Sociedade

Dois livros recém lançados tratam da urgente construção de um sistema de comunicação que faça da mídia um instrumento democrático e republicano

É urgente a construção de um sistema de comunicação que faça da mídia um instrumento democrático e republicano. O lançamento dos livros Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa e Mídia - Representação e Democracia, a realização da Conferência de Comunicação e encontros como o dos blogueiros progressistas auxiliam nessa elaboração

Confecom: mídia para construir cidadania e garantir direitos

Confecom: mídia para construir cidadania e garantir direitos. Foto: Paulino Menezes

O lançamento de dois livros de forte argumentação e denso material reflexivo sobre a liberdade de expressão indica que um novo clima intelectual começa a se gestar no Brasil. Além do marco da Conferência Nacional de Comunicação, realizou-se em agosto último o Primeiro Encontro dos Blogueiros Progressistas e, na cena eleitoral da disputa da Presidência, confirma-se o divórcio de um amplíssimo processo de formação da opinião pública brasileira do posicionamento partidário dos "barões da mídia".

Os dois livros são Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa ­ Direito à Comunicação e Democracia, do professor Venício Lima, com prefácio de Fábio Konder Comparato, e Mídia ­ Representação e Democracia, organizado pelos professores Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli. A importância decisiva desses livros é dupla: eles desnudam o que há de simplificação grosseira do argumento, incoerência gritante e insustentável instrumentalização da leitura de autores clássicos na campanha movida pela mídia empresarial "em defesa da liberdade de expressão"; por outro lado, reconhecendo que há um déficit na teoria democrática e na própria cultura de esquerda a respeito das relações estruturantes entre mídia e democracia na cena contemporânea, fornecem elementos e subsídios fundamentais para uma nova agenda democrática e republicana.

A reforma política já foi identificada como chave para superar a clivagem entre a cidadania ativa dos brasileiros e o sistema de representação política, que opera ainda fortemente estruturado na dinâmica mercantil e fisiológica. A construção de uma mídia democrática e republicana no país precisa agora ser posta no centro como necessária para soldar a formação de uma cidadania ativa com a formação da opinião pública brasileira.

Desnudando a narrativa liberal do "mercado de ideias"

O centro dos ensaios reunidos no livro de Venício Lima está em mostrar o desacordo entre as teses de autores clássicos republicanos como Thomas Paine e Thomas Jefferson e do liberal cívico John Stuart Mill com a tese liberal do "mercado de ideias", que sustenta as posições argumentativas da mídia empresarial brasileira. Por essa tese liberal extremada, a relação entre comunicação e democracia é, por analogia, referida à relação entre mercado e democracia. Quanto menos Estado, seja como agente público direto, seja como regulador, maior a liberdade de expressão. A "verdade", ou uma "aproximação possível do que seja a verdade", surgirá do livre choque dos argumentos e informações no mercado de ideias. Esse "mercado de ideias" deve criar seu próprio código, ou autorregulamentação. Essa é a proposta da Associação Nacional de Jornais, defendida recentemente por sua presidente, Judith Brito, durante o 8º Congresso Brasileiro de Jornais. A dispersão dos atores nesse mercado de ideias garante o pluralismo. Aquele que recebe a opinião ou informação é tratado como um cliente que age no mercado: ele escolhe, segundo seu gosto, o jornal, rádio ou canal que quer ler, ouvir e ver. A imprensa, assim constituída livremente no jogo de mercado, funciona como um "cão vigilante" em relação aos atos secretos, arbitrários, corruptos ou de má gestão dos governos.

Ora, Venício Lima mostra com propriedade como Thomas Paine, Thomas Jefferson e o John Stuart Mill de Sobre a Liberdade, editado em 1869, estão bem longe de ser arautos dessa tradição liberista ou economicista da liberdade de expressão. Preocupam-se centralmente, assim como John Milton, autor republicano de um outro clássico, Areopagítica (1664), com a formação de uma opinião pública cidadã livre. O contexto em que escreveram suas obras é diverso do contemporâneo, em que grandes grupos econômicos procuram monopolizar as notícias e as opiniões. E é bem mais certo lê-los, historicamente contextualizados, como autores que se reivindicam como tradições que pensam as condições de o cidadão, ativo na vida política, desfrutar as melhores condições de receber informações variadas e construir sua voz pública.

