Sociedade

O empresário Michael Haradom aposta no fortalecimento da cidadania de seus trabalhadores para construir uma sociedade melhor

Michael Haradom aposta no fortalecimento da cidadania de seus trabalhadores e da comunidade do entorno de sua fábrica, cobra de seus colegas que não visem somente o lucro mas que procurem construir uma sociedade melhor

Nascido em Buenos Aires, de origem judaica e coração brasileiro, Michael Haradom é daqueles homens que se não existissem certamente seria personagem de algum romancista. Em 1996, um ano antes da criação do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, ele tomou uma decisão que deu uma volta de 180 graus em sua empresa e em sua vida. Acossado por uma dívida de US$ 10 milhões, convocou diretores e trabalhadores e mexeu no salário de todos ­ para baixo e para cima. Enquanto os primeiros tiveram redução de vencimentos e benefícios, os trabalhadores receberam aumento. A partir dali foi estabelecido que ninguém ganharia mais do que oito vezes o valor do menor salário e o emprego de todos estaria garantido por um ano. O choque foi geral. Endividado e com uma penca de incertezas quanto ao futuro, Michael assumiu uma medida de alto risco. Consultores que haviam analisado a situação tinham dado o veredito: a empresa estava morta e só faltava enterrá-la.

Criou-se uma espécie de compromisso inédito entre patrões e empregados, numa improvável mistura de Cervantes e Alexandre Dumas, que alimentou esperanças e recolocou a empresa nos trilhos da produção. Embalados todos pela confiança mútua, novas ações foram acontecendo e o espectro sombrio do fechamento se dissipou com o tempo.

Com base nessa experiência, Michael sentiu que poderia avançar mais e inaugurou uma gestão empresarial diferente, voltada para a sociedade, em primeiro lugar. Para ele, o lucro é apenas consequência disso. Para tanto, inspirou-se em sua própria história de vida. Entre os 8 e 9 anos, foi aluno de um colégio interno britânico nos arredores de Buenos Aires. Com a mãe distante, apenas a avó materna o visitava a cada quinze dias. A cesta de balas, chocolates e bolachas que recebia era distribuída entre os colegas, o que tornava a visita da avó um evento aguardado por todos. Na solidão noturna de seu quarto, misturava lágrimas de saudade da família com a alegria pelo desprendimento que ainda não entendia.

Aos 14 anos ingressou no movimento juvenil Makabi, de orientação sionista e socialista. Um ano depois embarcava num navio rumo a Israel na busca de uma identidade que, mais tarde, se revelaria muito mais ampla do que o pertencimento a uma nação. Foi viver no kibutz Bror Hail, que abrigava jovens egípcios e brasileiros e era influenciado pelo Partido Trabalhista. A vida em comunidade despertou sentimentos como a solidariedade e o amor. "Foi o período que mais aprendi sobre a importância da vida", admite. Como todo jovem israelense, dois anos mais tarde ingressou compulsoriamente no serviço militar, no qual participou de confrontos contra os palestinos. Dessa experiência resultou um outro sentimento: uma profunda convicção pacifista, expressa até hoje em sua mania cotidiana de vestir roupas brancas e nunca usar a palavra luta.

Largou o Exército, o kibutz e Israel e decidiu voltar para a América Latina. Morou primeiro no Uruguai e, depois, veio para o Brasil e aqui ficou. Iniciou, então, uma carreira de executivo de multinacional. Em 1975, optou por criar o próprio negócio e, em sociedade com um amigo dos tempos do kibutz, fundou a Fersol, dedicada à síntese, produção e comercialização de produtos agroquímicos. Duas décadas depois, com a empresa em queda livre, assumiu a parte do sócio e se sentiu à vontade para fazer uma gestão diferente.

Depois do passo inicial que reclassificou os níveis salariais e gerou confiança interna, Michael iniciou uma política de fortalecimento da cidadania dos trabalhadores e da comunidade do entorno da fábrica, localizada num bairro pobre de Mairinque, a 70 quilômetros de São Paulo. Abriu a empresa para que o sindicato dos químicos falasse diretamente aos trabalhadores e propôs que ele mesmo pudesse se associar, sugestão negada e recebida com desconfiança pelas lideranças da entidade. Estabeleceu como remuneração mínima o salário defendido pelo Dieese, o que significa, em média, um valor três vezes superior ao piso salarial da categoria.

Defensor das ações afirmativas, definiu como meta tornar majoritária a presença de mão de obra formada pelos setores excluídos da sociedade, como mulheres, afrodescendentes, homossexuais, detentos em liberdade assistida e pessoas portadoras de deficiência (que ele chama de "pessoas portadoras de talentos especiais"). Com base nesse critério fez um recorte de gênero e raça. Na disputa por uma vaga, entre uma candidata branca e uma negra, a opção é pela mulher negra. As candidatas e os candidatos são procurados no banco de currículos de organizações não governamentais como os institutos Geledés e Kwanza e entidades feministas. A empresa ampliou a licença-maternidade para sete meses cinco anos antes que o Congresso Nacional discutisse e aprovasse a questão, em 2009. O pai também teve sua licença ampliada para dois meses, o que inclui o período de férias.

Michael acredita na consciência política como instrumento de mudança nas relações sociais e das pessoas com os poderes de qualquer natureza, incluindo os da fábrica. Segundo ele, "os lucros patrimoniais são mais legítimos e honestos quando contemplam um balanço favorável para toda a sociedade, e não apenas para seus acionistas e trabalhadores. A fórmula para alcançar um país mais justo e solidário passa pela politização do cidadão, pela transparência nas empresas e governos e por uma democracia participativa em todos os níveis".

A cada eleição os candidatos da região são convidados para debater suas propostas com os trabalhadores e a comunidade. Frequentemente são realizados cursos de formação política, com a participação do Instituto Legislativo Paulista e do Movimento Voto Consciente. Um resultado prático dessa iniciativa foi a criação, pelos próprios moradores do bairro, da Ouvidoria do Eleitor, em parceria com o Instituto Ágora. Até hoje os vereadores de Mairinque têm dificuldade em entender a presença daquelas pessoas nas sessões, acompanhando os debates e anotando tudo o que se diz e se aprova. Datas como o Dia Internacional da Mulher e o Dia Nacional da Consciência Negra são lembradas com atividades que promovem a reflexão e a mobilização.

Por esse caminho, não foi difícil realizar em 2002 o plebiscito popular sobre a criação ou não da Alca, um referendo sobre o desarmamento em 2005 e incentivar a visita de funcionários e seus familiares a acampamentos do MST na região de Sorocaba.

As ações com a comunidade vão da exibição de filmes brasileiros (só brasileiros) à distribuição de cestas básicas adquiridas com a doação voluntária de 1% do salário de cada trabalhador, passando pelo apoio às políticas públicas de saúde, educação e cultura. Um exemplo foi a adoção de temas como história da população negra e cultura de paz na grade curricular da rede pública do município.

Quando o Fórum Social Mundial ocorreu pela primeira vez em 2001, Michael estava lá. E assim foi nas edições seguintes, inclusive no exterior. O que o estimula no Fórum é o apelo de que um outro mundo é possível. Ele traz a mensagem para o seu campo: uma outra empresa é possível.

Por tudo isso, a Fersol passou a receber prêmios e o reconhecimento de instituições nacionais e internacionais. Também se tornou referência de responsabilidade social empresarial na imprensa. Em três pesquisas anuais consecutivas realizadas pela revista Exame, a Fersol foi considerada uma das 100 melhores empresas para trabalhar no país e uma das 20 melhores no caso das mulheres. Mas, também por conta disso, Michael Haradom é uma espécie de "bicão no baile", aquele que coloca questões desafiadoras para empresários que tratam a responsabilidade social na gestão apenas como recurso de retórica e de marketing. Muitas vezes afirmações públicas de Michael cobrando posturas mais efetivas dos colegas resultaram em inimizades e afastamentos.

Quando o Instituto Ethos lançou o Pacto Empresarial pela Integridade e contra a Corrupção e pediu a adesão dos presidentes e diretores das empresas, Michael foi na linha inversa: convocou uma reunião dos trabalhadores da fábrica para saber se eles, em primeiro lugar, estavam de acordo com a proposta. "De nada adianta a assinatura só do presidente", questionou. O apoio foi total e cada um dos presentes firmou o compromisso. "Foi a maneira que encontramos de fazer com que o combate à corrupção fosse entendido como uma coisa importante na vida cotidiana das pessoas, e não só da empresa", afirma.

A batalha é difícil no meio empresarial, apesar de registrar avanços importantes. O predomínio do lucro como objetivo máximo impede uma reflexão que Michael considera essencial: o uso de recursos públicos para o financiamento de projetos sociais e culturais. "Fazer filantropia com o chapéu alheio é muito fácil", diz ele. A Fersol, por exemplo, não usa leis de benefício fiscal para realizar atividades de caráter social ou cultural. Também não detém monopólio ou oligopólio de mercado, não possui linhas de financiamentos públicos nem tem concessões ou isenções fiscais. Em sua missão está inscrito: "A empresa professa a crença de que a cidadania e a diversidade são pilares fundamentais para o desenvolvimento da empresa no país e entende que somente a politização levará o país a um novo projeto de nação, pautado pela democracia participativa e a solidariedade".

