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A Comissão Nacional da Verdade, para Nilmario Miranda, é mais um passo para esclarecer os fatos do período ditatorial e consolidar a democracia brasileira

Assim que o Senado votar a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, a história de um triste período do Brasil começará a ser escrita. Desde o início do processo de redemocratização há a expectativa de mostrar ao país o que aconteceu. O debate sobre o período ditatorial é acalorado, já que envolve discutir mortes, desaparecimentos e toda sorte de violência e justiça. Nilmário Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (2003-2005), atua desde a ditadura pela criação de organismos que investiguem os fatos daquele período e façam justiça à memória de tantos que lutaram contra o autoritarismo. Autor de Dos Filhos deste Solo, em parceria com Carlos Tibúrcio, Nilmário fala sobre a Comissão da Verdade, o processo de votação e rebate críticas sobre sua criação tal como foi aprovada na Câmara dos Deputados

Nilmario Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, durante entrevista

Nilmario Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, fala sobre a Comissão Nacional da Verdade. Foto: Arquivo FPA

Qual o objetivo central da Comissão Nacional da Verdade?

É uma espécie de política para garantir o direito à memória e à verdade como parte da transição de uma sociedade autoritária para a democrática. Na democracia há uma série de deveres do Estado com a sociedade: reparação financeira, moral e histórica das pessoas que tiveram direitos violados, além de instituições permanentes ou temporárias para cuidar do direito à memória e à verdade, para esclarecer os fatos que venham a se tornar parte da história oficial do país. As gerações presentes e futuras devem conhecer o que ocorreu no país no período ditatorial, inclusive para não revivê-lo. Dizem que a Constituição mais democrática do mundo era a da Alemanha, mas ninguém a defendeu, pois os cidadãos não eram democratas, tanto que embarcaram na aventura do nazismo.

Antes, um passo importante foi o reconhecimento da responsabilidade do Estado.

No Brasil reconhecemos a responsabilidade do Estado, mas não houve punição criminal dos mandantes e executores de torturas, sequestros e mortes. A história não acaba com a Comissão da Verdade, ela é mais um degrau na construção da democracia. Tivemos em 1979 a anistia restrita, excludente, parcial, mas fundamental para o país apressar o fim da ditadura. Ela trouxe muitas pessoas do exílio, foram canceladas as punições e as suspensões dos direitos políticos de dezenas de milhares de pessoas. Em 1995, tivemos a lei que reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado e o tema mortos e desaparecidos políticos, que era tabu, passou a ser discutido abertamente na esfera pública.

Em 2001, houve a criação da Comissão da Anistia. Notem quantos anos entre uma ocorrência e outra. Instituiu-se a comissão para avaliar e reparar todos os casos de pessoas que, na ditadura militar, sofreram todo tipo de agravo, até mesmo perda de vínculo laboral por perseguição política, incluindo 5 mil militares que foram afastados das Forças Armadas e milhares de demitidas do setor público, em todos os níveis, e de empresas privadas. Todos que sofreram prejuízos nos estudos, na ascensão profissional, com a censura tiveram cobertura. E agora estamos em busca da verdade.

E onde está a verdade?

A verdade não está nos milhões de documentos já abertos porque eles retratam o que o Estado elaborava sobre as pessoas que vigiou, puniu, perseguiu, prendeu, demitiu, exonerou, torturou, matou. Para conhecer a verdade é preciso ter acesso a muitos outros documentos e ouvir a voz das vítimas, que está na Comissão da Anistia e na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em arquivos particulares, ou em memoriais, como o de Minas, quando for concluído, onde se concentrarão muitas informações. À Comissão da Verdade cabe dizer o que aconteceu na ditadura, esse é o sentido dela. É um passo gigantesco na conservação democrática.

Mas o que se pretendia com essa Comissão era um pouco mais.

Se falava em Comissão de Verdade e Justiça. Seria um passo para a responsabilização criminal, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) referiu-se à ação dos torturadores como crimes conexos, deixando-os impunes. A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) tem um projeto que prevê a revisão da Lei de Anistia e abre a possibilidade de julgamentos de agentes do Estado responsáveis por tortura, desaparecimento e morte de militantes de esquerda que se opuseram à ditadura. Mas não há ainda um clamor da sociedade que leve o Congresso a aprovar isso. Tanto que sou um dos críticos da conduta da OAB de ter antecipado a consulta ao STF sobre a expressão “crimes conexos” anistiar torturadores. Foi prematuro. A maioria da sociedade não vê importância nesse assunto, e assim o STF ficou desembaraçado para confirmar a impunidade. Então, a Comissão da Verdade perdeu a Justiça. Nem por isso ela perde sua extraordinária importância.

