Política

Em entrevista, André Singer fala sobre seu artigo "Raízes sociais e ideológicas do lulismo" e as mudanças no comportamento do eleitorado

André Singer acredita que o PT precisa aproveitar a janela histórica que se abre para organizar e politizar os setores mais populares, que se aproximam do partido. Caso isso aconteça, virá uma grande transformação, ainda maior do que as que estão em curso

Foto: César Ogata

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O artigo "Raízes sociais e ideológicas do lulismo", de André Singer, desde sua publicação na revista Novos Estudos nº 85, de novembro de 2009, vem sendo tema de debates nos meios acadêmicos e políticos. Nele, o professor do Departamento de Ciência Política da USP e porta-voz da Presidência da República de 2003 a 2007, com base em estudo e pesquisas que mostram o comportamento e a cultura política do eleitorado brasileiro, sugere hipóteses para compreender o realinhamento eleitoral ocorrido em 2006. O subproletariado, que sempre se mantivera distante de Lula, o reelege, ao mesmo tempo em que a classe média dele se afasta. Para Singer, os setores de baixa renda, beneficiados pelas ações do primeiro mandato, identificaram-se com o projeto que tinha à frente o presidente Lula - ­ e o lulismo, assim, pode ter fincado raízes duradouras no subproletariado brasileiro.

O que pode ser definido como lulismo?

Estou sugerindo uma hipótese, a ser comprovada pelo andamento do processo político da eleição de 2010, de que o lulismo vem a ser um realinhamento eleitoral ocorrido entre as eleições de 2002 e 2006, mais precisamente. Tal realinhamento seria a mudança de base eleitoral que se verificou na votação dessas duas candidaturas de Lula, 2002 e 2006. Na primeira ele foi eleito pela base tradicional do PT, ampliada. Ou seja, o partido vinha construindo uma base desde 1982 na classe média - ­ se considerarmos que os setores organizados da classe trabalhadora no Brasil fazem parte da classe média. Um metalúrgico é de classe média, o que soa um pouco estranho para quem usa categorias europeias, por exemplo. Trata-se de uma configuração própria do Brasil, um proletariado de classe média. Assim, o PT constituiu uma base sólida, que foi se ampliando entre os setores organizados dos trabalhadores industriais, bancários, funcionários públicos, professores, estudantes.

Em 2002, a candidatura Lula fez um movimento de ampliação desse eleitorado e chegou até a conseguir votos de todas as camadas sociais, mas, se olharmos a curva de intenção de votos, veremos que ela cresce com a renda e com a escolaridade, como sempre tinha sido desde 1989, quando Lula foi candidato pela primeira vez em uma eleição nacional. Isso me leva a dizer que, em 2002, ele se elege com uma base que é a clássica do PT, ampliada por um movimento de moderação em direção ao centro.

Já em 2006 Lula se elege com uma base completamente diferente. Perde o eleitorado de classe média que ganhara em 2002 - ­ as pesquisas não dizem se os novos eleitores de 2002 foram os que deixaram de votar quatro anos depois, mas houve redução do eleitorado de classe média, quantitativamente equivalente à ampliação que tivera. Então, em 2006 volta aos patamares anteriores, de 1998, mas, em contrapartida, tem a adesão de eleitores de baixíssima renda. Isso é o que eu chamo de realinhamento eleitoral. Houve uma troca de bases eleitorais que não é simplesmente um zigue-zague ocasional, parece ser o fi m de uma época e o início de uma nova.

Por quê?

Essa mudança de bases eleitorais corresponde muito diretamente ao que foi o programa do governo Lula, que pôs de pé um projeto até certo ponto novo. Ele articulou duas coisas que nunca tinham sido articuladas dessa maneira: de um lado, um forte programa de benefícios aos brasileiros de menor renda, que tem a ver com um pacote de medidas que parece caminhar na direção de uma mudança estrutural, com formalização do emprego, Bolsa Família, aumento do salário mínimo e expansão do crédito. Essas quatro ações de governo, somadas, estão provocando uma mudança nas condições de vida de milhões de brasileiros que estavam na base da pirâmide. De outro, promoveu essas mudanças sem ameaça à ordem, sem radicalização e confronto políticos, porque, fundamentalmente, o governo decidiu manter certas orientações na conduta macroeconômica no primeiro mandato, autonomia do Banco Central, câmbio flutuante e superávits primários altos.

Essa combinação ­ - mudanças importantes e significativas e sua promoção sem um processo de confronto político, que, historicamente, a esquerda sempre achou que tinha de haver - ­ fala diretamente ao coração do que chamo de subproletariado, usando um conceito que o professor Paul Singer sugeriu ao analisar a estratificação social brasileira nos fins dos anos 1970 (Dominação e Desigualdade, de Paul Singer. Paz e Terra, 1981).

A integração promovida pelas políticas sociais do governo não é mais frágil do que a promovida por Getúlio Vargas, por meio da CLT?

Há os que dizem que, diferentemente do período de Getúlio, não foram conquistados novos direitos. Uma das diferenças é que essas medidas que mencionei não se configuram como direito, enquanto a CLT é um conjunto de direitos que foram conquistados pelos trabalhadores urbanos. Uma coisa de extrema importância é que todo o meio rural, naquela época muito significativo, ficou de fora.

Penso que o Bolsa Família, embora tenha sido instituído como um programa, tende a se tornar um direito no Brasil. O governo já anunciou que vai propor a consolidação das leis sociais (CLS), que, com o Bolsa Família e outros programas, será uma espécie de CLT. No caso específico do Bolsa Família, seu impacto foi tão profundo que os candidatos majoritários no Brasil, como fica evidente na campanha do PSDB, dizem que não só o manterão como também o ampliarão. Evidentemente já está posto que ninguém mexerá no Bolsa Família. Além disso, é bastante provável que o programa se integre à legislação como um direito, porque marca o piso de renda a que qualquer brasileiro tem direito desde que comprove obter um rendimento aquém do que a sociedade considera aceitável. Tendo a achar que é uma transformação que caminha para ser uma transformação estrutural, como foi a CLT.

Você escreveu em seu artigo que "o lulismo pode ter fincado raízes duradouras no subproletariado brasileiro". Em que medida?

Quão profundas são essas raízes? Essa é justamente a questão que o tempo terá de dirimir. Minha hipótese é de que isso pode ter acontecido porque acho que, de fato ­- até soa um pouco engraçado, mas vou usar uma expressão que todos andam ouvindo muito -­, nunca antes neste país se deu essa combinação. No período de Getúlio, quando uma série de direitos importantes foi fixada, deixou-se de fora justamente esse setor que está sendo pela primeira vez beneficiado. Essa é a grande novidade, e há um reconhecimento dessa mudança por parte dos que estão sendo contemplados, que se expressa, em primeiro lugar, na reeleição do presidente Lula em 2006. Esse foi o setor da sociedade que sustentou a reeleição contra a classe média, que se afastou. Houve um movimento político. Se dependesse da classe média, observando as curvas de intenção de voto, o presidente eleito seria Alckmin. Em segundo lugar, percebe-se que a adesão desse setor ao presidente Lula até cresceu durante o segundo mandato, porque boa parte da aprovação do governo, que é alta, se deve também a isso - ­ não apenas, porque 70%, 80% abarcam outros segmentos ­-, assim como a ascensão, agora, da ex-ministra Dilma Rousseff. Está claro que esse setor demora mais tempo para receber a informação porque está mais distante dos acontecimentos políticos, mas, à medida que se dá conta de que ela é a candidata apoiada pelo presidente Lula, declara crescentemente sua intenção de votar nela. Como, aliás, escrevi para a própria Teoria e Debate, no ano passado, que ainda no final do primeiro semestre de 2010 isso iria acontecer. Além do que me parece uma hipótese logicamente plausível, há vários sinais empíricos de que isso está acontecendo.

