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Mahamed Abdelaziz, presidente da República Árabe Saaráui, denuncia o sofrimento e dificuldades de um povo

Mahamed Abdelaziz, presidente da República Árabe Saaráui, denuncia o sofrimento e dificuldades de um povo, que depois de mais de três séculos de colonização não conseguiu avançar na luta por sua autodeterminação

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Mahamed Abdelaziz

A França trata a região como se fosse seu quintal e não respeita as aspirações de liberdade e democracia. Foto: Louafi Larbi/Reuters

O senhor poderia fazer um breve relato histórico da situação política geral do Saara Ocidental desde que deixou de ser colônia espanhola?

Agradeço a oportunidade de nos dirigirmos aos militantes do PT e à opinião pública brasileira. Após séculos de colonização espanhola, no momento em que seria levada a cabo a descolonização do território através da celebração de um referendo em 1975, fruto de anos de luta do povo saaráui e de acordos assinados entre a Frente Polisário, legítimo representante dos saaráuis, e o Estado Espanhol, as autoridades de Madri deram um giro de cento e oitenta graus, ignorando o que havia sido acordado, e decidiram vender os saaráuis para Marrocos e Mauritânia. A Espanha traiu a palavra e os compromissos históricos assumidos com os saaráuis.

Quando esperávamos recuperar nossa liberdade, sequestrada durante mais de um século, deparamo-nos com uma segunda colonização, por parte de nossos vizinhos do norte e do sul, Marrocos e Mauritânia, com o apoio militar, diplomático e financeiro das duas ex-potências coloniais da região, França e Espanha. Uma nova forma de colonização, sem precedentes em nosso continente, já que a Espanha não cumpriu com sua responsabilidade de descolonizar o território como a ONU exigia; e Marrocos e Mauritânia ignoraram e transgrediram os fundamentos e princípios da Organização de Unidade Africana (OUA), em especial os princípios sagrados de sua carta fundacional, como o respeito das fronteiras herdadas da época colonial e o princípio de autodeterminação dos povos. O falecido líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) Samora Machel qualificou as pretensões marroquinas e mauritanas como um precedente horrendo e calamitoso para a África e uma orquestração neocolonial cujos fins são acabar com a legalidade africana, empurrando o continente para a balcanização e a desestabilização permanentes, algo que a OUA não pode se dar ao luxo de não enfrentar.

Essa nova aliança colonial deitou por terra o natural processo de descolonização, criando um vácuo jurídico e político que a Frente Polisário ocupou ao proclamar o nascimento de seu Estado, a República Saaráui, em conformidade com a legalidade de sua luta e com os legítimos direitos reconhecidos pela OUA e pela ONU.

A dramática situação significou para a Frente Polisário enfrentar a complexa tarefa de organizar a resistência político-militar contra a ocupação, proteger a população que fugia das tropas invasoras, neutralizar a ofensiva diplomática de nossos agressores, fundar as bases das instituições de nosso Estado.

Apesar da disparidade de meios e da diferença numérica, os exércitos agressores encontraram, em cada cidade, aldeia, a expressão de nossa Resistência. Nem a política de terra queimada, envenenamento de água, aniquilação de toda forma de vida, corte de árvores, queimada de plantações, uso de meios bélicos proibidos – napalm, bombas de fragmentação –, nem a campanha diplomática para desnaturalizar nossa luta, nem o blackout imposto por seus aliados reduziram a nossa gana na luta.

Nesses longos e duros anos de conflito armado, o povo saaráui consagrou seus legítimos direitos em todas as instâncias internacionais, levou o regime de Uld Dadah da Mauritânia a assinar a paz e o fim da ocupação de parte de nosso país. Conseguiu que o Reino do Marrocos entrasse em negociações com a Frente Polisário, sob a proteção do Conselho de Segurança, para a elaboração de um plano de paz que garantisse ao povo saaráui sua autodeterminação sob a proteção e o controle da ONU e da Unidade Africana.

No que o Marrocos se ampara para fazer suas demandas sobre o território saaráui?

As pretensões marroquinas em nossa região foram sofridas por praticamente todos os nossos vizinhos. O Marrocos pretende um suposto império, que chama de “Grande Marrocos”, o qual engloba o sul da Argélia, toda a Mauritânia, o norte de Máli, e o Saara Ocidental, cujas águas territoriais incluem as Ilhas Canárias. Essas pretensões foram o motivo da famosa guerra das areias contra a Argélia, da desestabilização da Mauritânia e, finalmente, da invasão do Saara em 1975.

O Marrocos talvez seja o único país que não tem fronteiras definidas com nenhum de seus vizinhos e, desde sua independência, fez dessa política expansionista e chauvinista uma pedra angular para a sobrevivência do Majzen (a elite dirigente do país). Seus custos para o Marrocos e para a região são incalculáveis e constituem a razão dos inúmeros problemas socioeconômicos que o país enfrenta hoje. Em 1975, quando a ONU e a potência colonial se dispunham a levar a cabo a descolonização do território, Marrocos e Mauritânia lançaram uma campanha reivindicativa e a Espanha levou o contencioso para a Corte Internacional de Justiça, que concluiu que os elementos documentais apresentados tinham fundamento legal capaz de afetar a descolonização do território, em particular no que se refere ao princípio de autodeterminação livre e autêntica da vontade do povo saaráui. Mas nem a decisão da Corte Internacional de Justiça, nem as resoluções da ONU e da OUA dissuadiram o Marrocos de desafiar a comunidade internacional e lançar sua agressão contra o nosso país.

A colonização do território por parte da Espanha foi produto de acordos assinados com autoridades saaráuis e entre as potências europeias em 1812, em Berlim, na conhecida Partilha da África.

Na época pré-colonial, os saaráuis viveram como comunidade independente e desenvolveram a própria cultura e as próprias formas de organização sociopolítica e econômica, sem nenhum vínculo ou relação com o Majzen do Marrocos que não fossem os normais intercâmbios comerciais pontuais.

Nenhuma instância internacional ou país reconhece as alegações do Marrocos sobre o Saara, que é apenas o país ocupante, segundo o último relatório do departamento jurídico da ONU, já que, para efeitos legais, a Espanha continua sendo a potência administradora do território.

Hassan II, pai do atual monarca, teve a coragem de entrar em um processo de negociação com a Frente Polisário, obtendo como resultado a assinatura de alguns acordos tendentes a pôr fim ao conflito e entrou em uma política de normalização diplomática com seus vizinhos. Hassan havia aceito que se os resultados do referendo fossem a opção da independência, seu país abriria a primeira embaixada na capital saaráui. Por outro lado, o monarca havia entendido que a classe política de seu país tinha de se libertar do discurso chauvinista e dos conceitos fósseis.