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Implementação de uma política que vise desprivatizar o sistema do país e desmercantilizar o SUS é desafio para o programa de governo do PT

O desafio apresentado para o programa de governo do PT é a implementação de uma política que vise desprivatizar o sistema do país e desmercantilizar o Sistema Único de Saúde. Um programa que atenderia as necessidades da população, incluindo expressivos setores da base social

Existe um desafio teórico para os petistas na formulação do programa de governo. Seria possível implementarmos uma política de saúde com o objetivo de desprivatizar o sistema brasileiro e desmercantilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), integrando os orçamentos e os programas da seguridade social (assistência, previdência, saúde e seguro-desemprego)?

Visando suprir as necessidades de saúde da população, essa política atenderia setores expressivos da nossa base social, tem forte caráter redistributivo e dinamiza a cadeia produtiva keynesiana de maneira sustentável. Bem calibrada com o crescimento da economia, não desestabiliza o orçamento público e, em certas condições, contribui para a redução da inflação setorial1. Ela mexeria com pesados interesses econômicos, mas, na atual correlação de forças, pode ser aplicada com o apoio das Unidades da Federação, das instituições do Ministério da Saúde (MS), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e dos recursos do pré-sal, de forma progressiva e mediada, no futuro governo Dilma.

Em 1988, os reformistas apostaram na universalização para todos, na redução do mercado e na melhoria das condições de atenção médica em todos os níveis. Vinte anos depois, o projeto sanitarista colecionou experiências exitosas na erradicação de doenças, na redução da taxa de mortalidade infantil, na ampliação da assistência médico-hospitalar, na expansão do Programa Saúde da Família e das Unidades de Pronto Atendimento, virando referência mundial na prevenção e no tratamento da aids2. O modo petista de governar contribuiu para a implantação do SUS, tensionando o caráter tecnocrático, hospitalocêntrico, fragmentado e liberal presente na história das políticas de saúde. No entanto, o financiamento público continua baixo, o mercado cresceu e a estratificação de clientela não foi superada.

Esse cenário se explica porque o Estado nunca dispôs de recursos para cobrir integralmente o polo dinâmico da População Economicamente Ativa (PEA) (o gasto público em saúde responde tão-somente por 45% do total)3, que tem capacidade de pressionar pelo alargamento do direito social encarnado no SUS (as centrais sindicais não pautaram o SUS em seu calendário de luta e a base aliada não votou a Contribuição Social para a Saúde em 2009). A suposta ineficiência da gestão nas principais regiões metropolitanas decorre, em boa medida, dos gargalos do financiamento: a morte nas filas dos hospitais é sua face mais perversa. Esse quadro reflete o estágio subdesenvolvido de construção de hegemonia do SUS.

Segundo pesquisa do Datafolha, a saúde é o principal problema do país e a área de pior desempenho do governo federal. A pesquisa de março de 2010 realizada pela Confederação Nacional da Indústria e pelo Ibope segue na mesma linha, reforçando a insatisfação com o setor público, porém igualmente com o setor privado ­ - as queixas na Justiça contra os planos de saúde não param de crescer.

O caminho é o SUS  

Para reverter esse quadro, devemos apostar no projeto igualitário, solidário e socialista do SUS, de modo a incrementar seu financiamento, diminuir a desigualdade de acesso, melhorar a qualidade dos serviços e planejar a relação público-privado (ampliando ações regulatórias, regulando a eficácia e necessidade da incorporação de tecnologia e refreando a duplicação da oferta). Seria um erro, portanto, privilegiar uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos de saúde aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas. Esse conservadorismo precisa ser superado na futura coalizão, dentro e fora do PT. Não foi essa concepção que levou a oposição a derrotar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira no Senado? Não foi essa concepção, apesar da resistência de setores petistas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que permitiu a captura da agência reguladora, constrangendo o interesse público e a agenda social do partido e de Lula?

