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O Ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, escreve sobre os mecanismos controle e a experiência de combate à corrupção no governo Lula

Mazelas com o dinheiro público sempre existiram e nunca foram combatidas, mas as duas últimas gestões do governo federal mudaram essa realidade. A mudança é um processo, que inclui apuração e fortalecimento de órgãos de controle.

Foto: Marcello Casal Jr./ABr

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Por que o governo do presidente Lula não teme o debate aberto em torno das questões que envolvem a prevenção e o combate à corrupção, o controle do uso dos recursos públicos? Simplesmente porque este governo já fez nessa área, sem nenhum exagero, mais do que todos os seus antecessores juntos. E, se a comparação for feita com o governo que o antecedeu, a diferença fica ainda mais evidente.

Sabemos que a corrupção na política e na administração sempre existiu. Sabemos também que nunca tinha sido combatida. O assunto era um tabu. Pouco se falava em corrupção. Não porque não existisse, mas porque não era enfrentada, era abafada. Era o melhor dos mundos para os corruptos.

No plano da administração federal, a situação hoje é outra. Aumentou muito, é claro, a percepção que se tem do problema da corrupção, e a atenção da sociedade para ele. Isso ocorreu justamente por força das ações de investigação e enfrentamento da corrupção, que tiveram início neste governo, bem como da intensa divulgação dessas ações pela mídia, suscitando o debate público em níveis sem precedentes. Para isso, alguns fatores contribuíram de modo decisivo. Entre eles, merecem destaque:

1º) O fortalecimento dos órgãos de controle e de investigação, como a Polícia Federal, a Controladoria-Geral da União, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) e o Departamento de Recuperação de Ativos.

2º) A decisão política de abrir as portas e as informações do Poder Executivo ao amplo escrutínio do Ministério Público, de modo que este pudesse dar amplo cumprimento à sua função constitucional, bem ao contrário do que ocorria até então, conforme é público e notório. Isso pôs fi m ao tempo do "Engavetador-Geral da República", que permaneceu no cargo por oito anos. No atual governo, ao contrário, os procuradores-gerais escolhidos foram os indicados pelo voto da categoria e vêm dando mostras de total independência, como o país inteiro tem testemunhado.

3º) O amplo interesse da mídia pelas denúncias, o que é bom para a democracia e pode ser explicado, em parte, pelo fato de que, pela primeira vez, o Executivo federal não se encontra nas mãos do mesmo campo de forças sociais e econômicas detentoras da propriedade da maioria das empresas de comunicação.

4º) A mudança radical na atuação dos órgãos de controle do Estado, que passaram a agir de forma integrada e articulada, com maior eficácia no trabalho de cada um: CGU, PF, Ministério Público da União, Tribunal de Contas da União, Coaf e Receita Federal, entre outros.

5º) A criação do Sistema de Correição da Administração Federal, com uma Corregedoria Setorial em cada ministério e a Corregedoria-Geral na CGU. As corregedorias são responsáveis pela condução e acompanhamento dos processos disciplinares, que visam à responsabilização de agentes públicos federais que cometeram irregularidades.

É claro que as instituições não se transformam nem se purificam da noite para o dia. Isso não se faz por um ato. Trata-se, antes, de um processo. A transformação está em marcha. Ironicamente, o atual governo vem pagando um alto preço político por essa decisão, o que era previsível e teria de ser assumido. Algum dia teria de ser iniciado o trabalho de limpeza e depuração das instituições.

Por outro lado, é bastante ilustrativo observar que a grande maioria dos esquemas de corrupção descobertos pela CGU e pela PF nos últimos anos tem origem em período anterior a este governo. São exemplos: as Sanguessugas, os Vampiros, os Gafanhotos, o "Propinoduto" da Receita, o Gabiru, a Confraria, a Navalha e o chamado Valerioduto. Quase tudo o que agora exala de podre, e vem sendo finalmente apurado e combatido, estava acumulado e abafado havia muito tempo.

É importante recordar ainda os escândalos ocorridos em governos anteriores, que nunca tiveram solução ou desfecho satisfatório. Apesar do pouco que se divulgava na época, é possível lembrar de pelo menos alguns dos megaescândalos hoje esquecidos, com prejuízos muitas vezes maiores que os mais recentes: os Anões do Orçamento, o Escândalo dos Precatórios do DNER, a escandalosa compra de votos para a reeleição em 1998, os escândalos do Banestado, da Pasta Rosa, da Sudene, da Sudam, do FAT/Planfor, do Proer e dos Bancos Marka e FonteCindam, para citar apenas alguns.

Neste governo, todos os dirigentes e demais agentes públicos, independentemente do nível de suas funções, envolvidos em denúncias ou em constatações graves de auditoria foram afastados de suas funções. Em 2005, quando surgiu o problema nos Correios, por exemplo, foram afastados imediatamente mais de 50 diretores e assessores. O mesmo ocorreu na Infraero, no IRB, na Casa da Moeda, na Eletronorte, na Eletronuclear, na Embratur, no Banco do Brasil e em Furnas, entre outras instituições.

Além disso, o governo passou a instaurar processo administrativo, na forma da lei, de modo a excluir do serviço público os envolvidos em ilícitos graves. Até 30 de abril deste ano, 2.516 servidores foram expulsos.

Para viabilizar toda essa ação, o governo criou o Sistema de Corregedorias da Administração Federal e lançou um programa de capacitação, que já treinou mais de 7.500 servidores no país inteiro, para processar os acusados. Desse modo, a administração deixou de ficar apenas à espera da punição pela via judicial, que demora muito, e passou a aplicar as sanções que ela própria pode aplicar, contribuindo para a redução da impunidade.

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Quando isso foi feito em governos anteriores?

O governo não se preocupou apenas com as infrações cometidas por agentes públicos. Na maioria das vezes, a corrupção envolve, pelo menos, um corrupto e um corruptor, e é preciso agir nos dois lados. Nesse sentido, o governo passou a fazer valer a lei também contra as empresas corruptoras, declarando-as inidôneas e, com isso, proibindo-as de contratar com a administração pública.

E para dar transparência às punições, de modo que as empresas punidas não venham a ser contratadas por outros entes federativos, a CGU criou o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis), com as sanções aplicadas por todos os órgãos que quiserem aderir ao Cadastro.

De outra forma, desenvolvemos intensa parceria com o setor privado, por meio do Instituto Ethos de Responsabilidade Empresarial, buscando conscientizar as empresas sobre a prática da conduta ética. Juntos, já lançamos o Manual de Responsabilidade Social contra a Corrupção, realizamos oficinas em todo o Brasil e estamos ultimando providências para criar um cadastro de empresas que invistam na ética e na integridade, implementando medidas de boa governança corporativa e de prevenção da corrupção.

Tem mais: a CGU e a Polícia Federal atuam juntas em operações e investigações de combate à corrupção, que ora nascem dos trabalhos da CGU, comunicadas à PF quando há indícios de crime, ora resultam de inquéritos policiais, em que a CGU é chamada a participar. De 2003 até o início de maio deste ano, a PF tinha realizado 1.060 operações, com a prisão de 13.273 pessoas, das quais mais de 1.700 agentes públicos dos mais variados níveis hierárquicos.

Enquanto isso, a simples citação, feita recentemente pela ex-ministra Dilma Rousseff, de um número de operações realizadas pela Polícia Federal no governo passado, em uma tentativa de comparação, gerou inusitada polêmica na imprensa: teriam sido 29? 48? Ou chegaram a 69? Ninguém sabe. Parece que nem mesmo esse controle era feito. O fato é que a disparidade quanto à atuação da PF nos dois governos é gritante.

Em 2003, o governo lançou um inovador programa de fiscalização dos recursos federais repassados aos municípios para aplicação em educação, saúde, assistência social, habitação, entre outros setores. De modo a garantir absoluta isenção na escolha da amostra a ser fiscalizada, optou-se por um inédito sistema de sorteios públicos, feitos no auditório da Caixa Econômica Federal.

O Programa de Fiscalização por Sorteios já permitiu a verificação in loco da aplicação dos recursos federais em mais de 1.700 municípios (cerca de 30% do total de municípios brasileiros), envolvendo recursos de mais de R$ 13 bilhões.

