Uma possível "nova época asiática" e a discussão da atualidade ou não das teorias de Adam Smith, Marx e Schumpeter são colocadas em cena por Giovanni Arrighi, ao rastrear o que chama de "turbulência global"
A Editora Boitempo lançou, em português, uma alentada obra de Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim. Esbanjando erudição, Arrighi, segundo Theotonio dos Santos, deixa "um rastro de inquietação intelectual no Brasil" em virtude , do "abismo que vem se cavando entre a intelectualidade brasileira e o pensamento da esquerda mundial".
Não há forma segura de comprovar essas assertivas, mas não deve haver dúvidas de que é preciso tê-las como probabilidade. O que obriga, quem quer que pretenda analisar a atual situação mundial, a ler e a debater a obra de Arrighi. Ao rastrear o que chama de "turbulência global", aquele pensador coloca em cena uma possível "nova época asiática" e a discussão da atualidade ou não das teorias de Adam Smith, Marx, Schumpeter e dos cientistas sociais dos Estados Unidos.
Arrighi parte do pressuposto de que a política, a economia e a sociedade mundial vêm sendo configuradas por dois fatos incontestáveis: a ascensão e o abandono do neoconservador Projeto para o Novo Século Norte-Americano e o surgimento da China como líder do renascimento da Ásia Oriental. A análise da transferência do epicentro da economia política global da América do Norte para a Ásia Oriental, feita à luz das teorias de Adam Smith sobre os mercados, apontaria para a conformação de um "mercado global não capitalista".
Para demonstrar essa tese central, Arrighi argumenta que Adam Smith teria razão ao afirmar que a potência econômica da China, no século 18, chegara a um equilíbrio entre oferta e mercado, sacrificando a acumulação capitalista. No século 19, a China teria um padrão de vida semelhante ao da Europa. Seu avanço teria sido solapado pelo poderio militar europeu. Nos diversos capítulos da obra, Arrighi vai e volta nas tentativas de evidenciar as causas que levaram a "dinâmica smithiana comum à Europa e à Ásia Oriental" à Grande Divergência, com "efeitos opostos": na Europa, a Revolução Industrial; na Ásia Oriental, o fracasso da Revolução Industriosa.
O "caminho capitalista ocidental", de "uso intensivo de capital e de recursos energéticos" teria sido fruto da Revolução Industrial. Esta teria permitido ao caminho ocidental suplantar a Revolução Industriosa do "caminho de mercado da Ásia Oriental" Agora, porém, havendo o caminho ocidental atingido seus limites, as condições para a dinâmica smithiana retomar seu curso estariam dadas, permitindo o "renascimento" da Ásia Oriental, caracterizado pelo uso intensivo de mão-de-obra e baixo consumo de energia.
Problemas históricos
Esses argumentos sofrem de problemas históricos graves. Desdenham a luta de classes, entre mercadores e feudais, que se desenrolou durante todo o período que vai, aproximadamente, do século 7 ao século 17. Essa luta levou, em alguns reinos, à vitória dos mercadores burgueses contra os feudais. Em outros, à vitória dos feudais sobre os mercadores.
Arrighi despreza os resultados particulares daquela luta de classes. Primeiro, em Portugal e na Espanha e, depois, na Holanda, Inglaterra e França, que levaram ao mercantilismo. Finalmente, na China, que saíra quase um século à frente dos europeus na expansão do comércio marítimo, mas sofreu, a partir da dinastia Ming, aquilo que alguns autores chamam de "involução".
No início do século 15, as frotas marítimas chinesas, utilizando avanços técnicos que os europeus só incorporaram depois, como embarcações de grande porte, já haviam criado uma rota de transporte marítimo intenso, que ia até a costa oriental e o chifre da África. Os mercadores chineses negociavam com os reinos do sudeste da Ásia, do subcontinente indiano, da África Oriental e da Arábia tanto os produtos de suas manufaturas quanto os produtos artesanais e agrícolas desses reinos.
Da mesma forma que, um século depois, esse mesmo tipo de comércio enriqueceu alguns reinos europeus, no caso chinês ele carreou imensas riquezas para a dinastia Ming. Porém, do mesmo modo que o mercantilismo europeu foi o centro da luta entre burgueses e feudais, o mercantilismo chinês acirrou a disputa entre os feudais e os mercadores, estes considerados por aqueles como classe de segunda categoria.
Enquanto na Europa várias monarquias subjugaram os feudais e se aliaram aos mercadores na exploração marítima e de outras terras, na China ocorreu o contrário. Os setores da nobreza Ming, favoráveis aos mercadores, foram incapazes de apoderar-se da monarquia, como fez João de Avis, em Portugal, estabelecer a aliança com os mercadores e enquadrar os feudais.
Enfraquecida pelas disputas internas, a dinastia Ming ainda enfrentou bem a primeira globalização colonial das novas potências europeias, iniciada no final do século 15 e continuada durante os séculos 16 e 17. Mas, ao proibir as viagens marítimas, com a consequente destruição da frota, abandonou qualquer pretensão de participar da onda de descobertas, que transformaram o mundo.
Portanto, quando uma parte da nobreza Ming aliou-se ao reino militarista manchu e patrocinou tanto sua invasão sobre a "nação do meio" quanto sua instalação como dinastia Qing, em meados do século 17, os Ming já tinham fechado a China no autarquismo feudal, recolocado os mercadores no lugar que supunha caber-lhes na hierarquia social e impedido o desenvolvimento do mercantilismo.
A dinastia Qing apenas consolidou essa situação. Realizou uma reforma agrária que substituiu grande parte dos senhores feudais hans por senhores feudais manchus, manteve o escravismo em muitas de suas regiões e abandonou os avanços técnicos herdados das dinastias Yuan e Ming, que poderiam ter levado a China a uma revolução industrial.