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Você acredita que a opção desse segmento se dá por um projeto de país?

Não seria um movimento mais pragmático de fazer valer seus interesses? Há um substrato ideológico nesse setor da sociedade. Tenho uma visão de ideologia que vai em direção a Gramsci, a ideologia vai permeando a sociedade toda, ainda que filtrada por diferentes gramáticas e códigos. O código ideológico pelo qual se expressa uma pessoa de baixa escolaridade não é o mesmo que o de um estudante universitário. Isso não quer dizer que ele não tenha uma concepção de mundo. As pesquisas a que tive acesso desde a eleição 1989 mostram que esse setor de menor renda rejeita o conflito político. Essa foi a razão, a meu ver, pela qual esse setor nunca votou no PT em massa, pois o partido sempre foi uma proposta explicitamente radical e de conflito. Nessas pesquisas, a rejeição às greves aumenta com a queda da renda e da escolaridade. Há nesse setor uma hostilidade ao conflito político bastante compreensível, uma vez que é o setor mais vulnerável. Ao mesmo tempo, é preciso tomar muito cuidado ao tratá-lo como conservador, porque ele quer mudanças importantes, quer que o Estado intervenha na economia para promover o que chamamos de distribuição de renda ­ pode usar outras palavras, mas sabe o que quer.

O lulismo é um fenômeno novo, não está mobilizando só uma opção pragmática, envolve também aspectos ideológicos importantes. Claro que, se perguntarmos a uma pessoa de baixa escolaridade qual é seu projeto de país, talvez ela diga que não sabe ou então responda em termos muito diferentes daqueles que estou expondo, mas acho que acabaríamos por encontrar em sua resposta esse substrato ideológico que o lulismo mobiliza.

Mas esse setor entende perfeitamente quando Lula diz que o brasileiro tem de tomar café da manhã, almoçar e jantar.

O presidente fala diretamente para ele. E entende também quando Lula diz que o governo precisa agir como uma dona de casa, não pode gastar mais do que tem. É uma linguagem bastante compreensível.

Como ficam os partidos políticos nesse contexto, especialmente o PT? O lulismo apresenta para o conjunto dos partidos um desafio porque há uma rearrumação ideológica, de projeto, e promove também uma rearrumação da própria estratificação social. A direita precisa encontrar um novo discurso e um novo projeto porque tanto ela quanto o centro viveram muito tempo de mobilizar, pelo medo, esse setor da sociedade ao qual estamos nos referindo. Então, havia o medo da desordem que, nos momentos-chave, como em 1989, era mobilizado para votar contra Lula e o PT. Se minha hipótese do lulismo estiver correta, isso acabou. Então, há o grande desafio, para a direita e o centro, de reconquistar a viabilidade eleitoral a partir de um outro projeto.

Para a esquerda e, particularmente, para o PT, abre-se uma enorme avenida, como nunca antes, que é a aproximação de setores que podemos chamar de populares, que representam cerca de metade da sociedade brasileira, ao partido. Essa é uma possibilidade imensa para o PT, que precisa tomar duas decisões: concentrar esforços para organizar e politizar esse setor da sociedade e manter um rumo à esquerda. Nessa nova configuração, manter-se à esquerda representa um desafio. Estamos diante de uma daquelas janelas históricas, que se abrem muito de vez em quando, e o PT precisa aproveitar a oportunidade para politizar e organizar esse setor da sociedade. Se isso acontecer, haverá uma grande transformação, além das que já estão em curso.

Como isso poderia se dar na prática, uma vez que o partido tem em sua trajetória o trabalho com categorias organizadas?