Não há razões para consentir essa trajetória de desmonte, privatista. A luta pelo SUS pressupõe a adoção de políticas regulatórias, que tornem o mercado de planos, de fato, suplementar. Esse mercado, hoje, substitui o SUS, levando-nos a uma espécie de "americanização perversa"4.

O PT precisa refletir também sobre o imperativo de reformar o mercado, em direção a novos modos de intermediação do financiamento de serviços privados5. Caso não seja plausível hoje conceber o sistema fora das relações mercantis, dever-se-ia pensar em um tipo de propriedade privada de interesse público, um farol na regulação de preços, na padronização da cobertura, na melhoria da qualidade da atenção médica privada, na implantação de arranjos solidários e no cumprimento de metas clínicas e epidemiológicas do MS. O próprio Estado poderia usar seu poder de compra (economia de escala) como braço de apoio regulatório da ANS, para relativizar o poder dos oligopólios e sancionar a concorrência regulada por meio da constituição de um plano de saúde entre servidores públicos e governo federal. Este, devido à larga escala do número de usuários e ao volume do gasto da União com a atenção médica dos servidores, a princípio permitiria um corte nos gastos de custeio da máquina. As experiências organizacionais de instituições como o seguro-saúde do Banco do Brasil, a Fundação de Seguridade Social (Geap) e mesmo o novo seguro da Caixa Econômica Federal devem ser avaliadas pelo partido. De certa forma, foi essa a ideia-força que orientou a proposta do Plan Public Option da reforma de Obama6.

Nessa perspectiva, dentro de um projeto de capitalismo de Estado, sob hegemonia do SUS, o associativismo, o cooperativismo e a filantropia poderiam até se tornar aliados importantes na construção da esfera pública, em que as parcerias público-privadas atendessem às funções sociais e constitucionais da propriedade, contrabalançando o mercado tipicamente capitalista e o próprio empresariamento médico.

Os subsídios precisam ser igualmente revistos7. Eles são iníquos, concentradores de renda. Ao longo dos últimos quarenta anos, os planos de saúde se expandiram contando com tais subsídios, que poderiam ter representado um aumento substancial de recursos destinados ao SUS. Uma vez que o Estado foi substituído pelo setor privado no tocante à certificação da saúde da força de trabalho, o fundo público patrocina o consumo dos planos, cujos preços, de outra forma, seriam inacessíveis vis-à-vis à tendência de custos crescentes do mercado

No atual contexto histórico, dadas a crise de legitimidade do SUS e a necessidade de controle do capital sobre a força de trabalho, os empregadores buscam cobrir seus empregados no mercado (a situação é complexa no caso do governo federal, que destinou quase R$ 3 bilhões em 2006 à administração pública direta e indireta para fins de assistência médica e odontológica). O Estado, por meio da renúncia de arrecadação fiscal, lhes oferece uma contrapartida: o abatimento do Imposto de Renda Pessoa Física e de Pessoa Jurídica. Cerca de um quarto da população recebe esse subsídio e dificilmente abrirá mão de tal subvenção ­ - para uns, privilégio; para outros, recompensa. A solução não é trivial; contudo, não podemos favorecer a rentabilidade de um mercado concentrado, com um faturamento de R$ 63 bilhões, sabendo-se que boa parte das operadoras líderes está articulada ao capital financeiro. O crescimento dos planos de saúde tem sido gritante nos últimos anos com a ajuda dos incentivos governamentais, no contexto do desfinanciamento do SUS, da crise fiscal e da ofensiva neoliberal. Consolidou-se um modelo de proteção social liberal, em oposição ao modelo universal definido na Constituição.