Mas esse método de fiscalização na ponta não é o único adotado. A Controladoria concentra hoje grande parte de seu esforço na busca de soluções, entre os gestores federais, com foco na prevenção. A ideia é acentuar o caráter preventivo e orientador do Controle Interno, como instrumento de auxílio ao gestor e à boa gestão pública.

O atual governo investiu muito também em políticas públicas de transparência e prevenção da corrupção. Isso porque hoje se reconhece, no mundo inteiro, que as ações repressivas sozinhas não são capazes de resolver o problema. Na área da prevenção, o Brasil tem avançado em todas as linhas que integram o cardápio internacionalmente recomendado nas convenções anticorrupção de que o país é signatário (ONU, OEA e OCDE). Vejamos algumas das principais:

Partindo de uma situação de visível atraso nesse campo, já que em 2003 a transparência por aqui era praticamente nenhuma, nosso país se transformou, nesse período, em referência internacional, em modelo que vem sendo copiado por outros países em matéria de transparência das contas e gastos públicos. Lançamos, em 2004, o Portal da Transparência (www.portaldatransparencia.gov.br), que é um dos mais completos sites existentes no mundo em seu gênero.

O objetivo é dar visibilidade às despesas do governo, detalhadamente, com linguagem simples e compreensível a qualquer cidadão, sem senha nem cadastro prévio.

Em constante ampliação e aprimoramento, o Portal abriga hoje também duas áreas específicas para o acompanhamento, pelos cidadãos, dos investimentos públicos que viabilizarão a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. E, ainda, atendendo à Lei Complementar 131, que entrou em vigor em maio de 2009, passou a informar o movimento diário de receitas e despesas, em tempo real. O Portal já registra mais de 200 mil acessos por mês.

Buscando sempre ampliar a transparência dos gastos públicos, o governo alterou também, com o Decreto 6.370/2008, a forma de pagamento do denominado “suprimento de fundos”, isto é, despesas de pequeno vulto, de caráter eventual. Anteriormente, essas despesas eram majoritariamente feitas pelas Contas Tipo B, por meio das quais o servidor responsável emitia um cheque para sacar o dinheiro da conta e, conforme as necessidades do serviço, gastava esse valor em espécie. Essa modalidade de pagamento não permitia fácil controle e transparência.

O decreto determinou o fechamento das Contas Tipo B e tornou obrigatório o uso do Cartão de Pagamento. Assim, garantiram-se transparência e amplo controle social sobre a aplicação dos recursos, já que as quantias utilizadas são divulgadas para toda a população por meio do Portal da Transparência.

Em outra frente, a CGU investe no estímulo à participação social no acompanhamento da gestão pública. Como muitas pessoas não sabem por onde começar, a CGU criou o Programa Olho Vivo no Dinheiro Público, que oferece oportunidade para o cidadão aprender como acompanhar a aplicação do dinheiro público. Mais de 20 mil cidadãos já participaram de encontros presenciais e cursos a distância em 1.100 municípios atendidos pelo programa. Quase 2 milhões de exemplares da cartilha do Olho Vivo já foram distribuídos.

A CGU tem investido fortemente também na educação de crianças e jovens para a ética e a cidadania. Merecem destaque o Concurso de Desenho e Redação, que já contou com a participação de mais de 350 mil alunos do ensino fundamental e médio; o Portalzinho Criança Cidadã, sítio na internet (www.cgu.gov.br) com jogos e histórias em quadrinhos com mensagens cujo objetivo é formar, alongo prazo, uma cultura de intolerância à corrupção; e ainda o projeto “Um por todos e todos por um! Pela ética e cidadania”, criado em parceria com o Instituto Mauricio de Sousa. O projeto conta com a ajuda especial da Turma da Mônica para desenvolver nas crianças conceitos e valores fundamentais para a formação de uma cultura ética.