Antes do projeto de lei sobre a Comissão da Verdade ir a voto, você teve uma participação percorrendo o país na divulgação da proposta...

Em vários estados que estive em atividades da Fundação Perseu Abramo, fizemos diversas reuniões em universidades, Assembleias Legislativas, com ativistas de direitos humanos e instituições para discutir a Comissão Nacional da Verdade e estimular a criação de comissões ou fóruns estaduais da verdade.

Também me envolvi muito na defesa do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, que tinha como um dos pontos mais criticados a Comissão Nacional da Verdade. Acusavam de revanchismo, de reabrir feridas, “de coisa da esquerda”. E nisso Lula foi muito firme: fez a defesa enfática da Comissão da Verdade e autorizou o ministro Paulo Vannuchi a elaborar um projeto em acordo com o então ministro da Defesa, Nelson Jobim. Em 13 de maio de 2010, o Projeto de Lei nº 7.376 foi para o Congresso. Nos últimos meses, começou o movimento para sua aprovação, com a posição pública e favorável da presidenta Dilma, inclusive em pronunciamento na Organização das Nações Unidas, perante a opinião pública internacional. Também o governo trabalhou com urgência urgentíssima. Isso significa requerer que o projeto vá direto para o plenário, sem passar pelas comissões. O governo estava realmente empenhado em aprová-lo.

E sobre o resultado da votação, em sua opinião houve algum prejuízo com a inclusão das  emendas?

Não. Uma das emendas acolhidas foi do DEM, que determina que os membros não podem exercer cargo em comissão, dos três Poderes e em partidos políticos. Acho pertinente. Já a emenda do PSDB é que tenham imparcialidade. Isso é óbvio, embora seja difícil avaliar por ser muito subjetivo. Qualquer pessoa que a presidenta escolher deve ter condições de discernimento para exercer sua tarefa. O que a lei diz é que devem ser pessoas probas, éticas, íntegras, que não tenham intenções subalternas em sua atuação. Não altera o que já está na lei, que para mim é suficiente. A outra mudança é que o relatório final seja encaminhado ao Arquivo Nacional. Perfeito, é o local adequado.

Há críticas em relação ao período de abrangência que consta na lei?

Houve uma intervenção, com a qual concordo, para modificar o período que será objeto de investigação da comissão. Na lei consta investigar os fatos entre 1946 e 1988. Penso que isso deve ser modificado pelo Senado.

Já tivemos duas leis que tratam de assunto correlato, as que instituíram a Comissão Especial sobre  Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, abrangência entre 1961 e 1988. Por que não em 1964? Porque a legalidade constitucional começou a ser rompida em 1961. O impedimento da posse do vice-presidente eleito desencadeou uma série de fatos que tiveram relação com as punições posteriores ao golpe. A atuação nesse episódio acarretou a demissão, exoneração de muitas pessoas. Outras foram presas, torturadas, perseguidas, se exilaram ou foram exiladas. E nessa época também houve mortes. O caso de João Pedro Teixeira, o Cabra Marcado para Morrer, e o Massacre de Ipatinga, por exemplo, foram ambos em 1963. E em 1988, que é a constitucionalização definitiva do país, o fim da transição. Então, se o Congresso já votou duas vezes que o período é esse, por que a Comissão da Verdade não segue o mesmo período de abrangência? Se for modificado, melhora. Agora, mesmo que fique 1946, é possível que as violações que chegarão ao conhecimento da comissão tenham sido perpetradas em sua esmagadora maioria entre 1961 e 1988.

A quantidade de integrantes, apenas sete, e o tempo de duração da comissão, dois anos, seriam suficientes?

Quem falou que é impossível uma comissão funcionar com sete membros? Há países que tinham violações mais graves, como a Argentina, com uma comissão de três membros. A do Chile, com muito mais mortos e desaparecidos, teve oito integrantes. Violações são impossíveis de medir porque toda ditadura é perversa e nociva. Não há nada que impeça que seja composta por sete membros. A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos tinha sete membros e a Comissão de Anistia começou com dez e aumentou seus membros porque se estimavam 10 mil requerimentos, e já está em 70 mil.

Mas a Comissão da Verdade será a primeira a ter membros remunerados e com dedicação exclusiva. As outras eram relevantes serviços públicos. Participei da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, que se reunia toda semana, depois toda quinzena, e os membros recebiam só passagem e estadia. Poderão ter catorze assessores vocacionais, selecionados entre os cargos em comissão. Haverá um grupo permanente buscando informações, investigando, ajudando os membros em pareceres. A Comissão da Verdade também contará com colaboração das outras duas comissões, que juntas somam 26 anos de trabalho e dois acervos enormes, além de milhares de livros, arquivos estaduais e das vítimas.

Quanto ao tempo de duração, vários países adotaram um ano, um ano e meio. Podemos fazer essa avaliação mais tarde e o Congresso pode ser consultado sobre a ampliação desse período.

Criticaram ainda a falta de autonomia orçamentária para a execução dos trabalhos?

Os companheiros do PSol disseram que não está previsto no Orçamento de 2012. Claro que não está. A Comissão estará vinculada à Casa Civil, que é o pulmão do governo, com poder de requisitar servidores, mobilizar recursos humanos e materiais do Estado. Melhor lugar para sua alocação, impossível. Com todo o empenho público da presidenta da República pela Comissão da Verdade, não tem lógica pensar que ela pode sufocá-la sem recursos financeiros.

Outra crítica é que haveria uma parte sigilosa. O que está colocado na lei é que a comissão poderá requisitar qualquer documento independentemente do grau de sigilo, usá-lo, mas não poderá torná-lo  público.

Há quem diga que a comissão não poderá convocar, só convidar. Onde está escrito isso? Essa informação é falsa – poderá requisitar documentos e convocar pessoas.

Disseram até que poderia ser composta por militar...

Em nenhum lugar na lei está escrito quem serão as pessoas da comissão. A única menção a militar na lei é que a comissão poderá requisitar servidores civis ou militares. Apolônio Carvalho, Lamarca, Lincoln Oest, Mauricio Grabois, Luiz Carlos Prestes foram militares.

Durante a ditadura, 5 mil integrantes das Forças Armadas foram expulsos e agora estão sendo anistiados, reintegrados e promovidos, inclusive pós-morte. Sempre houve na história do Brasil militares que pensaram diferente. Não há problema em requisitá-los. Como procurar desaparecidos sem recorrer aos militares, à Polícia Federal?

Não há como criticar uma comissão que ainda não existe. Crítica de boa-fé ou pertinente é aquela que diz respeito a não ter punição, não ser de Justiça. No objetivo da lei as questões levantadas não vão interferir na qualidade do trabalho.

Qual a expectativa em relação à tramitação no Senado?

Na Câmara, quando se votou o requerimento de urgência para entrar em pauta houve quarenta votos contrários. Alguns deles de pessoas que aprovam a Comissão da Verdade, mas queriam que passasse pelas comissões, como é o caso de Luiza Erundina. A maioria porque era contra a comissão. Parlamentares do DEM usaram inclusive a tribuna para dizer que discordavam de seu líder, alegando que se trata de coisa do passado, que são contra o mérito. No Senado é muito provável que alguns questionem o mérito ou o procedimento.

O governo articulará uma estratégia de urgência?

Pela polêmica que despertou quando foi anunciado lá atrás o PNH3, tanto governo quanto os líderes dos partidos acharam que seria melhor para o país ser feito com urgência urgentíssima. Esse tema da Comissão da Verdade está sendo discutido há muito tempo e o próprio projeto é produto de um acordo que envolveu os ministérios mediado pelo presidente Lula, tanto é que os líderes assinaram. Então é provável que o Senado faça o mesmo. Outra razão de bom senso é que seria prudente essa comissão, que tem dois anos de prazo, encerrasse seus trabalhos antes da temporada eleitoral de 2014. Nós vimos em 2010 que alguns assuntos, quando usados na guerra eleitoral, não fazem bem ao país. Esse tema não é do partido A, B ou C. É questão de Estado ter uma política nacional de verdade histórica para consolidar a democracia.

A partir das conclusões da Comissão pode-se chegar a uma lei pela punição?

O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Há tratados e convenções de competência jurídica da corte que não reconhecem a autoanistia em Estados que perpetraram violações. Agora, o STF pode refazer sua decisão anterior e o Congresso pode aprovar uma lei que modifique a Lei da Anistia. O fato é que a Comissão da Verdade, por si só, cumpre um papel fundamental para o país. Produzirá um relatório que será a opinião oficial e servirá de base para os currículos e livros escolares. Assim, as gerações presentes e futuras conhecerão a história do período da ditadura em sua integralidade. Os Bolsonaros têm liberdade de expressão garantida para dizer o que pensam sobre a ditadura, mas o Estado brasileiro também terá sua posição.

Evelize Pacheco é jornalista
Fernanda Estima é editora assistente de Teoria e Debate
Rose Spina é editora de Teoria e Debate