O primeiro caminho é por meio da Escola Nacional de Formação Política. Um aspecto fundamental é dar a esses setores a formação que, por definição, não têm, pois nunca mantiveram, por exemplo, contato com a vida sindical. São pessoas que estiveram por muito tempo desempregadas ou em condições de trabalho informal. O segundo caminho é o retorno ao trabalho de base. O momento é extremamente fértil para o contato e a organização dos movimentos nas periferias.
O lulismo parece uma contradição em processo. Por exemplo, se de um lado promove a expansão das universidades federais, de outro cria o ProUni, que, embora importante para jovens de baixa renda, sustenta o ensino privado. Qual sua opinião sobre esse tipo de ambiguidade?

Como o projeto de governo mistura elementos de mudança e de conservação simultaneamente, esse é um bom exemplo, pois há uma expansão do ensino público superior que aponta na direção do programa da esquerda e, ao mesmo tempo, há um programa em parceria com o ensino privado, que se expandiu enormemente no Brasil e acabou por deixar o ensino superior público como ilhas dentro de um universo privado. A privatização da educação vem ocorrendo desde a ditadura militar, e isso é muito forte no ensino superior. Esse é um bom exemplo das contradições que há no projeto em curso e diante das quais o PT teria de se reposicionar. O partido deveria voltar a discutir a hipótese de tornar todo o ensino superior público, inclusive, de alguma maneira, tornando públicas essas instituições de ensino privado. Essa bandeira, que é claramente de esquerda, não tem aparecido nos debates do PT.

Você disse que a direita não emplaca mais a tática do terror, como em 1989. Mas, acompanhando a mídia nesse início de campanha, é visível que continua tentando.

Não acredito que ela tenha sucesso. Há uma transformação, e a direita não conseguirá desviar a convicção profunda de que a continuidade dessas políticas interessa a esse setor da sociedade, que vai perceber, crescentemente, que é a candidata Dilma que representa isso. Também não acredito na possibilidade de distorções que levem ao voto pelo medo. A eleição de 2006 significou uma ruptura. Os assim chamados formadores de opinião não formaram a opinião. Eles estavam convencidos de que o mais grave era a corrupção e, portanto, era importante derrotar Lula com os problemas de 2005. Se eles tivessem prevalecido, Lula não teria sido reeleito. Então, essas tentativas de distorcer a imagem de Dilma, que não têm fundamento, não serão bem sucedidas. Houve uma transformação estrutural - ­ por isso insisto na hipótese do lulismo. O que vai sustentar a eleição de Dilma é o lulismo.

Já que a base do lulismo é o subproletariado, qual é a base atual do antilulismo?  
A base sólida do antilulismo é a classe média tradicional e também a base sólida do PSDB. Embora o PSDB tenha uma base sólida no Brasil, ela é minoritária, e com essa base ele não ganha eleição.

Em sua opinião, que papel terá o presidente Lula daqui para a frente? 

Tenho a impressão de que ele continuará sendo a figura de primeira grandeza da política brasileira por um bom tempo. Principalmente porque se converteu em um líder inconteste de um setor enorme da sociedade brasileira. Além de estar deixando o governo com uma aprovação inédita, encarna um projeto que responde por um contingente importante da população brasileira, e, como é jovem, continuará por muito tempo como uma liderança política decisiva.

Como petista e cientista político, o que recomendaria à coordenação de campanha de Dilma? 

Eu gostaria, como militante da esquerda do PT, que fossem aproveitadas todas as oportunidades possíveis de avançar no sentido de um programa mais progressista. A chamada política real e pragmática impõe limites, mas um partido de esquerda responsável tem de procurar ampliar esses limites. Penso, por exemplo, que a autonomia do Banco Central é um problema. O país continua praticando taxas de juros muito altas e, mais adiante, vamos ter de mexer nisso, que está relacionado ao câmbio, à questão orçamentária. Essa ideia de que temos de caminhar para a eliminação da miséria e da pobreza no Brasil é o programa fundamental, essa é a tarefa histórica que temos de enfrentar, e para isso o país precisa ter altas taxas de crescimento e distribuição de renda.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate[/nextpage]