Seguindo as recomendações das Convenções Internacionais contra a Corrupção, o governo Lula enviou ao Congresso projetos de lei para criminalizar o Enriquecimento Ilícito de Agentes Públicos (PL 5.363/2005), regulamentar os Conflitos de Interesse (PL 7.528/2006) e o Acesso à Informação, que, além de constituir recomendação das Convenções, é uma antiga reivindicação de entidades da sociedade civil brasileira.

Em dezembro de 2009, o presidente Lula enviou ao Congresso um projeto de lei tornando mais rigorosas as punições por crimes de corrupção quando cometidos por autoridades dos primeiros escalões dos três Poderes da República, nos três níveis da administração: federal, estadual e municipal.

E, em 2010, foi enviado ao Congresso outro projeto sobre a Responsabilidade Civil e Administrativa de Pessoa Jurídica, propondo novas formas de punição para empresas envolvidas em corrupção.
Diante de todas essas iniciativas do atual governo na área da prevenção da corrupção, indagamos: que medida de estímulo ao controle social foi adotada até 2002? Quais as medidas tomadas, antes do atual governo, para dar cumprimento aos compromissos do país perante as Convenções Internacionais contra a Corrupção ou perante a comunidade internacional no esforço de enfrentamento desse mal em todas as vertentes?

No plano internacional, o Brasil vem-se tornando referência na implementação de medidas de prevenção e combate à corrupção. Fomos muito bem avaliados recentemente tanto pela OEA quanto pela OCDE. Não é por acaso que o Brasil vem sendo procurado e visitado sucessivamente por delegações dos mais diversos países interessados em conhecer o trabalho da CGU e convidado frequentemente para expor sua experiência lá fora.

Não por acaso em 2009, o Brasil foi classificado em oitavo lugar em um ranking de 85 países que tiveram o grau de transparência de seus orçamentos públicos analisado pelo International Budget Partnership, ONG sediada em Washington. Somos o país mais bem posicionado da América Latina.

O mais importante reconhecimento, porém, é o do povo, do cidadão comum. É aquele que foi captado por pesquisa nacional realizada em 2009 pela Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com o Instituto Vox Populi. Os resultados revelaram que 75% dos brasileiros sabem que nos últimos cinco anos, no governo federal, “o que cresceu não foi a corrupção, mas sim a apuração dos casos de corrupção que antes fi cavam escondidos”.

Todo esse avanço, contudo, não nos faz ter a ilusão de que tudo está feito. De modo algum. A guerra contra a corrupção não permite tréguas. Temos a clareza de que não há soluções mágicas nessa área. Muitos são ainda os desafios a serem enfrentados para que o país possa avançar como um todo, de forma mais homogênea, na luta anticorrupção. O Brasil é um país federativo, e cada um dos seus entes goza de grande autonomia. Na esfera da prevenção e combate à corrupção, o muito que vem sendo feito na esfera federal precisa encontrar eco nos estados e municípios.

As causas mais profundas da corrupção – sem falar nas que envolvem a formação moral e educacional – têm suas raízes em questões mais amplas, que necessitam passar por reformas como o financiamento privado de campanhas e de partidos, o sistema eleitoral, os meandros da elaboração do orçamento público, a burocracia estatal e as leis processuais penais, que são, hoje, a principal garantia de impunidade e grandes obstáculos no combate à corrupção.

Mas é do senso comum, também, que tais reformas exigem um nível de consenso entre as forças políticas nacionais que o país ainda não alcançou.

Então, a pergunta é: enquanto não se atinge esse consenso, não há o que fazer? Claro que há. E foi nos limites dessas condições institucionais e políticas que o governo Lula conseguiu fazer, entre muitas outras iniciativas, tudo aquilo que aqui foi descrito.

Com essa diretriz, estamos implantando todo o elenco de medidas preventivas recomendadas internacionalmente e, ao mesmo tempo, reforçando a repressão e a punição. Ainda assim, temos clareza de que os efeitos mais amplos desse esforço só se farão sentir no médio prazo.

Tudo isso mostra também a importância da continuidade desse esforço. Não pode haver retrocesso nem recuo nessa caminhada, que sabemos longa e difícil. A sociedade brasileira não o toleraria. Essa luta precisa continuar.

Jorge Hage é ministro da Controladoria-Geral da União

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