Mundo do Trabalho

Mesmo sendo um grande problema político de âmbito mundial, é chegada a hora de reduzir a jornada de trabalho

Mesmo sendo um grande problema político de âmbito mundial, é chegada a hora de reduzir a jornada de trabalho, abrindo para o ser humano uma nova qualidade e concepção de vida

Foto: Augusto Coelho

"Para além da Estado do bem estar social", artigo do prof. J. Roberto Lopes Pinto publicado na edição 85 de Teoria e Debate tem título oportuno. Realmente, é dever do PT, ao fim de oito anos de êxito no governo, com o cumprimento dos compromissos assumidos com a população de findar o pesadelo neoliberal, acabar com as privatizações e com o absolutismo do mercado, retomar as funções de planejamento e investimento do Estado e instalar os primeiros programas de redistribuição de renda - e, ainda, superar a crise internacional e elevar o prestígio do Brasil no mundo. É dever do partido não descansar sobre os louros, mas pensar e discutir as etapas futuras do processo político que instaurou.

O artigo referido é oportuno e sábio, na medida em que ressalta o papel essencial exercido pelo Estado e destaca a responsabilidade ainda maior que este, em nome da sociedade, terá de cumprir nas próximas etapas de ampliação e qualificação dos direitos sociais conquistados, caracterizando efetivamente um novo pacto de avanço histórico, um pacto eminentemente político, por cima das instituições do mercado.

Se é dever do partido, é também dos militantes que se ocupam do tema e têm razões e sugestões a oferecer nesse debate. Como fez o professor Lopes Pinto e como desejo fazer aqui.

Penso que o Estado de Bem-Estar pode e deve evoluir e ascender, claro, a novos patamares, propiciadores da vida digna e, ainda além, da vida civilizada, estendidas a todos os cidadãos. Ambas são estágios evolutivos que estão já ao alcance da humanidade no nível de conhecimentos e tecnologias em que se encontra no seu processo histórico. Requerem, sim, doses mais altas de espírito solidário e, essencialmente, de organização e capacidade políticas para sua consecução.
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Denomino vida digna aquela capaz de assegurar efetivamente aos cidadãos todos os direitos fundamentais hoje mundialmente reconhecidos, em especial aquele que, embora sempre citado, raramente na verdade é garantido, senão em regimes socialistas de organização política, que é direito ao emprego, o direito de qualquer cidadão ou cidadã de ter um trabalho remunerado pelo salário mínimo com a obrigação do cumprimento da jornada legal estabelecida.

Paro aqui para fazer uma referência a José Carlos Assis, brilhante economista patrício, com vários livros importantes publicados, que tem feito dessa bandeira do pleno emprego realmente assegurado um verdadeiro estandarte para os trabalhadores brasileiros, comprovando sua viabilidade e ressaltando os efeitos altamente positivos que um programa que estabelecesse tal garantia teria sobre a economia nacional e sobre o ambiente geral da sociedade, dignificando a cultura do trabalho.

Mas quero seguir, depois dessa parada, para pensar numa vida realmente civilizada, além de digna, que o ser humano já pode usufruir hoje, mesmo em países que não são os mais ricos, como o nosso.

Na história dos embates pelos direitos fundamentais dos trabalhadores destaca-se, desde seus primórdios, a luta pelas sucessivas reduções da jornada de trabalho, que nos tempos feudais não tinha limite e ao início da revolução industrial limitava-se ao que não comprometesse a reprodução física do contingente de operários, como salientava Marx. Essa luta teve belas e sucessivas vitórias até se fixar, faz cerca de cem anos, em oito horas diárias e seis dias por semana.

É de se perguntar por que ficou estacionada a jornada obrigatória nesse limite, ligeiramente reduzido para quatro horas no sexto dia. Os economistas certamente responderão que essa foi uma opção da humanidade e, nesse regime, foi possível crescer gigantescamente a produção mundial até permitir o alcance do confortável nível médio de consumo que o mundo inteiro hoje pode desfrutar, se feita uma distribuição mais justa.
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Pois bem, admitamos que foi necessário esse montante de trabalho, ainda que a espantosa multiplicação da produtividade, resultante do desenvolvimento científico-tecnológico (que deveria constituir patrimônio da humanidade), só em menor parte tenha sido apropriada pelos trabalhadores e pela humanidade em geral. Fez crescer, sim, enormemente, a fortuna dos proprietários dos meios de produção e, muito especialmente, dos donos dos ativos financeiros e seus administradores pelo mundo afora, alargando ainda muito mais as diferenças de renda entre pessoas e entre nações do globo.

Bem, constatados os fatos, independentemente da continuidade da luta política pela justiça econômico-social, pela melhor distribuição da renda e da riqueza, a pergunta que se deve colocar, ao pensar nas etapas futuras é: a humanidade continuará preferindo aumentar sempre seu nível de consumo, esse consumo que já tão seriamente ameaça a vida no planeta? Ou, alternativamente, terá preferência pela redução da jornada diária de trabalho, melhorando sua qualidade de vida através da utilização de mais tempo para dedicar ao cultivo dos seus afetos, à família, aos filhos, às suas amizades, às suas preces religiosas, ao seu aperfeiçoamento cultural, aos seus cuidados com a saúde física e mental, ao seu lazer, até ao seu computador e ao seu celular, para os adictos, às suas vivências pessoais, enfim?

Tenho para mim que esta seria a preferência da grande maioria. Que a não explicita porque dela nem cogita, como se não fosse possível, porque é algo tão propiciador de felicidade coletiva que parece bom demais e não deve ser realizável na prática, daí por que ninguém levanta esse tema nos debates políticos.

Pois acho que é perfeitamente realizável e é hora de cogitar sobre ela. É hora de levantar a questão da redução da jornada em escala substancial, que efetivamente abra para o ser humano uma nova qualidade de vida, na verdade toda uma nova concepção de vida. Por exemplo, a ideia de trabalhar somente seis horas por dia, numa jornada semanal de 30 horas, não a pequena redução que os trabalhadores brasileiros estão pleiteando neste momento, para 40 horas.

É claro que esse é um grande e pesado problema político de âmbito mundial. Nenhum país pode sair sozinho na frente, reduzindo tanto a jornada de trabalho, porque seria logo arrasado pela perda de competitividade no mercado globalizado. Essa é uma bandeira que tem de ser internacional; que exige novamente uma articulação mundial da classe trabalhadora, tendo à frente lideranças da força de um Marx, de um Lênin, de um Gandhi, de um Luther King.

Mas o PT hoje tem densidade política e pode começar a preparar o início de um debate internacional, aproveitando as articulações de que dispõe e o prestígio mundial do Brasil no momento. Nosso líder maior, a partir de 2011, bem poderia se dedica a essa elevada missão civilizatória, ademais de prosseguir em sua bela pregação pela eliminação da fome no mundo.

Desnecessário apresentar o argumento tão evidente de que a redução da jornada eliminará completamente o flagelo do desemprego e o fenômeno bruto e cruel da exclusão pela tecnologia. Nos primeiros tempos poderá acarretar alguma parada no processo de melhoria salarial, até que os excluídos de hoje sejam absorvidos. Daí em diante, a procura crescente de mão de obra levará os salários a níveis hoje desconhecidos, já que os equipamentos do capital poderão ser utilizados até doze horas em cada dia, com o revezamento de duas turmas de trabalho.

Enfim, trata-se de visualizar e começar a luta pela implementação de uma nova etapa de civilização para a humanidade. Um novo mundo é possível? Claro; e aí está um caminho viável.

Saturnino Braga é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo