Internacional

Inserção do país no mundo tem mudado com intensidade e hoje o governo brasileiro valoriza e investe na relação com o continente latino-americano

Foram muitos anos de inserção no mundo voltada para a Europa ou os EUA, política herdeira do colonialismo e da dominação dos grandes países. A situação tem mudado com intensidade e hoje o governo brasileiro valoriza e investe na relação com o continente latino-americano

 

Autoridades da América Latina durante cerimônia de assinatura do ato constitutivo do Banco do Sul, ocorrido em Isla Margarita, Venezuela, em setembro de 2009. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A política exterior de um país define seu lugar no mundo. Lugar, no sentido geopolítico, da relação com as distintas forças existentes. No mundo contemporâneo, marcado pela dominação de uma única potência hegemônica e pela concentração de poder das potências centrais do capitalismo, em contrapartida ao sul do hemisfério – objeto da exploração secular dessas potências –, uma política exterior se define por sua relação com esses vetores fundamentais.

O Brasil havia tido sempre uma atitude de indiferença – até mesmo de desprezo – em relação aos outros países da América Latina. No máximo nos relacionávamos com a Argentina, parceiro ou competidor inevitável em vários planos. A América Latina como continente praticamente não existia para nós. Tampouco nos sentíamos país latino-americano. Quando pensava sua inserção no mundo, o Brasil olhava para a Europa e para os EUA, como herança do colonialismo e da dominação imperial. Como se estivéssemos obrigatoriamente condicionados por um destino manifesto de ser parceiros subordinados dos EUA e da Europa.

O Brasil havia sido escolhido pelos EUA para concluir o processo de construção da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), no conjunto do continente. O projeto foi apresentado pelos EUA em uma reunião realizada no Canadá, em 2000. Nela, todos os presidentes presentes – Cuba não fora convidada – levantaram a mão no sentido da aprovação da proposta de tornar todo o continente uma área de livre comércio, sob a hegemonia da potência dominante política, econômica e militarmente, os EUA. O único governante a não fazê-lo foi Hugo Chávez, cujo relato é de que FHC havia feito um belo discurso, mas na hora da votação levantou a mão em favor da proposta norte-americana.

Era o quadro do continente há uma década. Tudo estava preparado para que a dominação de modelos neoliberais fosse consagrada em um tratado continental, que abriria todas as fronteiras e territórios possíveis aos grandes capitais norte-americanos. Nós nos tornaríamos uma zona de maquilas – com exploração de mão de obra sete ou oito vezes mais barata que nos EUA, além mulheres e crianças não sindicalizadas, como se tornou o norte do México –, de bases militares norte-americanas, como se tornou a Colômbia e agora se tornará a Costa Rica. Um destino de subserviência, renúncia à soberania nacional, desigualdade e falta de identidade própria se perpetuaria.

O caminho mexicano

Esse foi o caminho trilhado pelo México, primeiro país a assinar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), com os EUA e o Canadá, em 1994. Nem bem o termo havia sido assinado explodiu no México a primeira crise do modelo neoliberal no continente, prontamente debelada por um empréstimo gigante dos EUA para impedir que o caminho escolhido por seu vizinho do sul não revelasse rapidamente seus limites e suas fragilidades.

Essas fragilidades, decorrentes, entre outros fatores, da promoção do capital financeiro ao setor hegemônico em nossas economias e da abertura total dos mercados nacionais ao mercado internacional, no entanto, viriam a se multiplicar. A crise brasileira de 1999 – em que o governo FHC, desesperado pela fuga de capitais, elevou a taxa de juros a 48% – confirmou nova tendência e a Argentina, no período de 2001 a 2002, enterrou definitivamente as possibilidades do modelo neoliberal.

O projeto original dos EUA era integrar aos poucos os países latino-americanos ao Nafta. Depois do México, o próximo candidato seria o Chile, porém essas crises fizeram com que Washington mudasse a estratégia. Daí surgir a proposta da Alca, que só não foi aprovada pela eleição brasileira de 2002. O governo Lula inviabilizou a Alca, que já havia sido repudiada por grandes mobilizações populares em todo o continente. Foi a primeira mudança significativa na política exterior brasileira e no lugar do Brasil no mundo.

Brasil latino-americano

A nova política exterior brasileira passou a priorizar os processos de integração regional, em vez de tratados de livre comércio com os EUA. Estes são coerentes com os modelos neoliberais, então implantados em quase todos os países do continente, mas, com a eleição de Hugo Chávez e, em seguida, com Lula eleito no Brasil e Néstor Kirchner, na Argentina, começaram a ser questionados.

O Mercosul, vítima das políticas de abertura dos mercados dos países da área ao mercado internacional, estava muito enfraquecido. A economia brasileira estava quase toda subordinada aos capitais especulativos externos e, politicamente, aos Estados Unidos. O Brasil só tinha relações relevantes com os EUA, a Europa e o Japão, praticamente nenhuma com a Ásia e a África e, com um perfil baixo, com a América Latina.

A inviabilização da Alca permitiu retomar o Mercosul e, sobretudo, passar a desenvolver outras modalidades de integração regional, como o Banco do Sul, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Conselho Sul-Americano de Defesa e, mais recentemente, a União dos Países da América Latina e o Caribe.

