Política

Para resolver o problema da desigualdade racial no Brasil é preciso a adoção de medidas, como cotas, mas, se o respeito a elas não se impõe, de nada servem

O fato de o 4º Congresso do partido estabelecer critério étnico-racial na composição de suas instâncias impõe uma reflexão mais complexa sobre a questão racial, que não se resolve, sabemos, apenas do ponto de vista matemático, configurado nos 20%

Juventude negra de Brasília em luta pelo direito às cotas

Juventude negra de Brasília em luta pelo direito às cotas. Foto: Marcelo Casal/ABr

Para uma interpretação mais correta da pergunta no título acima, é preciso se dar conta do processo naturalmente excludente dos não favorecidos na sociedade brasileira, no qual estão incluídos também naturalmente os negros. Um processo perverso que obscureceu visões e impediu por muito tempo a inadiável tarefa de transformação. Há muito somos protagonistas de uma luta que está no centro dos debates da sociedade contemporânea. Uma reflexão que leva a insistir na necessidade de aprofundamento do conhecimento da realidade, interrogando-nos a propósito de nossa própria contribuição para a afirmação de nosso objetivo maior, produzindo ideias que possam mudar o mundo ou reafirmar nossos valores diante de uma realidade adversa, pois restam poucas dúvidas sobre a ainda crescente violência contra o outro, o diferente na cor e, portanto, “ameaçador”.

Mas um caminho não se faz apenas com ideias. É preciso um caminhar em que cada passo produza novos traços de uma outra realidade. É fácil afirmar categoricamente que a desigualdade racial no Brasil é fato concreto e que existe um apartheid à brasileira, que os negros e negras não têm o mesmo acesso que os brancos a mercado de trabalho,  universidade, eventos culturais etc. Para resolver esses problemas, é preciso medidas, como a adoção de cotas. Mas não basta conceder cotas! De nada servem as cotas se o respeito a elas não se impõe.

Esse preâmbulo se faz necessário diante da relevância do papel da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT, que assume novas configurações a partir do estabelecimento, no 4º Congresso do partido, do critério étnico-racial na composição de suas instâncias, tomando como referência a participação mínima de 20% desse segmento nas chapas e direções. Isso impõe uma reflexão mais complexa da questão racial, que não vai se resolver, sabemos, apenas do ponto de vista matemático, configurado nos 20%. Esse percentual tende a ser simbólico se a questão racial no partido não assumir proporções maiores que as de hoje.

Em certo sentido, o Partido dos Trabalhadores deveria ser a narrativa de uma conquista importante do país no reconhecimento da igualdade racial, por meio do Estatuto da Igualdade Racial, da conquista das cotas nas universidades públicas, entre outros avanços – uma história emprenhada por justiça social e por liberdade. Mas o sucesso dessas mudanças ainda merece uma reflexão, na qual subjazem as interações entre os diversos atores dessa luta, que não se esgotam em percentuais, mas continuam ainda na tentativa de compreensão, por parte dos componentes do Partido dos Trabalhadores, da importância de manter ativa a pauta de combate ao racismo.

O Brasil conseguiu, durante os últimos oito anos, implementar políticas públicas sobre a questão racial jamais vistas antes, o que lhe dá a possibilidade de enfrentar outros tantos desafios e avançar no rumo que os governos democráticos de Lula e Dilma impuseram a essa pendência. Nessa empreitada, o PT sempre foi protagonista em busca de caminhos que levem à plena inserção de negros e negras em todos os segmentos da sociedade – no mercado de trabalho, na universidade, nos meios de comunicação, nas instâncias partidárias –, além de promover a cultura afrodescendente Brasil afora.

Mas, passados 120 anos do rompimento do Brasil com a escravidão e após décadas da denúncia e derrocada do Mito da Democracia Racial, ainda precisamos gritar que o direito à cidadania tem de ser igual para todos e enfrentar a sanha dos representantes da elite na grande mídia, com editoriais e artigos que desqualificam as políticas de igualdade racial do governo. Nos parlamentos buscam a todo custo minimizar nossas conquistas, como foi a tentativa do DEM de acabar com as cotas para afrodescendentes nas universidades públicas e imputar inconstitucionalidade ao Decreto nº 4887/2003, por meio de ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal.

Como disse brilhantemente Octavio Paz (Corriente Alterna), “a semente é a metáfora original: cai no solo, em uma fenda do terreno, e se nutre da substância da terra”. Germinamos nossa luta sob a crença de que nossos direitos estão no elo que nos liga a nossa identidade, nossa memória e nosso passado, e, assim, expressamos nossa liberdade individual de reivindicar nosso lugar de direito na sociedade e recusar o sistema social brasileiro de bases racistas.

Sob a crença de que cidadania é a garantia dos direitos civis, políticos e sociais, é  possível entender que para salvaguardá-los é preciso liberdade individual e compromisso coletivo para garantir nos fóruns de decisões políticas proteção contra a violação desses direitos, forjando nosso lugar, com nossos valores, percepções e papéis sociais, na sociedade, conferindo sentido à luta de Zumbi dos Palmares por liberdade. É a nossa voz construindo um país justo e fraterno e provocando mais vozes para celebrarmos esse papel transformador, rumo à democracia racial, que o Estado brasileiro, sob a batuta de Lula e Dilma, possibilitou.

Entretanto, não podemos ignorar as vozes dissonantes, que, com ideias preconceituosas, reproduzem o discurso ultrapassado daqueles que acaudilharam o Brasil e seu povo por tantos anos. Essa realidade impõe-nos uma energia criadora de coisas e ideias que devem ser incorporadas definitivamente a nossa prática militante. Por isso, o atual critério étnico-racial aprovado pelo Partido dos Trabalhadores traz uma nova ordem de atuação a nossa militância. Ou seja, a esse novo propósito, novas necessidades, com variada e extensa agenda de atividades para que possamos subscrever essa ação em todas as instâncias do partido, fazendo valer seu significado revolucionário.

De início, disposição não nos falta. Mas o interesse pela questão e a procura por adotá-la devem passar por um conjunto de decisões políticas em que cabe ao partido, em sua práxis, construir as condições necessárias para a consolidação da medida adotada, e, a nós, militantes, o papel de cobrar e promover ações que nos conduzirá a preencher essa esperança libertária.

Cida Abreu é secretária Nacional de Combate ao Racismo do PT