Nacional

A socióloga Maria Victoria Benevides fala sobre quais devem ser as bases de uma reforma política que atenda aos interesses da sociedade.

Uma reforma política não será a salvação da lavoura, mas tem de partir de alguns pressupostos. Vamos fazer reforma política para quê? Para quem? Essas perguntas valem para todas as reformas, mas muito mais em relação à política porque ela é a mãe de todas as reformas

Em um sistema que predomina aspectos como o personalismo, o príncipio republican

"Em um sistema que predominam aspectos como a conciliação, o personalismo, os clãs, o príncipio republicano fica enfraquecido". Foto: César Ogata

A socióloga Maria Victoria Benevides é professora titular da Faculdade de Educação da USP. Militante petista, sempre que solicitada não se furta a esclarecer e qualificar o debate partidário. Foi assim quando, convidada por Lula, organizou o seminário “Reforma Política”, no Instituto Cidadania. O resultado do projeto está no livro Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victoria, Paulo Vannuchi e Fabio Kerche, da Editora Fundação Perseu Abramo.

Para Teoria e Debate, Maria Victoria fala sobre quais devem ser as bases de uma reforma política que venha realmente a atender aos interesses da maioria da sociedade.

O atual sistema político é compatível com a república democrática brasileira?
Não. No sentido dos conceitos e da experiência democrática e republicana das nações mais desenvolvidas, não temos um sistema político efetivamente calcado, na teoria e na prática, em princípios republicanos e democráticos.

Em primeiro lugar, a questão da democracia. A nossa tem, efetivamente, apesar dos defeitos por ação ou omissão, alternância no poder, eleições livres, imprensa livre, pluralidade partidária, tolerância entre os adversários, interdependência e equilíbrio entre os poderes, voto universal,  garantias da magistratura e das liberdades individuais. Isso tudo compõe um quadro de democracia política e representativa e se coaduna  com o quadro de democracia moderna liberal.

Porém, mesmo do ponto de vista político  (isto é, sem entrar na questão dramática da desigualdade social) falta identificar democracia com efetiva soberania popular. Temos definidas e atuantes as formas da democracia representativa , mas ainda não temos as de efetiva participação direta do povo, embora  a Constituição as tenha  acolhido em 1988. “Todo poder emana do povo que o exerce por meio de  representantes eleitos ou diretamente”, é o que consta do seu artigo primeiro.

Nossa Constituição, vítima de  de sessenta emendas  e  que já teve novidades por obra da necessária  legislação complementar, não aprofundou o princípio da democracia direta associada à democracia representativa. Ao contrário, a lei nº9.709/98 limitou-o drasticamente,  ao determinar que os plebiscitos e os referendos somente poderiam ser convocados pelo Congresso. Isso elimina a possibilidade  que existe no mundo democrático,  de o próprio povo – organizado, evidentemente - entrar com um pedido de plebiscito ou de referendo.

Nossa democracia é limitada. Considero que essa limitação não se dá exclusivamente por causa do nosso sistema político, mas também pelo nosso sistema econômico, cujo abuso , aliado à manutenção das oligarquias, são consequências do capitalismo e do tal neoliberalismo. Democracia, qualquer que seja sua adjetivação, pressupõe, SEMPRE, a defesa e a promoção dos direitos humanos, individuais, socioeconômicos, culturais e ambientais.

Como o poder econômico avança na política de uma maneira tentacular e capilar, em todas as instâncias, também impede que o sistema político possa abrir brechas para aprofundar a  soberania popular, uma exigência  absolutamente inarredável do conceito de democracia.  Não defendo o conceito minimalista de democracia exclusivamente baseado na alternância do poder, na existência de partidos, embora  sejam condições  indispensáveis.  Há regimes autoritários  com partidos políticos, mas não há democracia sem partidos  baseados na noção de pluralismo e  de participação efetiva do povo soberano.

Por isso, defendo a ampliação da democracia participativa, não apenas em relação à realização de plebiscito e referendo, como também para facilitar a prática da iniciativa popular legislativa, inclusive em caso de emendas constitucionais.  Nesse sentido, defendo as propostas da OAB já encaminhadas ao Congresso Nacional desde 2004.

Do mesmo modo, não há como defender reforma política sem rever a fundo a concessão pública de meios de comunicação de massa. Só essa questão merece uma capítulo à parte.

Em segundo lugar, com relação à República, a questão é ainda mais  complicada. A Constituição estabelece o regime republicano, opção que foi respaldada por plebiscito, previsto nas disposições transitórias. Mas a ideia de República permaneceu diluída como se fosse apenas um regime por oposição à Monarquia. Não se esclareceu, à época,  o que significava  defender e escolher  o princípio republicano.