Assim, em uma completa contradição, os órgãos empresariais da mídia brasileira querem interditar o debate público sobre os fundamentos da liberdade de expressão... em nome da liberdade de expressão! Uma TV pública não estatal e plural é considerada um atentado à liberdade americana no campo da liberdade de de expressão. O termo "censura" é expressão é considerada excepcional expandido para designar qualquer no campo das democracias ocidentais. atividade do Estado democrático no setor de comunicação, mesmo para dos países europeus adotam outros cumprir ordens judiciais em um sistema democrático, como o direito de publicanos para regular a mídia e para resposta a calúnias e difamações.Mas a mídia brasileira certamente não inventou esses argumentos. Como em uma série de outros casos, de uma "estrutura de comunicação "importou" essas ideias de correntes liberais extremadas ou fundamentalistas presentes na tradição política norte-americana. Assim, tem de silenciar sobre importantes debates Inteligência universitária públicos e intelectuais entre liberais do "mercado de ideias" e liberais cívicos americanos acerca da necessidade informado e com uma reconhecida de o Estado intervir para pôr limites ao hate speech (discurso que incita o ódio racial e discriminação), à propagação de pornografia humilhante das pesquisas e reflexões universitárias na mulheres e pedofilia, para garantir pluralismo de vozes nas eleições, para regular a concentração da propriedade na mídia, para garantir o direito de resposta, para proibir a difusão de informações comerciais fraudulentas, para restringir ou até proibir a propaganda de cigarros, para estabelecer restrições aos horários e ambientes de difusão de filmes impróprios para crianças etc. Difundi-los por aqui seria reconhecer que o debate sobre a liberdade de expressão é legítimo até mesmo na cena dominantemente liberal norte-americana.

Mas a própria legislação liberal americana no campo da liberdade de expressão é considerada excepcional no campo das democracias ocidentais. A comunidade europeia e a maioria dos países europeus adotam outros fundamentos democráticos mais republicanos para regular a mídia e para garantir os direitos dos  cidadãos. Por isso, Iseult Honohan, autora de Civic Republicanism, chega mesmo a falar  de uma “estrutura de comunicação do bem-estar social”, em contraponto ao paradigma mais liberal norte-americano.

Inteligência universitária

Se o livro de Venício Lima traduz a inteligência pública de um intelectual, informado e com uma reconhecida erudição na área, Mídia – Representação e Democracia é a reunião mais importante editada nos últimos anos das pesquisas e reflexões universitárias na área de mídia e democracia. Um dos organizadores, Luís Felipe Miguel, é um intelectual de ponta e de referência na ciência política brasileira.

A introdução do livro é o mapeamento de como  a inteligência universitária brasileira nas últimas décadas foi construindo um acervo de diálogos  internacionais, construções conceituais, pesquisas empíricas e narrativas sobre a formação da mídia brasileira. São particularmente interessantes os ensaios de Marcus Figueiredo e Alessandra Aldé sobre intenção de voto e propaganda eleitoral e de Jorge Almeida sobre a disputa entre Lula e Serra em 2002. O ensaio de Afonso de Albuquerque revisita a origem no liberalismo inglês e norteamericano, bem como a raiz brasileira das ideias e slogans que fornecem à mídia empresarial brasileira a sua autoimagem e função na democracia.

Flávia Biroli, também organizadora da obra, em um ensaio instigante mostra a transição da figura tradicional do jornalista para a construção do "jornalismo moderno", ao mesmo tempo impessoal e fortemente opinativo. A professora Rousiley Maia, da Comunicação da UFMG, propõe um alargamento e um novo campo do estudo da mídia, além do centrado na atuação estratégica dos atores, para incorporar as dimensões normativas e intersubjetivas das lutas pelo reconhecimento e identidade.

O próprio Luís Felipe Miguel contribui com um ensaio interessantíssimo que vai ao centro dos impasses da democracia brasileira ao discutir a relação entre a mídia e o declínio da confiança na política, a partir das hipóteses da "espiral do cinismo", do "fim das ilusões" e da "percepção popular correta continuada".

Enfim, faz sentido terminar esta resenha com as belas palavras do prefácio certeiro de Fábio Konder Comparato ao livro de Venício de Lima: "Se, numa sociedade de massas, as opiniões, ideias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado".

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate