Cultura

Produção cinematográfica chinesa já está na 6ª geração, reconhecida e premiada mundialmente, mescla em sua trajetória parte da história cultural da China

O cinema já tem longa tradição na China e em geral são produções premiadas nos principais festivais do mundo. Em Adeus Minha Concubina, de Chen Kaige, o título do filme se volta à expressão artística maior do país: a Ópera de Pequim

Ópera chinesa

Ópera Chinesa . Foto: Jason Lee/ Reuters

O cinema da China, ressurgindo após o fim da Revolução Cultural, faria seu triunfal advento no circuito planetário nos anos 1990, com os espetaculares painéis ou murais realizados pelos diretores Chen Kaige e Zhang Yimou. Eles e alguns outros ganhariam o rótulo de “5ª. geração”, em atenção à longa história da sétima arte no país. Desde então já receberam em seu conjunto cerca de trinta prêmios só nos três festivais mais importantes, os de Cannes, Veneza e Berlim.

Mais cineastas iriam surgindo e constituindo uma 6ª geração. Os novos assestaram suas câmeras sobre as transformações radicais das metrópoles, especialmente entre os jovens e seu confronto com os pais, antes impensável. Filmes baratos, com visada documental, autorais e intimistas, rejeitando o sopro épico que perpassa pelos da geração anterior.

Semelhante a essa oscilação estética entre formas épicas muralistas e a mutável realidade imediata foi o que se viu anos atrás, na Ópera de Pequim e na filmagem de suas encenações. Não é questão de pouca monta, num país que fez uma revolução comunista, onde uma vasta plebe, mantida em estado de servidão por milênios, conquistou seus direitos. A expressão artística maior do país era e é a Ópera de Pequim, uma combinação imemorial de teatro, música, canto, dança, mímica, artes marciais, malabarismo, acrobacia. Com rígidos protocolos e entrechos convencionais, fala de épocas lendárias, com reis, rainhas, intrigas palacianas, feiticeiros, animais antropomórficos. Uma de suas peças mais populares é O Rei Macaco Contra os Dezoito Santos Guerreiros, título que não devia andar longe dos ouvidos de Glauber Rocha quando fez O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Embora passando pelo crivo que a transfiguração pela arte confere, a Ópera fornecia boas fatias da cultura chinesa, de suas mentalidades, de suas antigas hierarquias e cerimoniais. Mas se esmerava em focalizar um regime ultrapassado e mais do que iníquo. Muita gente se preocupou, cogitando que as conquistas políticas e sociais deveriam se expressar numa nova dramaturgia. E, sobretudo, que a Ópera devia abdicar de protagonistas aristocráticos e passar a representar o povo, com personagens em que o povo se reconhecesse e com estórias semelhantes às suas. Velha reivindicação do realismo socialista, que já enfrentara percalços, por exemplo, na União Soviética.

A ocasião surgiu e foi devidamente aproveitada. A Revolução Cultural, como se sabe, paralisou tudo, não só escolas mas também a Ópera de Pequim e outras óperas regionais. O país ficou em suspenso por dez anos, enquanto a tarefa de demolição prosseguia. Um dos mais interessantes feitos, tanto artístico quanto político, foi a recriação da dramaturgia destinada à Ópera. Enquanto isso, as montagens preexistentes corriam o risco de desaparecer, com perda de um patrimônio da humanidade de valor incalculável. Há registro de que oito espetáculos inéditos foram encenados e depois transformados em filmes, hoje no olvido, que se tornaram anátema. Nas biografias da Viúva Chiang, como ficou conhecida a última esposa de Mao Tsé-tung, credita-se a sua iniciativa e controle essa tarefa – mais do que tarefa, missão. Após a morte do marido, ela e mais outros três líderes, que tinham integrado a junta de governo da nação por um bom tempo, seriam condenados por formar a Camarilha dos Quatro; e tudo o que realizaram foi anulado. Ficaram impressas na memória as imagens do julgamento, que durou anos, com os réus tendo pendurados ao pescoço cartazes cheios de ideogramas detalhando seus crimes, e a desaforada Viúva Chiang que o tempo todo riu e xingou seus acusadores.

O cinema da China, ressurgindo após o fim da Revolução Cultural, faria seu triunfal advento no circuito planetário nos anos 1990, com os espetaculares painéis ou murais realizados pelos diretores Chen Kaige e Zhang Yimou. Eles e alguns outros ganhariam o rótulo de “5ª. geração”, em atenção à longa história da sétima arte no país. Desde então já receberam em seu conjunto cerca de trinta prêmios só nos três festivais mais importantes, os de Cannes, Veneza e Berlim.

Mais cineastas iriam surgindo e constituindo uma 6ª geração. Os novos assestaram suas câmeras sobre as transformações radicais das metrópoles, especialmente entre os jovens e seu confronto com os pais, antes impensável. Filmes baratos, com visada documental, autorais e intimistas, rejeitando o sopro épico que perpassa pelos da geração anterior.