O principal de um regime republicano é a prevalência do interesse público, sempre vinculado à transparência, à responsabilidade e à prestação de contas  E isso realmente não existe na prática cotidiana  em nenhuma instância de poder em nosso país,  do pequeno município à União, nas  empresas, nos sindicatos,na imprensa,nas universidades, nas ONGs e também nos partidos políticos. Basta lembrar a proliferação de grupos e facções dentro de partido, muitas vezes apenas por interesses particulares.

Em partidos como o PT sempre houve uma disputa política entre facções, mais calcada em escolhas ideológicas, em aspectos doutrinários. Mesmo assim, quando nossos parlamentares se elegem, a maioria tem como principal preocupação a sua reeleição. Essa é uma questão crucial quando se discute o voto em lista fechada.

Então, em um sistema político em que predominam aspectos tradicionais da política, como a conciliação, as oligarquias, o clientelismo, o personalismo, os clãs, o princípio republicano fica extremamente enfraquecido. Lembro-me de uma ocasião em que me disseram que o então presidente Sarney tinha em  mãos uma bancada maior que a do PT no Congresso.

De uns tempos para cá, o termo republicano tem sido usado com muita frequência.  Mas a ideia de República e seus adjetivos corre por aí esvaziada do sentido original, que é forte e pode motivar a ação política.

Uma reforma política vem a calhar?
Uma reforma política não será a salvação da lavoura, mas tem de partir de alguns pressupostos. Vamos fazer reforma política para quê? O que queremos com isso? Isso vale para todas as reformas, mas em relação à política muito mais, porque ela é tida como a mãe de todas as reformas, define competências de poder, quem o exercerá, por quê, em nome do quê ou de quem, como vai chegar lá, como esse poder será controlado,  quais são os contrapoderes etc.

Em função da definição de poder é que ocorrerão todas as outras reformas. Que tipo de exigência faremos às pessoas que nos representam – nós, o povo – para promover uma coisa tão séria como uma reforma tributária? Isso vale para tudo em um sistema político, na relação entre Estado e sociedade.

Quais devem ser os principais pontos dessa reforma?
Podemos optar entre uma reforma política que apenas modifique o sistema eleitoral e partidário, para com isso garantir a governabilidade, e uma que aumente a representatividade da sociedade e a participação popular. Ao privilegiar a governabilidade, estamos dando um peso maior para as instituições de poder e as relações entre Executivo e Legislativo, e com isso podemos dar facilidade aos governantes em um determinado governo, que pode promover políticas boas, mais ou menos, ou ruins para o povo. A governabilidade em si não é boa, mas pode ser boa dependendo para quê.

E se optarmos por uma reforma que garanta a representatividade?
Defendo mudanças importantes debaixo da rubrica ampla de reforma política, que aumente a legitimidade da representação, no sentido democrático e da participação popular, que enfatize a soberania popular e o respeito integral aos direitos humanos.

A partir disso devemos discutir questões como o papel da Justiça Eleitoral, a fiscalização sobre o poder econômico, os diversos  instrumentos do sistema eleitoral e partidário, como o voto em lista fechada, sistema proporcional ou majoritário, ou misto, o financiamento das campanhas eleitorais, as coligações, a existência do Senado... Dentro de cada um desses aspectos e instrumentos há uma série de possibilidades, por isso o tema é extremamente complexo. Não existe nenhum sistema eleitoral e partidário perfeito. Sobre a lista fechada, por exemplo: como e por quem será elaborada e ordenada?  Quais os critérios e exigências? Que controle terão os militantes do partido sobre sua elaboração?
Sobre o financiamento público das campanhas. Quem vai decidir a divisão dos fundos e a fiscalização sobre a prestação de contas? Qual o papel da Justiça Eleitoral? Haverá que tipo de cláusula de desempenho?

Hoje existe um certo consenso sobre  fidelidade partidária. Mas há também a possibilidade de recall, um instrumento que existe em outros países.

O que é o recall?
Recall é a possibilidade de questionar o mandato do eleito caso ele, por ação ou omissão, descumpra de forma explícita, sem ambiguidades, o que prometeu em campanha ou o programa sob o qual se elegeu. Mas, quando se trata de reforma política,  tudo é correlato, pois podemos exigir isso quando temos fidelidade partidária, que é muito mais simples no sistema de lista fechada. Assim como o financiamento público de campanha. Há pontos que considero importantes para uma lista fechada democrática, mas não são consensuais nem dentro do mesmo partido. No PT, por exemplo, não são.