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Tecnologia é o meio para revolucionar a forma de fazer política e deflagrar uma radical transparência quanto às formas de governar

A Lei 9.709 é extremamente acanhada e não fomentou adoção política mais intensiv

Lei 9.709 é acanhada e não fomentou adoção dos institutos de soberania popular: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Foto: João Alvarez/Ag.A Tarde/Folhapress

O fenômeno da internet WikiLeaks, site do ex-hacker australiano Julian Assange, encerra lições aparentemente indeléveis. Confirma as previsões de Marx e Engels de que o desenvolvimento das forças produtivas, no caso a informática, deve necessariamente, em dado estágio, entrar em contradição com as vetustas formas das superestruturas políticas – e refiro-me, aqui, à velha democracia representativa, que tão bem tem servido a governos pouco transparentes, particularmente o dos Estados Unidos, como restou demonstrado em tal site.

A nada transparente democracia representativa, de origem e extração históricas eminentemente burguesas, está sendo atualmente posta à prova pelas inovações da tecnologia da informação, que vêm expondo as mazelas e as insuficiências desta provecta senhora política.

Hoje, a transparência impõe-se mesmo no contexto das instituições privadas, como recentemente sustentou um dos fundadores da Wikipedia, ao postular que “as empresas não podem ficar isoladas numa caixa. Devem compreender o peso de suas decisões em relação ao ambiente em que estão e também devem ouvir seus parceiros” (Folha de S.Paulo, edição de 22 de janeiro de 2011).

A transparência governamental, de outra banda, alçou-se à condição de “ordem do dia” e tema das agendas políticas dos governantes que se pretendem efetivamente democratas. Nesse diapasão, assumo aqui os riscos de advogar que a democracia direta, devidamente equipada pela tecnologia da informação, pode e deve superar a democracia representativa burguesa, em nome da transparência governamental e de seu potencial político revolucionário.

O caráter conservador, ínsito à forma representativa de democracia, consiste precisamente nisto: o representante político eleito passa a figurar como entidade integrada ao próprio Estado e, portanto, engajada na conservação desse aparelho voltado à manutenção do status quo da dominação de classe. Com efeito, após a delegação do mandato eletivo, os cidadãos politicamente representados não guardam aptidão constitucional de controle sobre o conteúdo dos atos dos respectivos representantes, máxime dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Algumas matérias administrativas estão mesmo sob o pálio do assim designado “segredo de Estado”, uma aberração política que merece fenecer diante dos princípios basilares da soberania popular.

Na democracia direta, os cidadãos exercem efetivo controle externo sobre o conteúdo dos atos de seus representantes.

A Constituição da República Federativa do Brasil, documento amiúde conhecido entre os juristas como Carta Magna, contempla em seu texto alguns institutos jurídicos de democracia direta, sob a denominação comum de “soberania popular”. Giza o artigo 14 de tal diploma político o quanto segue:

“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.”

Tal dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 9.709 de 18 de novembro de 1998. Cuida-se de lei extremamente acanhada, tanto que não fomentou adoção política mais intensiva dos institutos de soberania popular, nela disciplinados, por parte dos governantes que a sucederam. É cediço que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de projeto de lei são muito raramente implementados e utilizados em nosso país, provavelmente por razões de deficiência da respectiva regulamentação legal, mas sobretudo por pura falta de interesse político.

O artigo 3º da lei dispõe que o plebiscito e o referendo serão convocados mediante decreto legislativo, por proposta de no mínimo um terço dos membros de qualquer das casas do Congresso Nacional, nas “questões de relevância nacional”, conceito vago e difuso adrede deixado sem maiores especificações.

Ora, em meu entender, a lei de regência do exercício da soberania popular deveria ao menos enumerar os casos de “relevância nacional” merecedores de plebiscito ou referendo, bem assim impor ao Estado a obrigação de adotar esses institutos nos casos que elencar, dada a inércia do Congresso Nacional pátrio, até o momento, na convocação de tais formas de escrutínio direto e transparência governamental.

Notável avanço no campo da soberania popular e da democracia direta no Brasil foi encetado pelo projeto de emenda constitucional (PEC) no 26 de 2006, que em novembro do ano passado foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Tal PEC prevê a convocação de plebiscitos e referendos mediante iniciativa popular, desde que subscrita por 1% do eleitorado nacional, distribuído por ao menos cinco Unidades da Federação, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles, sendo certo que, nada obstante, ao Congresso Nacional caberia aprovar em última instância tal iniciativa.