O Banco do Sul é um passo inicial para que os países da região, em vez de depositarem suas reservas em bancos norte-americanos – que pagam pouco e cobram muito – as utilizem para projetos regionais ou dos países da região.

A Unasul é a primeira organização de integração sul-americana que congrega todos os países da região. No seu bojo foi constituído o Conselho Sul-Americano de Defesa, que, pela de forma inédita aborda os temas de segurança da região, sem a presença dos EUA. (Interrogado pela então secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, sobre o lugar dos EUA no novo organismo, o ministro da Defesa do Brasil respondeu: “Distância”).

Os graves problemas fronteiriços entre a Colômbia, o Equador e a Venezuela foram enfrentados no marco desse conselho, assim como os conflitos mais recentes – com ruptura de relações diplomáticas – entre a Colômbia e a Venezuela.

Esses organismos expressam a soberania dos países que optaram pela prioridade da integração regional, que tem correspondência em suas políticas econômicas. Como disse a ex-ministra Dilma Rousseff1, “a soberania interna para definir nossas opções econômicas, por exemplo, só é possível porque conquistamos a soberania externa”.

Diante da crise

A combinação da soberania externa com a interna fez com que o Brasil pudesse reagir diante da crise de forma radicalmente diferente de como reagiu às crises anteriores e de como reagiram os países que assinaram tratados de livre comércio com os EUA. Para termo de comparação, basta recorrer ao comportamento de México e Brasil diante da crise. O México, ao assinar o Nafta, passou a ter mais de 90% do seu comércio exterior com os EUA. No início, recebeu grande quantidade de investimentos, mas canalizados para a fronteira norte do país, nas chamadas maquilas.

Não demorou para que essa oferta de mão de obra barata encontrasse a concorrência da China, que além disso oferece mão de obra qualificada e um mercado interno em expansão exponencial. Grande parte das empresas e dos investimentos abandonou o México. O Nafta acabou aprofundando a desigualdade, o desemprego, a miséria mexicanos.

Quando chegou a crise econômica de 2008, nascida nos Estados Unidos, o México se viu profundamente afetado, pela dependência total de sua economia em relação à norte-americana, sem quase nenhuma diversificação do comércio exterior, nem com a América Latina, nem com a Ásia. Sua economia regrediu 7% em 2009, o país bateu de novo às portas do Fundo Monetário Internacional, com a assinatura correspondente da Carta de Intenções.

Essa situação econômica, aliada ao fato de ser corredor do tráfico para o mais importante mercado consumidor de drogas no mundo, levou o México a uma situação desesperadora, com aspectos de desagregação social gravíssimos. A inserção internacional do país é, em grande medida, responsável por essa situação.

O Brasil, país de dimensões mais ou menos similares às mexicanas, fez um opção radicalmente distinta de política internacional, com consequências também totalmente diferentes. Por um lado, diversificou seu comércio externo, dependendo cada vez menos dos Estados Unidos, que passaram a ser nosso terceiro parceiro, depois da China e da América do Sul. A manutenção e inclusive a intensificação da demanda chinesa permitiram a recuperação relativamente rápida de nossa economia. Por outro, o Brasil ampliou o comércio com os países da região, especialmente com Argentina, Venezuela, Uruguai, Bolívia, Equador, Paraguai. Além do que, pelas opções estratégicas do governo, fortaleceu ainda mais, durante a crise, a extensão do mercado interno de consumo popular. A combinação desses três elementos – diversificação do comércio internacional, intensificação do comércio regional e consumo popular interno – fiz com que o Brasil atravessasse a crise de forma radicalmente diferente em relação ao México. Pela primeira vez o sul do mundo conseguiu superar a crise, enquanto o centro – e os países que dependem fundamentalmente dele – continua em crise, ao mesmo tempo em que, pela primeira vez, os setores mais pobres da população não pagaram o ônus mais grave da crise.

As crises exacerbam as circunstâncias em que se envolvem os países e, por isso, são muito significativas do caráter das políticas de cada governo. A política internacional do Brasil, em que o aspecto latino-americano é essencial, permite o exercício da soberania externa como condição da soberania interna. A política internacional articula estrategicamente com a política interna, de forma coerente.

Para que possa seguir aprofundando a integração latino-americana, a política externa brasileira precisa fortalecer antes de tudo o Mercosul, pressionando o ingresso definitivo da Venezuela, estendendo as áreas de integração. Por outro lado, precisa tirar lições de casos concretos de solidariedade, como a Operação Milagre, as campanhas de término do analfabetismo, como formas do que se chama no Fórum Social Mundial de “comércio justo”, em que cada país dá o que tem e recebe o que precisa. Se, como diz  Lula, não tem sentido um Brasil próspero cercado de países pobres, então nossas relações com eles não podem passar substancialmente por investimentos privados ou estatais, buscando o lucro. Será preciso desenvolver meios solidários em áreas como educação, saúde pública, pesquisa, entre outras, que representem exatamente esse espírito mencionado por Lula.

Emir Sader é cientista político, professor na USP e secretário da Clacso