Semelhante a essa oscilação estética entre formas épicas muralistas e a mutável realidade imediata foi o que se viu anos atrás, na Ópera de Pequim e na filmagem de suas encenações. Não é questão de pouca monta, num país que fez uma revolução comunista, onde uma vasta plebe, mantida em estado de servidão por milênios, conquistou seus direitos. A expressão artística maior do país era e é a Ópera de Pequim, uma combinação imemorial de teatro, música, canto, dança, mímica, artes marciais, malabarismo, acrobacia. Com rígidos protocolos e entrechos convencionais, fala de épocas lendárias, com reis, rainhas, intrigas palacianas, feiticeiros, animais antropomórficos. Uma de suas peças mais populares é O Rei Macaco Contra os Dezoito Santos Guerreiros, título que não devia andar longe dos ouvidos de Glauber Rocha quando fez O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Embora passando pelo crivo que a transfiguração pela arte confere, a Ópera fornecia boas fatias da cultura chinesa, de suas mentalidades, de suas antigas hierarquias e cerimoniais. Mas se esmerava em focalizar um regime ultrapassado e mais do que iníquo. Muita gente se preocupou, cogitando que as conquistas políticas e sociais deveriam se expressar numa nova dramaturgia. E, sobretudo, que a Ópera devia abdicar de protagonistas aristocráticos e passar a representar o povo, com personagens em que o povo se reconhecesse e com estórias semelhantes às suas. Velha reivindicação do realismo socialista, que já enfrentara percalços, por exemplo, na União Soviética.

A ocasião surgiu e foi devidamente aproveitada. A Revolução Cultural, como se sabe, paralisou tudo, não só escolas mas também a Ópera de Pequim e outras óperas regionais. O país ficou em suspenso por dez anos, enquanto a tarefa de demolição prosseguia. Um dos mais interessantes feitos, tanto artístico quanto político, foi a recriação da dramaturgia destinada à Ópera. Enquanto isso, as montagens preexistentes corriam o risco de desaparecer, com perda de um patrimônio da humanidade de valor incalculável. Há registro de que oito espetáculos inéditos foram encenados e depois transformados em filmes, hoje no olvido, que se tornaram anátema. Nas biografias da Viúva Chiang, como ficou conhecida a última esposa de Mao Tsé-tung, credita-se a sua iniciativa e controle essa tarefa – mais do que tarefa, missão. Após a morte do marido, ela e mais outros três líderes, que tinham integrado a junta de governo da nação por um bom tempo, seriam condenados por formar a Camarilha dos Quatro; e tudo o que realizaram foi anulado. Ficaram impressas na memória as imagens do julgamento, que durou anos, com os réus tendo pendurados ao pescoço cartazes cheios de ideogramas detalhando seus crimes, e a desaforada Viúva Chiang que o tempo todo riu e xingou seus acusadores.

Tive oportunidade de assistir um desses oito filmes, O Oriente é Vermelho. Aspiração e plataforma, trazia o mesmo título da canção que o primeiro satélite espacial chinês emitia sem cessar, para irritação dos adversários. No melhor estilo da Ópera de Pequim, o filme contava uma história da revolução sintetizada em meia dúzia de quadros fortemente simbólicos e alegóricos. Era de uma beleza plástica incomparável, apesar de sua modernidade.

Quem se lembrar de um famoso quadro da Ópera tradicional há de entender este. Na tradicional, A Travessia do Rio sugeria uma canoa transpondo a correnteza, no palco nu, sem qualquer acessório. Dois personagens, o barqueiro e a passageira, através da linguagem corporal, viviam e davam a sentir os apuros da situação, com a canoa arriscando naufrágio várias vezes, mudando de posição, girando sobre si mesma, ambos equilibrando-se precariamente e quase caindo na água. Um prodígio de mímica. O quadro mais impressionante do novo filme também era uma travessia de rio, celebrando um episódio da Longa Marcha. Não havia preocupação verista, a encenação apostava no artificialismo, a água do rio não fluía e as montanhas eram pintadas. Homens e mulheres, rompendo grilhões, portavam descomunais bandeiras vermelhas, que, objeto de malabarismo, faziam turbilhonar em todas as direções. Camaradas tombavam pelo caminho, levando às lágrimas quem assistia e recordava seus mortos em lutas similares. O filme terminava por mais um recurso anti-ilusionista, com a câmera apeando do palco, focalizando a plateia apinhada e subindo para um close na estrela vermelha do teto do teatro: só aí o espectador percebia estar em meio a uma récita da Ópera de Pequim. Quando as luzes se acenderam no cinema da Universidade do Texas em Austin, a plateia, composta de estudantes chineses, aplaudiu calorosamente.

Reaberta após o término da Revolução Cultural, a Ópera de Pequim continua apresentando apenas os entrechos ancestrais, seja em São Paulo, Paris ou Pequim. A modernidade e os problemas do povo ficaram de fora, o patrimônio da humanidade está preservado: pena que as duas vertentes não pudessem coexistir.

Em Adeus minha concubina (direção de Chen Kaige, 1993, Palma de Ouro em Cannes) o título do filme alude ao quadro da Ópera em que o imperador, às vésperas da batalha em que será derrotado, despede-se de sua favorita, ambos cantando um dueto. Centrado na amizade de dois meninos aprendizes de ator, o filme mostra como aquele que se especializaria na concubina, com sua voz de falsete, ficaria sem trabalho durante os dez anos da Revolução Cultural. E quando, finalmente, a Ópera é reaberta e ele pode retomar seu papel, tinha perdido a voz, e por isso se suicida, degolando-se em cena. Ato simbólico de mais essa tragédia que engolfara a China e que O Oriente é Vermelho, no esplendor de sua beleza, encarnara em momento de triunfo.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate