Internacional

Vitória da direita chilena indica que o modelo concentrador e com muita desigualdade será aprofundado

O triunfo da direita na eleição presidencial significa um retrocesso das perspectivas democratizadoras impulsionadas pela esquerda chilena. Não obstante, pela primeira vez em 37 anos haverá na Câmara dos Deputados três comunistas eleitos com altas votações.

O triunfo da direita na eleição presidencial significa um retrocesso das perspectivas democratizadoras impulsionadas pela esquerda chilena. Não obstante, pela primeira vez em 37 anos haverá na Câmara dos Deputados três comunistas eleitos com altas votações. Na eleição presidencial, alcançamos a porcentagem mais alta obtida por uma candidatura de esquerda desde 1970, apesar das ostensivas desvantagens: para eleger parlamentares no sistema eleitoral herdado de Pinochet, tivemos de concentrar nossa força, não ter candidatos a senador e inscrever apenas doze candidatos próprios a deputado, de um total de sessenta possíveis. Os espaços que os meios de comunicação deram às demais candidaturas foram muito superiores aos destinados à nossa. A campanha da esquerda mobilizou numerosos jovens, que se aproximaram de nossas organizações para participar ou iniciar sua vida política.  
 
Oferecemos à cidadania, mais uma vez, o exemplo das múltiplas ações e jornadas voluntárias empreendidas sem outro estímulo que não o desejo de lutar por ideais. Nossa propaganda foi a mais austera e artesanal ­ - por isso mesmo tão bonita. Fizemos possível a ideia de uma sociedade diferente, de outro modo de conviver, de um país regido por critérios de igualdade e liberdade, e não pelo império do mero cálculo econômico. Nossa mensagem programática foi poderosa e estremeceu a pauta imposta pela mídia da direita.  
 
O resultado foi a convergência, de grande potencialidade, entre as concepções socialmente avançadas e o inconformismo popular, que vai além das opções de voto. Nosso discurso político sem hipocrisias deixou evidente que não é possível mudar o Chile sem esquerda, ou com uma esquerda intimidada ou desanimada, porque só nós nos atrevemos a pôr em discussão temas que os demais evitam ou ocultam. Se não tivéssemos erguido um programa e uma candidatura, nenhum dos outros presidenciáveis teria considerado substituir a atual Constituição e ninguém teria proposto uma assembleia constituinte para permitir a expressão da soberania popular, nem sustentado com ímpeto os direitos históricos dos povos originários, nem a justiça plena em matéria de direitos humanos, nem a recuperação do cobre para o Chile e para os chilenos. Nenhum outro programa apresentou, sem vacilações, a perspectiva de um sistema nacional de educação pública, a questão de gênero e o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, nem propôs uma concepção em que desenvolvimento e proteção do meio ambiente fossem parte de uma mesma e ineludível equação, nem demandou uma legislação trabalhista que reconhecesse efetivamente os trabalhadores. Nenhum se pronunciou, como o nosso, de maneira terminante contra todas as formas de discriminação, entre elas a fundada na livre opção sexual das pessoas.
 
Sempre chamamos as coisas pelo nome. Sabemos que a renúncia às identidades começa pela linguagem: esquecer o nome das coisas, rebatizá-las de acordo com o lado para onde o vento está soprando, chamar de "governo militar" a ditadura, de "pronunciamento" o golpe de estado, de "democracia" a democracia incompleta, de "excessos" as violações dos direitos humanos, de "equidade" a justiça social, de "império da lei" a repressão policial desmedida, de "flexibilidade laboral" a demissão arbitrária, de "livre mercado" a concentração oligopólica, de "interesse máximo convencional" a usura legalizada, de "progressismo" uma visão impregnada de ceticismo sobre as possibilidades de lutar por mudanças mais profundas.  
 
São evidentes as insuficiências da tarefa que realizamos. Dentre elas, destaco duas: primeiro, não estiveram em nossa campanha todos aqueles que compartilham ou se sentem próximos da visão de sociedade que defendemos. Devemos ser persistentes para estender pontes que aproximem todos os socialistas fiéis ao legado allendista, os ex-militantes antiditatoriais hoje dispersos ou passivos, companheiras e companheiros que desconfiam da lógica partidista, da participação eleitoral ou dos entendimentos com forças de centro, que, no entanto, ainda têm conosco amplas coincidências programáticas.  
 
Segundo, não conseguimos mobilizar os mais de 40% de cidadãos excluídos ou autoexcluídos para formularem sua opinião através do voto, em particular jovens que não quiseram até agora tomar partido nas disputas eleitorais. Compartilhamos com muitos deles o rechaço ao modelo político e econômico vigente e um horizonte de mais liberdade e igualdade.  
 
No segundo turno, a definição majoritária das forças que apoiaram nossa candidatura foi aceitar a proposta de doze pontos com a qual o comando de Eduardo Frei se comprometeu unilateralmente, e por escrito, e votar nele. Esses doze pontos deveriam, se os concertacionistas fossem coerentes, constituir uma base mínima para a atuação de seus parlamentares e os de esquerda no próximo período. Alguns dos nossos estimaram insuficiente a proposta, mas ainda assim não participaram da convocatória a votar nulo que os outros setores formularam.  
 
O governo de Sebastián Piñera representa um ponto alto de fusão entre dinheiro e política. Hoje a direita soma ao poder econômico, comunicacional e governamental boa parte do Congresso e dos municípios, poderosas universidades, colégios e escolas, instituições de saúde e seguridade social particulares, ou seja, uma concentração de poderes desconhecida no Chile. O modelo será aprofundado pelos novos governantes para reafirmar o lucro como o motor de todos os âmbitos da existência, diminuir o sentido e o significado do público, do coletivo, do comunitário, e intensificar o uso dos instrumentos repressivos do Estado e dos mecanismos de disciplinamento social. Entre esses últimos sobressaem a precarização do emprego e a desproteção do trabalho, além do perverso e infindável circuito do endividamento e da transferência de juros colossais para os capitais financeiros concentrados.  
 
No âmbito internacional, o governo de direita procurará aliados nos governos de inspiração neoliberal e manterá distância dos diversos processos que na América Latina têm aberto possibilidades certas de mudança social. É possível incidir na intensidade com a qual Piñera exercerá sua política exterior por meio de uma esquerda que cresça e se desenvolva.  
 
Por outro lado, é uma necessidade imperiosa da justiça social canalizarmos nossa energia para reconfigurar um ator poderoso e influente, capaz de comprometer a cidadania, para incidir nos movimentos sociais, nas políticas públicas, no Congresso, no indispensável debate político-cultural e, particularmente, que reposicione o Chile no âmbito dos movimentos que lutam pelo avanço social na América Latina. Por isso, a construção de uma esquerda plena, heterogênea, crítica, futurista e com capacidade de se aliar é uma grande tarefa do tempo que virá, complexa mas imperiosa.  
 
Jorge Arrate foi candidato à Presidência pela Coligação Juntos Podemos Más, às eleições chilenas de 2009.  

Tradução de Celina Lagrutta