Considerando, no entanto, que a iniciativa popular tem sido pouco efetiva em nosso país, caberia ao Estado brasileiro oferecer meios mais eficazes de proposição, discussão e subscrição de projetos desse jaez, como a manutenção de sites e lan houses públicos com tal desiderato.

Demais disso, o atual estágio de desenvolvimento da tecnologia da informação, a qual evoluiu sobremaneira ulteriormente ao advento da aludida lei de soberania popular, guardaria o condão de revolucionar a forma de fazer política no Brasil, como suplantar a democracia meramente representativa pela direta e deflagrar, assim, radical transparência quanto às formas de governar.

Ex positis, tomo a liberdade de sugerir algumas singelas medidas tendentes, no meu modo de entender, a encetar o processo da radicalização da democracia no Brasil, colimando atingir a plenitude da soberania popular constitucionalmente prevista – e, nesse sentido, a tecnologia da informação desempenha papel axial na consecução da democracia direta.

Indubitavelmente, o pressuposto do sucesso de tais medidas consiste decerto na implementação de uma prévia política de inclusão digital. Ora, considerando que, de uma população de 190 milhões de indivíduos, apenas 42 milhões de brasileiros têm acesso diário à internet, despiciendo asseverar que a rede mundial de computadores ainda ostenta evidente ranço elitista no Brasil, situação esta que obsta, por ora, a soberania popular pela via da democracia direta devidamente amparada no equipamento atual da informática.

Inclusão digital, portanto, figura como a palavra de ordem imprescindível de toda essa especulação política.

Nada obstante, supondo como dada a inclusão digital no Brasil, eis as medidas sugeridas:

  •  Voto digital pela internet em todos os escrutínios: o Brasil já demonstrou à sociedade sua enorme competência em matéria de tecnologia eleitoral, ostentando o pioneirismo mundial quanto ao voto eletrônico; o próximo e relativamente fácil salto tecnológico eleitoral consistiria na votação em computadores pessoais ou públicos colocados à disposição dos cidadãos.
  •  Diário Oficial on-line, disponibilizando ao público gratuita e diariamente, na internet, os atos dos três Poderes da União; a publicação de jornais e demais periódicos privados na internet já é uma realidade consumada, e não há dificuldade em fazer o mesmo com os diários oficiais.
  • Plebiscito e referendo obrigatórios em determinadas matérias previstas em lei, consoante já aventado; escrutínio digital também, nesses casos.
  •  Fomento, mediante sites e lan houses públicos para tanto, da proposição, discussão e subscrição de projetos de lei, plebiscitos e referendos de iniciativa popular, com votação também digital.
  • Submissão dos atos administrativos mais relevantes do Poder Executivo à apreciação pública pela internet, de sorte que aos cidadãos conceder-se-ia a possibilidade de avaliar tais atos com comentários e atribuição de notas; a popularidade do governo e suas decisões poderiam assim ser aferidas por instrumentos públicos, que substituiriam os institutos privados de pesquisa de opinião.
  • Nos moldes do inciso anterior, submissão à avaliação pública pela internet dos projetos de lei em trâmite no Poder Legislativo, de modo que aos cidadãos seria dado inclusive acompanhar o processo legiferante e, nele, a atuação de seus representantes.
  • Quanto aos Tribunais de Contas, suas decisões também seriam diariamente informadas ao público, pela internet, para apreciação de seu conteúdo e da atuação de seus respectivos conselheiros.

São medidas relativamente singelas e de fácil instituição, às quais decerto podem ser adicionadas outras aptas a aperfeiçoar o sistema de soberania popular. O estágio atual da informática permite e enseja a consecução da democracia direta e da plena transparência governamental, metas a que um mandato que se pretende democrático e popular, como o atual do PT, não pode se esquivar.

Tais foram as modestas proposições cujo risco decidi assumir voluntariamente. Em caso de concordância, fico no aguardo de outras sugestões de democracia direta e transparência governamental na era da informática.

Luís Fernando Franco Martins Ferreira é membro do Núcleo de Estudos de O Capital – PT/SP, bacharel em História pela USP e procurador federal da Advocacia-Geral da União