auxiliar nos processos de reparação pela perseguição que sofreram cidadãos e cidadãs durante os anos duros da ditadura militar.

Uma importante parte dessa história foi encontrada em fevereiro passado, em uma saleta de uma delegacia de Santos (SP). Essa documentação inclui documentos de escravos do século 19, e muitas fichas e dossiês produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) nos anos 1960.

Rafaela Leuchtenberger, diretora do Fundo Deops do Centro de Acervo Permanente, nos mostrou parte do acervo e conversou sobre sua importância.

Qual a importância do Arquivo do Estado e como ajuda nos processos de reparação?

Rafaela Leuchtenberger: Em 1991 a documentação produzida pelo Deops passou da Polícia Federal para a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo. São 1.173 metros lineares de documentos, 149 mil prontuários, quase 13.600 dossiês e 1,5 milhão de fichas. É uma documentação bastante extensa, mas poderia ser muito maior. Encontramos alguns vazios, às vezes uma página, às vezes um dossiê inteiro. Não sabemos a quantidade de dossiês produzidos, mas, como foram organizados por fichas remissivas, por elas percebemos que a documentação é bastante incompleta. Um dos pontos que diferenciam nosso acervo dos de outros estados é que não temos dossiês temáticos. Eles são organizados por códigos alfanuméricos, sua lógica temática não é explícita, como “dossiê comunismo”, “dossiê anarquismo”.

Essa documentação, de 1991 a 1994, ficou disponível apenas para as famílias e pessoas que tinham sido fichadas, que a utilizavam para processos de reparação. A partir de 1994, com o debate social que se travou, foi montada uma comissão estadual que decidiu que a documentação seria aberta a partir da assinatura de um termo de responsabilidade por parte do pesquisador.

Em termos de atendimento ao público, trata-se de um dos poucos lugares do país onde a documentação é completamente aberta. Desde 1991, atendemos a quase 4 mil pedidos de reprodução de documentos de pessoas que foram fichadas no período da ditadura militar e querem entrar com um processo contra o Estado.

O que foi encontrado este ano em Santos?

O delegado Waldomiro Bueno informou o Arquivo Público do Estado que havia uma documentação no Palácio da Polícia em Santos que integrava nosso acervo. Segundo o delegado, havia documentos do Deops, do Departamento de Comunicação Social, da Polícia Técnica e até mesmo da polícia do século 19 referente a escravos, da qual ainda não localizamos nada.

Era uma sala pequena, com escaninhos de madeira do chão ao teto, que possivelmente foi o que preservou os papéis.

Depois dos procedimentos burocráticos, ao avaliar a importância dos documentos, montamos uma equipe de emergência para realizar a transferência imediatamente para São Paulo. O Arquivo do Estado, até assinar o termo de transferência, manteve-se como depositário fiel do conjunto documental encontrado, que agora está em quarentena num processo de higienização de seus 80 metros lineares de documentação, composta por cerca de 10 mil prontuários.
Mas o que tem nessa documentação?

Encontramos fichas de Marighella, Lamarca, Luís Carlos Prestes, Lula, Chico Buarque, entre outros. Os documentos, em muitos casos, tratam de registros de passagens dessas pessoas pela cidade, algum evento, palestra, de que participaram. E uma coisa muito comum na documentação do Deops são as muitas cópias, ou seja, troca de informação entre as delegacias.

Esse material corresponde a quanto da história que ainda não foi revelado?

O mais rico é descobrir que há documentação do Deops que não está aqui. Em 2009 fizemos um recolhimento, em Jaborandi (SP).

Um recolhedor de cana, estudante de História, encontrou fichas e prontuários em uma casa abandonada. Ele levou quase 80 fichas e documentos a um professor, que se interessou, e o Arquivo foi comunicado. Como o material estava em mãos de particulares, só depois de um ano conseguimos mandato para buscá-lo. Recebemos a documentação que havia sido recolhida, mas a casa encontramos reformada e, portanto, parte do material foi perdida.

Em outros casos, ouvimos falar que já foram encontrados documentos enterrados, em terrenos particulares. Muitos delegados podem ter retirado peças ou mesmo dossiês inteiros de suas delegacias.

Todo documento produzido pelo Estado, depois de determinado tempo, vem para o Arquivo do Estado, segundo a lei. Mas, após essa descoberta e de outros episódios em que foram localizados documentos relacionados às perseguições que sofreram vários cidadãos brasileiros, é possível que haja mais documentos perdidos e escondidos.

O Projeto Memórias Reveladas, nacionalmente, tem uma campanha de entrega de materiais, denúncias. Mas é bem recente a discussão de como fazer para recuperar essa parte da história. A importância também está em mostrar que podem existir documentos em outros lugares que devem vir para cá, para serem estudados e pesquisados. Pelo pouco que pude manipular do material, há documentos diferentes e novos em relação ao que já tínhamos. As pessoas que vinham estudar em Santos, um centro político e econômico muito importante e de grande circulação, percebiam que a documentação era fragmentada e havia pouco material. Os estudos desse período poderão ser enriquecidos.

Quando essa documentação estará disponível para consulta?

É difícil mensurar o tempo, pois, devido ao estado de conservação, a documentação precisa passar por várias etapas de tratamento, que vão desde a higienização até a identificação do  material. O ideal seria termos uma equipe maior para realizar esse tratamento, mas acreditamos que em um ano seja possível dar acesso à documentação.

Fernanda Estima é editora assistente da revista Teoria e Debate