Apesar da ausência de recursos, o SUS vem demonstrando vitalidade. Isso não impede que reconheçamos sua crise de legitimidade entre sindicalistas, funcionários públicos e assalariados urbanos, nem retira nossa força, tampouco nossa superioridade, na comparação entre o PT e o PSDB na gestão da saúde. Para mudar esse quadro, a precondição é melhorar as condições de oferta do SUS, reformar as instituições do mercado e converter parte dos subsídios em gasto público direto do MS. Isso permitiria reduzir a socialização dos custos e o parasitismo do mercado em relação ao padrão de financiamento público e ao próprio SUS. O caso mais emblemático é a crise do ressarcimento, uma vez que a clientela da medicina privada utiliza os serviços públicos (vacinação, emergência, transplante, alta complexidade, sangue etc.), sem o reembolso ao SUS.

Do ponto de vista ideológico não será tão complicado persuadir os funcionários públicos e os trabalhadores urbanos cobertos pelo setor privado quanto à necessidade de transitar do modelo dos Estados Unidos (seguro privado) para o modelo consagrado pelo Estado de bem-estar social europeu (seguro social e seguridade). Devemos convencer nossa base social de que lá a reforma de Obama propôs exatamente a ampliação da intervenção governamental para resolver o impasse no setor privado de saúde. De um lado, por razões humanitárias, uma vez que 46 milhões de cidadãos estavam fora do sistema e, por consequência, sem acesso a assistência médica. De outro, por questões de governabilidade: considerando a queda de popularidade e o aumento da taxa de desemprego em plena crise econômica internacional, o governo teve de responder à ineficiência dos planos de saúde diante dos segurados. Finalmente, o modelo privado impõe custos elevados ao sistema estadunidense (16% do PIB), retirando recursos crescentes do circuito acumulação-realização, além de não apresentar resultados epidemiológicos satisfatórios, penalizando as condições de vida e assistência à saúde dos jovens, imigrantes, trabalhadores de baixa renda e blue-collars.

Programa do PT 

O que podemos aprender com essa experiência, que inflige perdas patrimoniais catastróficas a famílias inteiras, levando-as ao desespero e à bancarrota? Existe uma contradição entre o artigo 196 (direito social) e artigo 199 (livre à iniciativa privada) da Constituição, porém o mercado não será extinto por decreto. A principal lição a tirar é dialogar com os eleitores sobre a importância de aprofundar a regulamentação dos planos privados. Quais seriam as principais questões para discutirmos no interior do programa de governo do PT? O caso dos idosos é preocupante, mas vejamos:

1. Adotar regime híbrido de concessão (mudança do art. 199 da Constituição e do art. 21 da Lei nº 8.080).

2. Regular os planos empresariais, a partir de princípios mutualistas e da criação de um plano de saúde do Estado.

3. Reduzir seletivamente a renúncia de arrecadação fiscal e previdenciária na área da saúde.

4. Incrementar o ressarcimento ao SUS.

5. Integrar ao SUS: o Sistema S (Sesi, Sesc, Sest), o auxílio-doença, o Seguro de Acidente de Trabalho, o DPVAT e os institutos de seguridade estaduais e municipais.

Essas propostas pretendem subsidiar a construção de políticas públicas para superar a lógica excludente do mercado, que privilegia lucros, seleciona riscos e expulsa doentes crônicos e idosos. Em uma estratégia de defesa do SUS, a hegemonia do setor privado deve ser superada, na teoria e na prática. Para isso não basta construir um programa tecnicamente viável. Ele deve ser fruto do consenso, da unidade do PT e dos partidos do campo democrático-popular, contando com a participação de profissionais, gestores e conselheiros de saúde. Precisamos negociar nosso programa com o PMDB e sustentar a realização desse projeto no futuro governo Dilma.

As eleições presidenciais serão um momento decisivo para mobilizar o bloco histórico identificado com a reforma sanitária, com o movimento pela democratização da saúde, permitindo ao PT retomar seu protagonismo político na área da saúde pública. A "reforma da reforma"9 deve caminhar em direção à consolidação do orçamento da seguridade social e à unicidade do SUS, para alargar o direito social na área da atenção à saúde e convencer a sociedade da superioridade do modelo universal.

Carlos Kalifa é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea e coordenador do Núcleo Largo do Machado PT-RJ