Talvez seja por isso que Michael se diz de "cara limpa" quando apoia publicamente o Partido dos Trabalhadores. "É uma opção de consciência." Seu primeiro engajamento mais organizado foi na eleição presidencial de 1994. Ao lado de Oded Grajew e um reduzido grupo de pequenos empresários e profissionais liberais, criou o Comitê de Empresários Lula Presidente, um quase escândalo à época. Um episódio que ilustra esse momento aconteceu durante uma panfletagem na porta da Bolsa de Valores de São Paulo, quando o grupo foi hostilizado pelos operadores, cena completamente impensável nos dias de hoje.

Apesar da derrota de Lula naquele ano, o grupo decidiu continuar junto. A ideia era manter o trabalho de desmontar os preconceitos de grande parte dos empresários contra o PT. Nasceu, então, a Cives ­ Associação de Empresários pela Cidadania, que teve papel destacado nas eleições seguintes, até a vitória de 2002. Essa consciência política que tem lado nunca incomodou Michael, que faz da transparência de seus atos uma obsessão. Nas eleições ele participa desde um jantar de adesão até a distribuição de panfletos na rua.

Um calcanhar de aquiles na trajetória desse empresário é, ironicamente, o seu próprio ganha-pão. A Fersol fabrica defensivos agrícolas, conhecidos também como agrotóxicos. Um negócio que movimentou quase US$ 7 bilhões em 2009 e responde por uma fatia expressiva daquilo que o país gasta com insumos para garantir o bom desempenho da agricultura. Para quem tem militância nas causas ambientais e defende o comércio justo, não deixa de ser uma contradição (leia abaixo). Daí que uma de suas apostas no futuro tem nome: agricultura familiar.

Multinacionais controlam setor de defensivos

No processo de globalização, a concentração por meio de fusões e aquisições de empresas é um fato. Com uma ação coordenada em nível mundial, contam-se nos dedos os que controlam, por exemplo, o mercado de defensivos agrícolas. Seis empresas detêm aproximadamente 70% do mercado: Syngenta, Bayer, Basf, Monsanto, Dow e DuPont. Só o Brasil representa 16% do mercado internacional. Em números de 2009, o segmento de defensivos agrícolas movimentou no país US$ 6,62 bilhões e 1,06 milhão de toneladas. Sem contar a entrada de produtos ilegais pelas fronteiras do Paraguai e Uruguai, que representaram 9% do mercado, algo em torno de US$ 540 milhões, segundo dados da Anvisa.

As importações aumentaram 236% entre 2000 e 2007. Os Estados Unidos, nosso principal fornecedor, tinha preço médio de US$ 4,42 por quilo em 2000. Em 2007 chegou a US$ 6,62. Enquanto isso, a China, que cobrava em torno de US$ 2,87 por quilo de defensivo em 2000, baixou para US$ 2,82 em 2007. Se na década de 1980 a indústria nacional representava mais de 50% do mercado, hoje não chega a 10% de um total de 107 empresas do setor, com pouquíssimas produtoras locais. O caso da Fersol ilustra bem como a indústria brasileira foi perdendo espaço. Em 1990 ainda detinha entre 3% e 4% do volume de negócios. Hoje não alcança 1,5%. Por isso, o principal desafio de Michael Haradom atualmente é evitar que alguns genéricos destinados à agricultura tenham sua comercialização suspensa por pressões externas.

O mecanismo é simples. As grandes corporações do setor investem em pesquisa e depois patenteiam os produtos em vários países, garantindo sua propriedade por pelo menos trinta anos. Quando a validade expira, torna-se propriedade pública, surgem os genéricos de primeira geração e, logo em seguida, os de segunda geração. Para evitar que determinados produtos percam monopólio e sejam substituídos definitivamente pelos genéricos, que são extremamente competitivos, as detentoras das patentes solicitam novas patentes com alguma alteração mínima. Paralelamente, a ideia de que determinados ingredientes ativos estão proibidos em outros países é disseminada sem a devida análise do fato gerador. É isso o que está acontecendo no Brasil, algumas vezes com o apoio de entidades ambientalistas, que defendem o banimento de todos os produtos químicos. Com isso, os genéricos também correm o risco de sair do mercado.

Numa conta rápida é possível deduzir que, sem a presença dos genéricos, a agricultura brasileira se tornará mais cara e cada vez mais dependente das importações. E isso, para Michael Haradom, é um problema de soberania nacional e segurança alimentar que precisa ser resolvido. Pelas suas projeções, os custos da agricultura podem subir até 30% nos próximos cinco anos caso as autoridades federais proíbam a comercialização de determinados ingredientes ativos que passam atualmente por justas e necessárias reavaliações da Anvisa.

Com base nesse raciocínio de grande dependência de produtos importados concentrados nas mãos de poucas corporações, a Petrobras iniciou uma série de estudos para aquisição e ampliação de empresas de fertilizantes, a outra parte importante dos insumos. "Esperamos e apoiamos a participação da estatal também no segmento dos defensivos agrícolas", defende Haradom.

Marco Piva é jornalista e membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT